sábado, setembro 30, 2006

Viagem ao princípio da Viagem









I



Em Abril de 1932, Louis Destouches deposita na editora Gallimard o manuscrito da “Voyage au bout de la nuit”. Silêncio. O silêncio costumeiro, o desdém olímpico das grandes editoras pelos alienígenas desparamentados.
Em Junho desse mesmo ano, o editor Robert Dënoel recebe igualmente o manuscrito de Destouches. Denöel “percebe” o que está ali e aceita-o de imediato.
(Outros a quem Céline terá proposto o romance:
- A Eugène Figuière (que lhe proporá, um ano mais tarde, uma edição de autor):
- Às Editions Bossard.)
Em 30 de Junho, Céline e Robert Dënoel assinam o contrato de publicação da “Viagem ao Fim da Noite”. No artigo V do referido contrato, estipula-se que o editor pagará ao autor 10% do preço de capa, a partir do quarto milhar: E reserva-se 50% nos direitos de tradução, de adptação ao cinema, de vendas em caso de edição de luxo ou popular” .

Em Setembro, o livro entra na parte final da composição. Serão necessárias quatro provas até assentar a versão definitiva. Céline agradece a Dënoel o respeito integral pelo seu texto.
Jean Poulham, a quem Dënoel envia as provas do livro, escreverá mais tarde: “ Conheci a Viagem ao Fim da Noite através das provas que me enviou Robert Dënoel. Respondi, pelo correio, a Denöel, que o livro me parecia admirável. Pelo que Céline me agradeceu gentilmente, quando a obra saíu.»
Em 15 de Outubro, é publicada a “Viagem ao Fim da Noite”. Tiragem de 3.000 exemplares, produzidos na “Grande Imprimerie de Troyes”.
Robert Denöel distribui por vários jornais um folheto publicitário:


Em 14 de Novembro, Dënoel, Céline, Carlo Rim e o abade Mugnier almoçam em casa de Lucien Descaves. A 30 desse mesmo mês, os membros do júri Goncourt reunem-se para uma "repetição geral dos votos", no decurso da qual o prémio é virtualmente atribuído a Céline, com cinco votos - os de Lucien Descaves, Léon Daudet, Jean Ajalbert, Rosny mais novo e Rosny mais velho, presidente do júri e detentor de voto a dobrar.
Denoël retira então 10.000 exemplares de circulação e manda reimprimir novas bandas de capa onde se anuncia "29º. Prémio Goncourt".
Em 6 de Dezembro, Léon Daudet consagra o romance de Céline através dum artigo memorável na primeira página de "L'Action Française".
No dia seguinte, é anunciado o prémio Goncourt. Inesperadamente, é atribuído a Guy Mazeline, por "Les Loups", à primeira votação e com seis votos. Três votos, os de Lucien Descaves, Daudet e Ajalbert, são dados a Céline; um, o que contava a dobrar, o de Rosny velho, presidente do júri, vai para Raymond Rienzi.
Perante esta reviravolta fedorenta, Lucien Descaves reage com violência. "Regressei com prazer à Academia Goncourt mas nunca pensei dever ser obrigado a chegar à sala-de-jantar passando pela cozinha!", clama, enojado.
Roland Dorgelès tenta acalmá-lo: «Descaves, não desconfie que que tenha havido combinações por debaixo da mesa, porque se enganaria redondamente." Descaves replica, antes de abandonar o lugar: "Não, eu não desconfio que tenha havido manobra, eu tenho a certeza! Passem bem, porque diabo quereis que continue aqui?"
Os jurados acusados de mudarem o respectivo voto no último minuto são dois belgas: os irmãos Boex, ditos Rosny.
Vários artigos na imprensa colocam em causa a distribuidora Hachette [que depois de 29 de Março detém a exclusividade de venda das obras das Edições Gallimard] cujas manobras de bastidores teriam impedido a vitória dum livro publicado por uma casa editora independente.
No "Le Crapouillot", Descaves, cuja cólera não abranda, declara: "Sei bem dos meios que alguns dispõem para impor a sua escolha. Sei qual a imprensa que se vendeu e quais os que estão à venda; mas não posso fazer nada."
Jean Galtier-Boissière, director do Crapouillot, escreve: "Nas semanas que antecederam a atribuição do Prémio Goncourt, um romance assinado pelo presidente do júri, Rosny mais velho, não foi ele publicado no "L'Itransigeant", o grande vespertino com tiragens de 400.000 cujo director é Léon Bailby? Um dos principais colaboradores deste chama-se precisamente Guy Mazeline."
Em 16 de março de 1933, no "Le Huron", Maurice Yvan Sicard é ainda mais directo: "Sabemos como o admirável "Viagem ao Fim da Noite" foi habilidosamente substituído pelo alfarrábio engrachado de Guy Mazeline. A coisa, mais uma vez, foi conduzida por Drogèles e os dois Rosny, dos quais um é surdo e o outro certamente idiota... Em cada ano, a voz do presidente da academia é comprada pela melhor oferta."
Entretanto, o Prémio de consolação é atribuído a Céline, que obtém dessa forma o Prémio Renaudot.
Numa carta de 16 de Dezembro de 1964, a Dominique Roux, Bernard Steele (o sócio de Dënoel na editora de Céline, "Dënoel et Steele") relata o seguinte episódio:
"Algumas semanas depois da atribuição do prémio Renaudot à "Viagem", fomos completamente surpreendidos pela visita de Gaston Gallimard, que apareceu sem entrevista marcada. Fez-se anunciar, penetrou no escritório e, após as cortesias da praxe, empoltronou-se e, no tom mais categórico que imaginar se possa, debitou-nos o seguinte discurso:
'Senhores, tendes entre mãos um sucesso certo com a "Viagem ao Fim da Noite". Infelizmente para vós, contudo, não dispondes dos meios necessários para explorar convenientemente esse sucesso. Por conseguinte, vendei-me o contrato. Será muito satifatório, tanto para vós como para o autor, pois estou disposto a pagar-vos um preço muito elevado.'
Estupefacção geral, e de seguida... recusa polida, mas muito firme. Depois de alguns segundos em silêncio, Gaston Gallimard levanta-se da poltrona, aproxima-se da secretária e diz-nos, brandindo o dedo ameaçador:
''Pois bem! Já que não quereis negociar comigo agora, ficai bem cientes, cavalheiros, que virá um dia em que terei não somente o contrato, mas também a vossa casa editora!'
Boutade dum homem despeitado e encolerizado? Ou visão profética, que não se realizaria senão após uma guerra e a seguir a um assassinato?
Curiosamente, já antes, em 1930, um dos directores da Gallimard, a propósito dos direitos de "L'Hôtel du Nord", tentara junto de Dënoel a aquisição do contrato, durante uma abordagem semelhante.
«Propõe uma verdadeira fortuna. Tentação inútil. 'Estabeleça você mesmo o preço', diz ele. Debalde. O jovem temerário recusa com um sorriso. O tom do visitante torna-se nitidamente menos doce, menos diplomático: "Irá arrepender-se!", ameaça ele, à saída. A partir desse momento, o "grande editor" tentará sistematicamente sabotar a nossa acção e subtrair os nossos autores ao sucesso. Empregará todos os meios, mas nunca alcançará os seus desígnios derradeiros enquanto Robert Dënoel for vivo.»

II

A guerra a Céline não será apenas feita pelos académicos de serviço, pelos plumitivos de aluguer e pelos eunucos de guarda ao serralho das Artes. Na verdade, subjacente a essa guerra, manipulando-a e patrocinando-a subterraneamente, urdirá sempre um outro conflito de ordem mercantil, entre o hipermercado e a pequena mercearia irreverente. Céline vai apanhar por tabela. E pela medida grande. Sitiado entre-fogos, dá consigo numa espécie de Terra de Ninguém. Que, bem vistas as coisas, é - e desconfio que será sempre -a Terra dos poetas e dos escritores autênticos de todas as épocas.
Veremos isso em detalhe aquando da publicação da "Morte a Crédito". É recebida por uma verdadeira -e previamente orquestrada - barragem de artilharia. No "tiro ao Céline" até Robert Brasillach alinha.
Espécie de Neo-Cristo literário, Céline experimenta o calvário. Enche o saco. Aguenta, com algum estoicismo, o cuspo da horda inefável e a esguicharia farisaica. Chega mesmo - aos tropeções, ungido de impropérios- até à gólgota. Mas, aí, em vez de subir mansamente na cruz, como lhe competia, reage à bruta, a pontapé e à dentada: depois dum uivo inaugural com "Mea Culpa", escreve "Bagatelles pour un Massacre". Retaliação desenfreada? Mijar no formigueiro, pura e simplesmente. A eito, a torto e a direito, à queima-roupa e por atacado. Contra-bateria em todas as direcções, para ficar com a certeza plena que acerta nos tomates da confraria.
Como eu o compreendo!...






Nota: A parte I deste postal é basicamente uma tradução minha duma cronologia francesa. No próximo sábado faremos idêntica viagem em redor da publicação de "Mort à Crédit".

sexta-feira, setembro 29, 2006

Fusão ou fissão -uma questão científica (e política)



Na China, experimenta-se...

A Fusão atómica em vez da fissão atómica. Quando se confirmar que não se trata apenas de ficção, serão más notícias para os proxenetas dos fósseis.

"That means we lead all our competitors by at least a decade," said Li. "The breakthrough will make it possible for mankind to harness a safe, clean and endless source of energy."

Para acabar de vez com a Ciência

«Temos Albert Einstein na conta de um dos maiores poetas de todos os tempos».
- Boris Vian

«A ciência é sobretudo uma tomada de consciência cada vez nais completa do que pode e deve ser descoberto.»
- Boris Vian

«Há duas maneiras de enrabar moscas: com ou sem o seu consentimento.»
- Boris Vian

«Há pessoas que acreditam que tudo o que se diz com um ar sério é razoável.»
- Lichtenberg

«Um mestre-escola ou um professor não pode ensinar indivíduos; o que faz é ensinar espécies.»
- Liechtenberg

«O primeiro americano a descobrir Colombo fez uma descoberta deplorável.»
- Lichtenberg

«A loucura é algo raro em indivíduos – mas em grupos, partidos, povos e épocas é a norma. »
- Nietzsche

«Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência. .»
- Arthur Schopenhauer

«Avalia-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de incertezas que ele é capaz de suportar. »
- Immanuel Kant

E agora, citando o Lança-chamas cá da casa:

«A Ciência e a Religião são duas formas de explicar o mundo: A religião simplifica, a ciência complica. Ambas efabulam.»

«Rezou-se a Santa Bárbara até ao dia em que inventaram o pára-raios; desde então, com fé ainda mais radical, passou a rezar-se ao pára-raios»

«Sendo dois sistemas de crença que variam no grau de verosimilhança e elaboração, a Ciência e a Religião competem pelo mesmo mercado: a opinião pública. Só que enquanto os velhos monoteísmos medievais a tiranizavam à força de chantagens e rudes ameaças (a excomunhão, as penas do inferno, etc), a nova monociência suborna-a através dum dilúvio ininterrupto de bugigangas, panóplias e tecnomilagres. É toda uma Fé 3G.»

«Ciência - a cozinha e copa no castelo da belofilia. O braço armado da propaganda.»

«A ciência, enquanto sabedoria, é muito pobre; enquanto literatura, é miserável.»

«O cidadão comum vai às putas; o cidadão todo-poderoso vai aos cientistas.»

When the Shit hits the fan

«Rushing Off a Cliff ».

« [Os anericanos do futuro] saberão que em 2006, o Congresso aprovou uma lei tirânica que será classificada como um dos pontos mais rasteiros da democracia americana».

Quando o monte alcança a primeira página do New York Times é caso para dizer que "a trampa já chega à ventoinha".

quinta-feira, setembro 28, 2006

As Ténias, digo, Técnicas do Empirismo



Quem o diz, preto no branco, é Bertrand Russel (capítulo XV da sua História da Filosofia Ocidental):
«Os herdeiros de Locke são: primeiro, Berckeley e Hume; segundo, os philosophes franceses que não pertencem à escola de Rousseau; terceiro, Bentham e os radicais filosóficos; quarto, com acrescentos importantes da filosofia continental, Marx e os seus discípulos.»

Pois é, entra pelos olhos adentro. E também sai, embora ainda mais raramente. Só não vêem os papalvos on-line e toda a sua orbe de jóqueis gurus. Da esquerda Barnabé à esquerda Barnabu (aka "direita liquefeita", aliás "direita milk-shake", aliás "direita ultra-pasteurizada", vulgo "direita liberal"), passando pela esquerda botox, a paleoesquerda e a direita murcha, é tudo vergôntea (ou enxerto) da mesma cepa. Pertence tudo à confraria da capela de São João Locke. Empirotecnia militante!...
Se não valia bem mais que empirassem copos!...

O Rei vai despido?



Um artigo curioso -e surpreendente! - no Camberra Times, sobre Albert Einstein. Algumas passagens deveras sugestivas:

«O facto de Einstein ser um plagiador é do conhecimento geral entre a comunidade Física.»

«As equações de campo completas da teoria geral da relatividade foram primeiramente deduzidas por David Hilbert, um facto que Einstein foi forçado a reconhecer em 1916, depois de as ter plagiado de Hilbert em finais de 1915. Paul Gerber resolveu o problema do periélio de Mercúrio em 1898. O Físico Ernst Gehrcke deu uma conferência sobre a teoria da relatividade na Filarmónica de Berlim, em 24 de Agosto de 1920, e confrontou publicamente Einstein, que estava na assistência, com o plágio deste dos formalismos matemáticos da teoria especial da relatividade de Lorenz, dos conceitos espaço-tempo de Palagyi, da geometria não-euclideana de Varicak e da solução matemática do problema do periélio de Mercúrio primeiramente resolvida por Gerber. Gehrcke afirmou-o na cara de Einstein e disse a toda a plateia que o imperador ia nu.»





Quererá isto dizer que a ciência, como a política, também vive em concubinato com a propaganda? Então não é pura, a ciência?

quarta-feira, setembro 27, 2006

O 27 de Setembril de 1968

O 25 de Abril de 1974 foi apenas o corolário lógico -e natural - do 27 de Setembro de 1968. Goste-se ou não se goste de quaisquer uns dos protagonistas de qualquer uma das datas. Aliás, o protagonista foi o mesmo; só que em 68 foi-o de uma forma activa e, em 74, foi-o de uma forma passiva. Em 68, tudo fez para conquistar o poder; em 74, nada fez para mantê-lo. A gulodice de seis anos antes transformara-se em enfado seis anos depois. Na realidade, o professor Marcelo Caetano levou seis anos a velar o Salazarismo. Por fim, no dia do enterro, depôs aqueles cravos vermelhos na campa e foi-se embora. Amuado, parece-me. E com uma certa razão.
Até hoje, continuo sem compreender porque é que o regime abrileiro nunca lhe prestou as merecidas e devidas homenagens. Será porque -ao contrário do que diz o povo - cadelas cegas párem filhos apressados... e ingratos?

Não me contaram, nem li. Vi. E vivi. Com estes dois que a terra há-de comer.

Liberdade de Edição

Em Roma, não perturbes os romanos.




No "Melhor dos Mundos", a melhor das capas.

Global Competitiveness Report 2006-2007



«Europa retira EUA do topo da classificação»

Será que destronaram o "Melhor dos Mundos"?
O Global Competitiveness Report 2006-2007 é quem o diz. O maior produtor e exportador mundial de Democracia em queda livre? É uma tremenda injustiça. Mundo ingrato!...
Quanto a nós, portugueses, ao contrário do que por aí se rosna, estamos no bem caminho. Vamos no mesmo sentido que o "Melhor dos Mundos". Com a vantagem de irmos um bocadinho mais à frente.
Aliás, na mentalidade e nos hábitos, somos a nano-potência que imita na perfeição a ultrapotência: os outros que trabalhem, que produzem, que compitam; nós cá estamos para importar, consumir e gastar. Com todo esse dinheirinho de lavar droga e armas que anda por aí à solta, em verdadeiro manancial celeste, que os bancos quase nos obrigam a meter aos bolsos e a levar para casa, sobra-nos tempo para mais alguma coisa?...
Macacos me mordam, se não é a perfeita simbiose: uns levam, outros lavam. Numa Aldeia Global da roupa branca.

Bagatelas



«Vejam lá só...
Muito devagar, hão-de aparecer os fantasmas todos...e todos...todos...Yubelblat...a Avó... e Natália... tal como Nicolas Nicolaevitch que tinha tanta dificuldade em escolher... como Borodine... como toda a polícia secreta... e o "Instituto do Cérebro"... como os sapatos no Mont-Baron... tudo se há-de arrastar como fantasmas... hu!... huuu!... Há-de ser visto nos ermos... E nada lhes sucederá de melhor... Vão ser mais felizes, bem mais felizes ao vento... nas pregas da sombra... vluuuu... vluuu... a dançarem de roda... Já não quero ir a mais lado nenhum... Para a Irlanda... ou para a Rússia... vão navios cheios de fantasmas... Desconfio de fantasmas.... andam por todo o lado... Já não posso viajar... é perigoso dem mais... Quero ficar aqui para ver... ver tudo... Quero passar a fantasma aqui, no meu buraco... na minha toca... E fazer a todos!... Hu! Ru!... Que até vão morrer de medo... No tempo em que fui vivo, o que eles me chatearam... Mas há-de chegar a minha vez...»

- Louis-Ferdinand Céline, "Bagatelles pour un Massacre" (Trad. Aníbal Fernandes)

No próximo sábado, doravante dia dos "cadernos culturais" aqui na espelunca, o fantasma de Céline voltará para nos assombrar. Exactamente o quê, é surpresa.

terça-feira, setembro 26, 2006

Reco-turismo



O Túnel rodoviário de Fort McHenry, em Baltimore, USA, orçou em $750 milhões e é o maior túnel submarino (se é que assim lhe posso chamar) do mundo, atravessando por debaixo do Porto de Baltimore.
Pois bem, um dia destes, um cidadão israelita foi detectado e interrogado pela polícia. O dito cujo andava, todo fascinado, para trás e para diante, a fotografar as entranhas do monumento (passe a redundância).
Inicialmente, ao ser abordado pelas autoridades, o turista não apresentou qualquer licença de condução, pelo que o carro foi rebocado. Após quatro horas de interrogatório e detenção, na esquadra, "funcionários diplomáticos conseguiram persuadir a polícia de que as suas (dele, turista) acções eram benignas, tendo sido então mandado em liberdade".

Já um turista, só porque é israelita, não pode tirar fotografias. Ao que o anti-semitismo chegou!...

Cinegética kosher




O Rabbi Yousef Falay reside no West Bank - aquela faixa de Israel ilegalmente ocupada pelos palestinianos. Recentemente, o moderado rabi, incomodado decerto com aquela ciganada toda a sujar a paisagem e aquele guetho imenso e sórdido a prejudicar a valorização do imobiliário da zona, escreveu um libelo na revista "Ways of War" -uma revista que alguns mal intencionados apelidam de sionista", mas é mentira porque, como todos sabemos, o sionismo não existe, o que existe é anti-semitismo -, pois, como vinha dizendo, escreveu o seguinte: todos os palestinianos masculinos, com mais de 13 anos, que se recusassem a abandonar as partes de Israel ilegalmente ocupadas (aquelas a quem os anti-semitas chamam Palestina) deviam ser exterminados. Essa, segundo ele, seria a melhor forma de assegurar a não-existência da raça Palestiniana.
Diante disto, qualquer pessoa bem formada se interroga, ligeiramente perplexa. Em simultâneo, as pessoas mal-formadas romperão em clamores, de choque e escândalo. Mas comecemos pelos bem formados...
Um bem formado, de facto, interrogar-se-á, algo atónito: Mas porquê apenas os maiores de 13 anos? Porque não todos e sobretudo os bebézinhos, à maneira de Herodes? É que depois os menores de 13 anos crescem e, vingativos, rancorosos e ressabiados, como por norma toda esta gente rafeira é, desatam de novo aos tiros, às bombas e, pior que tudo, às pedradas nos carros das pessoas.
Já o mal formado, como é apanágio da espécie, sem a mínima noção das conveniências e da boa educação, irrompe aos gritos: Assassinos! Genocidas! Infanticidas! Nazis! Nem as crianças poupam! etc e bla-bla-bla. Anti-semitismo feroz e nada mais que isso, não nos confundamos. Uma vergonha! Uma sandice! Enfim, o costume.
Ora, se me é permitido bedelhar aqui, julgo que nem os bem formados, nem os mal formados estão a ver bem a questão. Porque mais uma vez estão a contemplá-la sob um filtro cultural que deturpa a realidade e não faz justiça à emérita proposta do santo rabi. Não respeitam uma cultura diferente da sua, é o que é. Não tentam sequer estudá-la nem compreendê-la. Sujeitam-na a padrões e princípios que não os próprios, dela, cultura, neste caso judaica.
Passo a explicar. Sem margem para quaisquer dúvidas...

Nós, ocidentais, dum modo geral, alcançamos a maioridade entre os 18 e os 21 anos. Se por exemplo um tipo tiver relações com uma menina ou menino de 13 ou 14 anos é considerado -e muito bem, acho eu - crime, violação, pedofilia. No ocidente, por enquanto, é assim.
Mas em Israel não. Na cultura judaica existe uma coisa chamada Bar/Bat Mitzvah -Bar, em se tratando de menino; Bat, em se tratando de menina. Para celebrar o Bar ou Bat Mitzvah, tradicionalmente, a família dá uma festa. Que celebram eles? Nem mais nem menos do que a passagem do rebento à maioridade. Para efeitos legais, morais e culturais, desde essa data, os aniversariantes tornam-se adultos, de plena responsabilidade. Os pais ficam contentíssimos porque, aos olhos da lei (e de Deus) já não têm eles que arcar com elas, as ditas responsabilidades. Já podem dedicar mais tempo aos negócios. Com que idade se atinge o Bar ou Bat Mitzvah? Nos rapazes, aos 13; nas raparigas, aos 12. A partir dessa idade podem, entre muitas outras coisas, casar com quem muito bem lhe apetecer, desde que não seja gohym, naturalmente.
Portanto, quando o humanitário rabi propõe que se exterminem todos os maiores de 13 anos está a ser perfeitamente escrupuloso, à luz da moral que o rege. Com um rigor piedoso -e ecológico! - inatacável, receita que apenas os machos adultos sejam abatidos. Cumpre, dessa forma, quesitos da mais elementar cinegética. Em qualquer reserva animal é assim.
Inerentemente, também quando os palestinianos malvados fazem explodir um autocarro cheio daquilo que, para nós, são criancinhas entre os 13 e os 15 anos, na verdade, e segundo os costumes lá do sítio, estão a estoirar com uma série de judeus perfeitamente maiores e vacinados. Convém pois que, nessa altura, as pessoas bem formadas mantenham a sua proverbial elevação, e não desatem em escândalos e exageros estapafúrdios mais dignos de varinas do que de gente filigranamente civilizada.
Tudo isto, a mim, entre outras coisas, traz-me à lembrança uma tribo que existe ali para o nordeste de Angola: os Quiocos. Também têm uns rituais, deveras complicados e ruidosos, de iniciação e passagem à idade adulta. Chamam-lhe "Mucanda" - no caso dos rapazes, que são então circuncisados e submetidos a duras provas e ensinamentos; e "Kafundeji", no caso das raparigas. Nos rapazes ocorre na pré-adolescência e nas raparigas mal lhes surgem as regras. Diz-se que a circuncisão foi introduzida em África pelos judeus. O que, de alguma forma, aparenta estas culturas. Mas o que nunca me saiu da memória foi um outro detalhe dos quiocos: a menina, pelos nove anos, tradicionalmente, era desflorada pelo tio, irmão da mãe.

É inegável que qualquer uma destas culturas - a judaica e a quioca - apresenta certas vantagens em relação à nossa. Se o ocidente adoptasse estes costumes, estou seguro que vibraria um golpe demolidor em pragas endémicas como a pedofilia e a pederastia. Começo até a compreender a justificada simpatia -simpatia, que digo eu,verdadeira paixão! - que as nossas elites manifestam, a toda a hora, pelo Estado de Israel. E mesmo as finanças do país: o dinheiro que não se pouparia em investigações, tribunais e processos intermináveis!...

Compram o quê?

Já que falam no "Compromisso Portugal" - se temos que iberizar a economia (quer dizer, copiar os espanhóis - afinal o mais longe que os nossos crânios alcançam é sempre copiar alguma coisa) -, a bem da cultura proponho que se iberize o quanto antes o nome da iniciativa.
Em vez de Compromisso Portugal, grafe-se Compromijo Portugal. A bem da cultura...e do rigor.

Os economíscaros, os empressaúrios e demais fauna pantanal andam sempre a apregoar o rigor nos números, mas só sabem é desmazelar-se no que concerne ao rigor nas palavras.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Subsídio a uma nova taxinomia



Nessas coisas de direita e esquerda, eu, se não sou o tipo mais rigorosamente imparcial que se conhece, devo andar lá perto. Ora, isso confere-me uma certa autoridade para falar no assunto. É, por conseguinte, investido desse distanciamento científico, e sempre diligente nas contribuições para o enriquecimento das tabelas e quadros culturais, que julgo oportuno sugerir uma dicotomia alternativa à já célebre direita dura/direita mole. Que tal direita tesa/direita murcha?
Ou talvez "alternativa" não seja a melhor caracterização. Talvez "complementar" seja mais apropriado. Isto é, abrangendo um outro âmbito até aqui descurado e órfão de taxinomia. Afinal de contas, enquanto a "direita mole", tudo indica, ostenta enfermar duma incontinência mental consumptiva, já a "direita murcha", claramente, manifesta contorcer-se numa disfunção eréctil intelectual, agravada duma amnésia selectiva emulsionante. Separa-as, estou em crer, a distância que vai da direita em busca de Imodium à direita à procura de Viagra. Ambos, claro está, e de preferência, em forma de supositório...inteligente.
É preciso nunca esquecer que estamos a falar de pessoas com um estômago muito sensível. Um melindre pegado de gente.

Debruçar-me-ei já de seguida sobre a esquerda. É só mudar de luvas e de pinças.

Dislexia sexual, o grande mal do nosso tempo

O Caguinchas -contou-me o Dinossauro que ia com ele - foi abordado por uma daquelas equipas que emboscam o passante com perguntas bruscas e sorrateiras. Uma cachopa, de microfone em riste e camera-man à ilharga, teve a triste ideia de assaltar o nosso campeão com o seguinte inquérito preliminar:
-"E o senhor, depois de fazer amor, também fuma um cigarro?..."
O Caguinchas, como lhe competia, não foi de modas. Ripostou ao nível, com a gestualidade exuberante que o caracteriza:
-"Fazer o quê?!... Olha-me esta, ó Dino!...Mas eu sou algum operário da pichota ou carpinteiro do esporrinhanço? E em vez de marzápio será que tenho algum martelo ou serrote entre pernas?! Filhinha, eu não faço merdas dessas. Com mulheres fodo, e quando fodo, fodo até à exaustão, até cair pró lado inconsciente - eu e ela. E depois o segredo é só tratar de acordar antes dela e pôr-me a milhas o quanto antes, à força toda, não vá ela por-se com corins telados. E 'tás-me a achar com cara de quem vai prá cama c'uma gaja pra fumar cigarros, ó chavala?!...
Por esta altura, a pobre repórter começava a perceber a alhada em que se tinha metido e já suava frio. Mas, para não dar parte de fraca, tentou flanquear com uma questão ardilosa:
- "E os preliminares, que importância dá aos preliminares?"
Do que ela se foi lembrar, meus amigos...
- "Preliminares?!! - Enchouriçou-se ainda mais, o Caguinchas. - Mas esta miúda vem-se com cada uma! Preliminares, primos, padrinhos, pais, tios, compadres, a parentela toda, quero lá eu saber deles para alguma coisa! É que nem conhecê-los! Eu fodo co'a gaja, não é com a família dela!... Fosga-se! Deus nos guarde dessa procissão!...Gosto pouco de presépios desses!"
A desafortunada -e a atirar para o baixote, segundo o Dinossauro, mas com uma mamas jeitosas, valha-nos isso - jornalista, visivelmente arrepiada, fez uma derradeira tentativa, em voz receosa (e o caso não era para menos) :
-"Mas preocupa-se com o orgasmo da parceira durante o acto, não?"
- "Parceira? - Enchifrou-se todo, o arguido. - Ó coisinha fôfa, eu não jogo às cartas com mulheres. Sueca e batota é co's amigos. E quanto ao orgasmo, os sofás, a cama, o bidé, o mobiliário, a decoração, essa traquitana toda, isso não me apoquenta nada. Fodo onde calha, onde a apanho. A única coisa que me preocupa, às vezes, é o marido. Não fodo gajas que morem acima do primeiro andar. Pelo menos, no inverno!..."
Completamente derrotada, persignando-se mentalmente, o esfinge moderna não ousou mais inquéritos e retirou-se cabisbaixa e apressada. O Caguinchas e o Dino ainda se demoraram uns momentos a galar-lhe a traseira, findo o qual exame, aquele primeiro desabafou o seguinte:
-" 'Tás a ver isto, Dino? Esta malta nova vai prás universidades, aprende um monte de merdas inúteis e desaprende o essencial. Já nem foder sabem nem conhecem. É que nem de nome!..."
-"Pois é, Caguinchas, meu velho! - Terá ripostado filosoficamente, o outro. - Por este andar extingue-se a raça."
- "E se eu montasse um emprenhadouro, ãh, já viste?... achas que o Estado me suicidiava?" - Alucinantou-se ainda, num clarão súbito, o tresloucado.
-" Subsidiava, Caguinchas. Diz-se subsidiava." - Corrigiu o idoso. E colmatou, antes de treparem ao 28, junto às Escolas Gerais: -"Não sei, duvido muito. Mas devia."
-"Foda-se, mas não contes nada ao Dragão, ouviste?! O filho da puta é um invejoso do caralho!...E um boca no trombone, que Deus nos acuda!...Rouba-me logo a ideia e fode-me o negócio."

Bruxo.

Complexo, qual complexo?...

Julgo saber que andam por aí ociosos a gritar "mãos ao trabalho" e "chega de complexos de inferioridade com Espanha!"...
Pura conversa de chacha, esta prosápia, quer-me cá parecer. Eu, por exemplo -e, mais, nem ocioso sou mas simples desempregado -, tenho Complexos de Superioridade com os Estados Unidos. Espanha? Que merda vem a ser essa?!...
Portugal, qualquer atlas geográfico o patenteia bem, é um país cercado pelo mar e pelo deserto. Não admira, pois, que a fauna se ressinta disso.

domingo, setembro 24, 2006

Irmão de Armas



H.L. Mencken é outro daqueles que, sempre que calhe, aqui hei-de divulgar e enaltecer. Dele, em português, que eu saiba, existe uma tradução na Antígona, intitulada "Os Americanos". É, sem sombra de dúvidas, a mais sublime iconoclastia na língua inglesa do século XX. Admirador de Twain, levou-o às últimas consequências.
Já mereceu no Dragoscópio o tributo de vários postais.
Entretanto, o sempre atento e ático "Sexo dos Anjos" honra-o com uma referência. E deixa uma justa interrogação:
«porque será que a enorme tribo dos americanos de expressão portuguesa, que enchem a tela e os jornais, sempre ignorou ou fingiu ignorar Mencken?»


Caro Manuel, permita-me o alvitre: não se preocupe. Eles vão reconhecê-lo e louvá-lo a todo o momento. Assim que consigam o transplante de cérebro que aguardam, excitados, em tumultuoso formigueiro e ansiedade.

Cartas de Estalinegrado - IV.





O maior contingente que a morte recrutou, a ferro e fogo, no açougue de Estalinegrado não foram soldados alemães ou russos, muito menos nazis ou comunistas. Foram soldados desconhecidos.



XXXVI

«Há um ano que você escreve a um desconhecido que não tem ninguém no mundo. Eu recebia as suas cartas, e nas longas noites de inverno ouvia pulsar o coração que nelas falava, ouvia ainda o pulsar do coração dos camponeses e dos animais; das plantas e dos cumes dos montes, a voz do vento e dos aludes de neve.
Você dizia sempre que eu, (o soldado desconhecido) devia encontrar nas cartas força, coragem e fé. Digo-lhe hoje que efectivamente as suas linhas sempre me deram força e coragem. Mas a fé está morta, tão morta como eu e cem mil camaradas meus estaremos dentro de um mês...
Hoje escrevo-lhe por dois motivos. primeiramente como soldado desconhecido a quem você dantes se dirigia, para me despedir de si, e em segundo lugar por supor que você vai passar a escrever a outro desconhecido para com as suas cartas lhe dar força, estímulo e coragem. E fé.
Menina Adi, é este o motivo mais importante. Pode-se demonstrar que se deve ter fé, mas quando uma pessoa se sente vendida como se fosse um animal, quando se reconhece que ter fé, em qualquer coisa boa foi tempo perdido, é nosso dever pedir aos outros que vejam as coisas como elas são.

XXXI

Quantas cartas escrevi eu até agora? Com a de hoje segundo as minhas contas, passam de 38. Numa carta que me escreveu em Agosto, você dizia-me que estava a fazer um album de correspondência (uma autêntica colecção de seres humanos), com direcções, particularidades, indicações de quando conheceu os seus correspondentes, da evolução da vossa amizade. Foi uma coisa que me divertiu deliciosamente. Também juntou à colecção a fotografia que lhe mandei? O meu album de correspondência não prima pela exactidão: tenho a certeza de que o seu sistema é muito mais perfeito do que as cruzinhas que eu faço no meu calendário de bolso. Mas afinal pouco importa que eu lhe tenha escrito 36 ou 37 cartas. Sou o seu correspondente número cinco. Deve ser muito interessante ler todas as cartas que você recebeu, que todas vêm de frentes de batalha. Quando a guerra acabar você tem material para fazer uma antologia de cartas. Queríamos encontrar-nos pela primeira vez; era em Karlsruhe não era? Mas isto vai muito mal. Vejo o futuromuito, muito negro. Já quase não há esperanças! Graças a Deus pouco me custa morrer. Não tenho sequer para recordar o nosso encontro ou a nossa separação.
Ai minha amiga, minha boa amiga, apesar de tudo sempre custa! É horrível passarmos os dias sem fazer nada - só a olhar; com o tempo acabamos por endoidecer. Se eu pudesse voltar ao mês de Setembro em que tive estilhaços de granada no braço e em que podia voltar para a Alemanha! Mas queria estar aqui quando tomássemos Estalinegrado, e agora já tenho lamentado muitas vezes a loucura em que me meti.
As minhas cartas iam cheias de alegrias;eu estava sempre alegre como um pardal, como você pôde verificar,mas agora essa boa disposição acabou - o momento é grave.
Que vai você escrever na sexta coluna do seu album? Em caso algum escreva "Morto em defesa da Grande Alemanha,etc...",não está certo! Escreva antes "Morto em defesa da Hanna, etc..., etc, etc."
Oxalá você não ache este estilo frívolo. Quero falar-lhe dos seus outros correspondentes. Mais cedo ou mais tarde, com certeza,alguns deixarão de dar notícias, mas duma forma diferente. DE repente, deixam de escrever. As suas cartas ficam sem resposta. tenho o dever de lhe comunicar. Menina Hanna, esta é certamente a minha última carta. Adeus! Esta luta desigual e louca que aqui suportamos faz-me perder a esperança de nos vermos um dia. Adeus! e ao despedir-me, quero agradecer-lhe de todo o coração o tempo que passou a escrever-me. Ia a dizer "que perdeu" mas reconsiderei que afinal não foi tempo perdido, pois as suas cartas deram-me muita alegria.»

Adenda ao postal prévio

A pedido de várias famílias, emano a seguinte adenda ao postal anterior:
É provável que dentro em breve aqui seja publicada uma entrevista do Dr. Destouches de 1958. Fica o suspense.
Quaisquer outras propostas, reptos ou sugestões desonestas que os estimados leitores me queiram fazer, serão, como devem calcular, bem vindas. Por PDF, sff.

Acrescento ainda que ando a fuçar na correspondência do nosso amigo. Movido das piores intenções, assinale-se.

Também tenho ali o "Bagatelles". Para um dia destes. Iconoclastia oblige.

Entendamos tudo isto como a minha "Viagem ao princípio da Alvorada".

Mas nada de confusões: a coragem, se a há, nunca é um mérito: é um dever. Tal qual este meu kung-fu não é, de modo algum, uma zaragata ideológica, mas essencialmente uma batalha visceral -e fatalmente quixotesca - contra aquilo que considero o real cancro do nosso tempo: a mediocridade infestante.

sábado, setembro 23, 2006

A Derradeira Estação - A Última entrevista de Céline

Em 1961, Céline concedeu a sua última entrevista. Esta, foi gravada com o intuito de vir a ser radiodifundida.
É a transcrição da mesma o que se segue.


- O Amor ocupa um grande lugar nos seus romances?
- Nenhum. Não tem que lá estar. Quando se é romancista o que deve haver, sobretudo, é pudor.
- E amizade?
- Também se não fala dela!
- Acha, então, que acima de tudo deve falar-se dos sentimentos sem importância?
- Não, não falar de sentimentos.
Falar do trabalho. Só ele é que conta, mas ainda assim com muita discrição...Fala-se dele com publicidade a mais...
Somos objectos de publicidade, manequins de publicidade. É nojento, vai sendo tempo de fazermos uma cura de modéstia geral. Na literatura, como no resto, estamos empestados de publicidade! É verdadeiramente indecente! Por isso resta-nos fazer o nosso trabalhinho e ficar calado, mais nada.
O leitor olha ou não olha, vai lê-lo ou não vai lê-lo, é uma coisa que só lhe diz respeito. Depois... acabou-se, só resta o autor desaparecer.
- Uma vez disse-me que escrevia para encontrar uma “musiquinha”.
- Ah, quanto a isso está encontrada, não é verdade? Pois bem... trata-se do lado técnico.
Consistia em atravessar a linguagem que temos, a escrita académica, para fazer dela uma coisa viva. E para fazer dela uma coisa viva era preciso dar um encontrão à linguagem escrita habitual, que é uma linguagem convencional, académica, pobre. Empobrecemos o francês antigo, empobrecemo-lo para ficar académico. De um tal modo os jesuítas acabaram por apertá-lo, que a língua que temos é uma língua impossível.
Ao passo que na linguagem falada ainda a encontramos viva. Mas é necessário fazer a linguagem escrita passar através da linguagem falada, e isso é tão duro que ninguém quer fazê-lo.
Os autores são calaceiros, tradicionalistas! Então escrevem como o jornal que costumam ler, e como lhes ensinaram na escola e no liceu... o que é uma linguagem morta.
Já se brincou muito com essa coisa do francês língua morta, mas não podemos dizer... o francês que retemos é esse, nem mais. Como é evidente, há duas coisas a considerar: precisamos de um estilo, não é verdade? E então isso é muito duro. O estilo é que dá a tal “musiquinha”. Mas temos de avançar, de atravessar a linguagem falada. À linguagem popular podemos ir buscar aquilo que se chama palavreado grosseiro. Ou seja, numa tasca qualquer ouvem-se palavras estranhas e expressões curiosas. Mas são coisas sem dimensão. Para as montar é preciso construir um edifício. É preciso uma arquitectura, e então essa arquitectura, bem... minha nossa, é preciso termos trabalho. Não é? A arquitectura é que está na base de todas as artes.
- Pelos vistos, não escreve só pelo prazer de escrever?
-Ah! De maneira nenhuma! Absolutamente nada! Se eu fosse livre e tivesse dinheiro, nem uma linha escreveria! O artigo 1º. É este. Poderia pensar numa porção de coisas, mas não sentiria necessidade nenhuma de as comunicar.
- Mas como artigo 2º. Não poderíamos dizer que, dispondo de imenso dinheiro, também escreveria, nem que fosse só para si?
- Não, de forma nenhuma! Absolutamente nada! Descansaria. Acha que, no seu caso, aos 67 anos ainda andaria a escrever? Aos 67 anos, andar com os instrumentos às costas? Imagine! Mandava-os à vida e reformava-se, acabou-se... Aliás, é idiota, não se vai...
Um velho imbecil é uma coisa tão estúpida como ser lúbrico ou gostar de conferências... É tudo grotesco, é exibicionismo, é cabotinismo. Visto isso, qualquer coisa que também podemos dispensar.
- Nenhum dos seus livros foi escrito com uma intenção que ultrapassa o prazer de ganhar dinheiro?
- Ah, nenhum! Isto posso eu dizê-lo francamente. Dinheiro, nada faço para ganhá-lo. Não, isso, há que ser justo. Sei dar conta do meu recado, não é verdade? Mas dizer que me dê gosto, isso não!
As pessoas que dão conta do seu recado, bem, não é que gostem de fazê-lo. Gostariam mais de ir à pesca. Há matemáticos que não gostam de matemática, é uma coisa que se vê. Há físicos que não percebem nada de física, a quem ela não diverte nada, que gostariam mais de ir apanhar flores, como eu compreendo isto...
- De qualquer forma, desde há vinte anos ouvimos fizer-lhe que não gosta de escrever, e apesar disso escreve.
- Bem, as circunstâncias obrigam-me a isso, continuam a obrigar-me porque devo seis milhões à Gallimard. A história é só esta, e muito simples.
Todos os anos, todas as vezes que sai um livro meu, é dinheiro que eu pago.
- Não escreve por amor ou por ódio?
- Oh, de forma nenhuma! Nem por um nem por outro. Caso eu tenha os sentimentos que referiu, só a mim me dizem respeito, não dizem respeito ao público.
- Mas, de um modo ou de outro, os seus contemporâneos interessam-lhe...
-Oh, não, de forma nenhuma!
- Indiferente?
- Absolutamente indiferente! Por estranho que pareça, eles é que se interessaram por mim.
Sim interessei-me uma vez, para tentar que não fossem combater na guerra. Santo Deus, foram lá parar... E, se não foram, é como se fossem. De qualquer forma, mesmo sem andarem na guerra voltaram carregados de glória. Pelo que me toca lixaram-me, na prisão.
E pronto. Só vi isto na história dos homens. Não vi mais nada, e por isso andei mal preocupando-me com eles... Não devia tê-lo feito. Eu estava sossegado, só devia meter-me naquilo que me diz respeito.
- Nos seus últimos livros, apesar de tudo há um certo número de sentimentos que transparecem...
- Ah, quanto a isso podemos tornar transparente seja o que for, não é difícil.
- Quer convencer-me de que se trata apenas de um exercício de estilo ou de uma história, aquilo que quis contar? Que nada de seu, íntimo, lá existe?
- Oh, não, não, de íntimo não. Talvez haja uma coisa – a única coisa que talvez seja verdadeira -, é que não sei gozar a vida, não vivo. Não existo. E então, como não gozo a vida tenho esta superioridade em relação aos outros, que estão realmente podres mas sempre a gozar a vida. Gozar a vida é beber, enfardar, arrotar, foder, é uma porção de coisas que pregam com o homem no zero, e com a mulher também.
Quanto a mim, nasci de um modo que me impede completamente de gozar, mas até calha bem, reconheço, sei isso muito bem, sei seleccionar, sei saborear.
Dizia um romano que “o deboche não é entrar num bordel, é não sair de lá”. Bem, eu cá levei a vida a entrar nos bordéis mas a sair logo deles, não são coisa que me divirta.
Como não bebo, não gosto, bebidas e o resto, como não gosto de comer, isso chateia-me, então...
Eu cá sou assim, pouco dotado. A minha mãe era assim, e herdei dela este estranho temperamento que consiste em não saber gozar absolutamente nada, nada, nadinha. Só tenho uma vontade, dormir e não ser chateado, o que não é agora o caso.
- Quer convencer-me de que os seus livros não se parecem consigo?
- OH, claro que sim, absolutamente nada!
- Se alguém afirmasse que o reconhecia nos seus livros, o que lhe diria?
- Oh! Não me reconhecem nada, reconhecem... o tanas. Não me reconhecem absolutamente nada!
Avaliando pela correspondência e pelas coisas que recebo, é totalmente o contrário, por isso... Tudo quanto possa haver de ecos meus, as pessoas não os procuram.
- Quer realmente demonstrar que a sua obra é qualquer coisa totalmente exterior a si?
- Ela é minha, sou capaz de dar conta do recado, isso é verdade, e os outros não conseguem. Ainda por cima lixam-me, para se gabarem de ter conseguido fazê-lo. Mas não conseguiram. Umas bestas! Não é verdade?
Não conseguem, não foram feitos para isso, de maneira nenhuma, nenhuma. Mas insistem... Ah, vais receber uns recados, vou enviar-te umas coisas, os prémios são para nós...
Não há crítico que não tenha encontrado 150 Balzacs durante a sua carreira, mas depois nunca mais se ouve falar desses tipos.
Tudo mentira! É tudo mentira! Não percebem é nada do assunto. Há dois, três tipos que foram escritores na grande época, sinto isso, sim, Morand, Ramuz, Barbusse eram escritores, tinham o sentido do que era sê-lo, tinham sido feitos para isso. Mas os outros não, santo Deus, não! Uns impostores! Bando de impostores! Pois bem, esses impostores é que são os mestres, aliás Brunetière já tinha a dito: “Se a crítica não estiver muito atenta, as letras serão devoradas pelo charlatanismo”.
Já foram. E os críticos também. Foi tudo devorado pelo charlatanismo.
- Quer também dizer-nos, e garantir-nos, que é exterior a esta vida? É alguém que não pertence a esta vida?
- Tal qual, é completamente certo. Trata-se da minha interioridade, só minha, não incomoda ninguém e eu próprio sei que não tenho necessidades materiais, não fui feito para elas.
- Mas foi um dos homens mais apaixonados deste século!
- Sim, fui, porque me forçaram a exteriorizá-lo. Nunca ninguém teria sabido, se eu não tivesse sido forçado por razões materiais. Ter-me-ia mantido tranquilo...
Sim, uma vez, uma só vez e a propósito desta guerra. Disse para comigo: “Ah! Merda! É preciso fazer qualquer coisa, os pobres destes franceses vão embarcar numa coisa de que não podem sair”. De facto, meteram-se numa coisa e não conseguiram sair dela, nem alguma vez vão conseguir...Isso valeu-me chatices em muito maior número, não valeu? Por isso não, claro que não...
- De qualquer forma, é e foi muito sensível à dor dos homens, à desgraça dos homens, ao seu sofrimento!
- Fui, mas já não sou. As coisas deram nisso. Não, não, lixaram-me muito, e basta...Meti pena, mas já não meto. Agora sou indiferente. Eles só conseguem chatear-me, é tudo quanto sei dizer...
- Considera-se azedo?
- De forma nenhuma! Não, absolutamente nada!
- Filósofo?
- Oh, bem, escute lá, tudo isso são palavras. A Enciclopédia está cheia delas, sabe, aqueles livros grossos, há génios dessa coisa de que está a falar. Ah! Santo Deus, são tudo ideias, e nada há mais vulgar do que as ideias. “Eu cá tenho as minhas ideias, papá.” – “Oh, sim, creio que ele tem ideias”. - “Oh, o Agénor é uma pessoa com ideias”. – “Oh! Precisamos de saber o que pensa este escritor.”- “Oh, meu Deus, as suas palavras fazem lei.”
Não, é realmente merda! Está a compreender? Pura e simplesmente merda! E pronto. Creio que dou conta do meu recado e os outros não, logo juntaram-se para dizer que sabem.
- Ainda hoje se considera um dos maiores escritores vivos?
- Ah, de forma nenhuma! Isso de grandes escritores já é lixar adjectivos, etc... primeiro temos de bater a bota, e depois de a batermos, quando estivermos mortos, eles classificam. Primeiro temos de estar mortos. Porque enquanto formos vivos...
Como o homem odeia o homem, “o homem é um gorila destruidor e lúbrico”, não fui eu quem inventou isto, foi Taine. Acabou-se. Não passa disso, destruidor e lúbrico, gorila é o que ele é.
- Se bem compreendo, está convencido de que a posteridade vai fazer-lhe justiça.
- Ah, não! Não estou mesmo nada convencido! Mesmo nada! Não estou convencido, oh, santo Deus, não! É bem provável que ela pregue comigo na sombra. E nessa altura talvez já não haja nenhum Anatole France...
Vão fazer o inventário, e vão lá estar chineses, ou berberes. Vão estar-se completamente nas tintas para a minha literatura de tanso, o meu estilo de pobre coiso e para as minhas reticências.
- Já não acredita em ninguém, não acredita sequer na sua obra?
- Ah, absolutamente nada! Ah, absolutamente nada! Lá isso não, nada de nada, nada! Acredito nas contribuições que vão ter de ser pagas, também acredito nas dívidas que tenho por todo o lado, e pronto. Muito simplesmente.
- Detesta a vida?
- Bem, não posso dizer que gosto dela, não, isso não. Aguento-a porque vivo, e por ter gatos.
Mas sem isso, é evidente... É evidente que sou da escola pessimista, oh sim, de facto sou um pessimista. Não acredito muito no futuro desta gente, não, nem nada, mesmo nada, nada, não, mesmo lúbrica e tudo tem instintos, embora se trate realmente de outros instintos.
- Haverá alguém na terra que mereça a sua estima?
- A minha estima!... Todos têm o direito de ser como são! Não pedem a minha estima... Com que direito eu ia dar diplomas de estima e de não-estima. O que quer isso dizer? Absolutamente nada, um zero sob o ponto de vista científico. Eu cá tenho uma educação científica, olho para aquilo que existe, que não existe. Que raio de coisa seria essa de pôr-me a dar diplomas de bom comportamento? Não me diz respeito, em absoluto.
- Existe alguém que pessoalmente lhe interesse?
- Olhe, agora já estou velho de mais...67 anos... Estou a chegar ao fim... Quando o comboio apita, você diz ao homenzinho: “Mas por que é que toma o comboio, temos aqui um calvário lindíssimo para ver, tem acolá uma igreja admirável, venha daí.” Bem, mas eu respondo: “Não, merda, o comboio está quase a chegar e vou tomá-lo, sentar-me, deixe-me em paz, vá você passear.” Ora, eu já estou a ouvir o comboio apitar, compreende? A minha posição é esta.
Sabe, quando temos pela frente um louco, um maluco, ele reconhece-se por três coisas: não saber onde está, que horas são, em que país se encontra, a sua identidade. Bem, eu cá sei perfeitíssimamente quem sou, sei muito bem onde estou e que horas são. São coisas que eu sei muito bem, esse exame posso eu muito bem enfrentar, é o exame básico.
Mas não espere que eu comece a matutar em coisas destas, lá isso não...
- No entanto, e peço desculpa por usar uma palavra que lhe vai parecer inútil, ainda assim é um...
- Sim, venha a grande palavra...
- Desesperado!
- Ah, de maneira nenhuma! Merda, que isso é mais outra história, esse desespero! Absolutamente nada! Seria preciso que eu esperasse qualquer coisa, e não espero nada, espero bater a bota o menos dolorosamente possível, como qualquer outro, e pronto! É exactamente e estritamente tudo... Que ninguém sofra muito por minha causa, por mim, à volta de mim. E depois morrer com tranquilidade, pois então, se possível morrer num ai, ou então acabar comigo, o que ainda seria mais simples. Vivo assim, nesta situação, não transporto comigo desejos de futuro, isso não existe! Não! Não! O futuro vai ser cada vez mais duro, já agora me custa mais trabalhar do que custava há uma ano, para o ano que vem será pior, e pronto! Normal!
- Qual será o título do seu próximo livro?
- O Jogo da Cabra-Cega.
- E o tema?
- Oh, a mesma coisa. Divagação através de uma paisagem. Comigo, não sei se sabe, não é difícil. Eu tinha acabado. Já que falamos de literatura, eu tinha acabado, compreenda. Depois de Morte a Crédito, bem, acabei, pois claro. No fundo, tinha dito tudo quanto tinha a dizer, e não era grande coisa...
Depois aconteceu aquela sacanice e tive de cavar. Dei comigo numa nova peça, e contei o que vi... Depois, pronto. Vale a pena, porque no meu caso me dá um tema. Não tenho de pintar a manta para desencantar temas. “Ah! A sogra que adora o genro a quem o neto vai ao cu, etc...” Comigo não é preciso, não é preciso. Não procuro fazer sexologia, nem psicologia, nem metafísica, só tenho de contar e, como é evidente, transpor. Claro que há nisto uma cozinha, como não, uma cozinha. Agarramos nos factos e depois cozinhamo-los, há gente que come tudo, frango ou qualquer outra coisa. Cozinhar é uma coisa deste género.
- Reconhece-se, ao menos, como mestre de cozinha?
- Talvez haja quem mais tarde vá achar que houve muito melhores do que eu... Veja como as refeições do Luís XIV seriam agora impossíveis... Sabe, também isso é uma questão de gosto, que muda depressa...Oh, se muda...
Diga como eu:
«Prontos para atravessar os desertos e as ondas, e procurar mundos diferentes noutro lado qualquer.»

******** // *************

A entrevista nunca veio a ser transmitida. O seu último livro não se chamou "Jogo da Cabra-Cega", mas sim "Rigodon". O comboio cujo apito Céline já ouvia, chegou nesse mesmo ano. Simbolizava o fim duma viagem, a do homem cuja noite chegava ao fim, e o início de uma outra: a do escritor cuja aurora rompia, a iluminar os píncaros da eternidade que só os génios imortais alcançam.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Escol de cadáveres

Não sei se eles querem dar cabo do "vosso modo de vida". Nem sei se esse vosso modo de vida merece outra coisa senão isso mesmo: uns bárbaros que acabem de vez com ele. Nem sequer por uma questão de justiça: por simples descargo de higiene.
Para ser sincero, quero que eles se fodam, tanto quanto o "vosso tão cantado modo de vida"! Actualizando Cristo: "odiai-vos e ide-vos foder todos uns aos outros!"
De resto, está-vos na massa do sangue: a vertigem da carnificina, a volúpia lemming do despenhadouro. A atávica estupidez da massa deve ter desses momentos de paroxismo. Deve acumular fúrias a expensas de frustrações. Se calhar até é um mecanismo regulador do próprio planeta. E, que diabo, já vai um bom par de anos que não tirais a barriga de misérias.
Sede, caralho, sede qualquer coisa - selvagens sem subterfúgios, nihilistas sem maquilhagem, qualquer coisa de honesto. Já que sonsos, tão lanzudamente sonsos, já mete nojo!...
Tanta cagufa, mascarada de guincharia histérica de empoleirados no mobiliário por cada ratinho que passa, é que já cheira mal. Mas se o fedor nauseabundo fosse só esse...
Podeis bombardear quantos árabes loucos quiserdes, andar ao colo com outros proboscídeos tão ou mais tresvairados, que o aroma não passa. É o aroma da decadência, da ignávia, da putrefacção. Da acédia, especialmente. Sob a coroa da corrupção. O Ocidente há muito que se entrega ao repasto dos vermes. O vírus anda a carcomê-lo há séculos. Já tem lombrigas que lhe cavalgam os miolos, ratazanas a minar-lhe os alicerces, bolores até à medula. Parece uma velha gaiteira, podre de gorda, toda besuntada de cremes, botokes e silicones, toda aparelhada de próteses e sobressalentes, toda esticada a plásticas. Mas o ocidente está oco, é um espantalho sem nenhuma alma lá dentro, com uma cruz de madeira a imitar esqueleto, mas corroída e minada pelo caruncho. Uma reles máquina automática de salsicharia; uma burocracia de semi-robôs ao leme de subgorilas.
Há assassinos a roerem-nos por dentro e outros lá fora, cada vez mais vociferantes, à espera. Mera cortesia de necrófagos.

quinta-feira, setembro 21, 2006

O Novo Lobby Sacrossanto



Oba, o Parlamento Europeu também já tem um Lobby Santo!...
Intitula-se EFI (European Friends of Israel) e teve a sua gala inaugural esta semana.
Aposto que o nosso Vasco Graça Moura faz parte da "comissão instaladora". Agora é que ele vai ao Nobel!...
Ainda durante a gala, botou palavra Shlomo Gilboa, um tipo qualquer de Haifa, que declamou aquela poesia muito popular:
Eu acho que falou verdade, mas apenas na primeira parte. Quando disse que eles representavam aquilo que Israel sustentava. E o lobby, para quem tivesse dúvidas, é prova disso mesmo.
Porém, na minha ingenuidade anacrónica, invadiu-me uma perplexidade: então não era suposto, os ilustres parlamentários, representarem os eleitores dos respectivos países? Quando os elegemos, elegemo-los para defenderem os nossos interesses ou os interesses de Israel? Por falar nisso, quem é que os sufragou para formarem lobby? Auto-elegeram-se? Candidataram-se por sua alta recreação? Foram convidados?
Estão lá para fazer lobby por Portugal ou por um país estrangeiro?
Já sei, já sei: tudo isto é perfeitamente normal.

PS: Quanto às finalidades beneméritas do Lobby, será ainda necessário enunciá-las?

A Corrupção e outros Mitos Urbanos, Part.II



Os Vinte senadores mais corruptos do Congresso Americano:
Sen. Conrad Burns (R-MT)
Sen. Bill Frist (R-TN)
Sen. Rick Santorum (R-PA)
Rep. Roy Blunt (R-MO)
Rep. Ken Calvert (R-CA)
Rep. John Doolittle (R-CA)
Rep. Tom Feeney (R-FL)
Rep. Katherine Harris (R-FL)
Rep. William Jefferson (D-LA)
Rep. Jerry Lewis (R-CA)
Rep. Gary Miller (R-CA)
Rep. Alan Mollohan (D-WV)
Rep. Marilyn Musgrave (R-CO)
Rep. Richard Pombo (R-CA)
Rep. Rick Renzi (R-AZ)
Rep. Pete Sessions (R-TX)
Rep. John Sweeney (R-NY)
Rep. Charles Taylor (R-NC)
Rep. Maxine Waters (D-CA)
Rep. Curt Weldon (R-PA)

Menções desonrosas:
Rep. Chris Cannon (R-UT)
Rep. Dennis Hastert (R-IL)
Rep. J.D. Hayworth (R-AZ)
Rep. John Murtha (D-PA)
Rep. Don Sherwood (R-PA

Neste campeonato, segundo estes resultados, os republicanos cilindram os democratas: 17 a 3!;
e 4 a 1, nas menções.
Já lhes chamam o "dream team".

PS:Peço imensa desculpa por, mais uma vez, não estar a falar na ameaça islamofascista que pende, horrorosa, sobre as nossas cabeças.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Wild West Bank




E o mais engraçado é que não se tratou duma estreia. É uma peregrinação já com tradições. Pois já em 2004, as mesmas IDF, sempre imbuídas dos mais elevados padrões morais, tinham rusgado a cidade de Ramallah, também no West Bank, abastecendo-se então, a fundo perdido e livre de juros, da módica quantia de 7,11 milhões de euros, que embolsaram sem mais aquelas, a pretexto de ser dinheiro do Hammas, da Jihad Islâmica e de outras energumenarias.
Acho que é até por isso que se chama àquela região "West Bank": sempre que os israelitas precisam de dinheiro, vão lá levantar.
Quem é que vocês acham que ia pagar os prejuízos e as vexames causadas pelo Hezzbbollah?...

PS: Uma noite destas, se eu assaltar ali o BES da esquina e desatar a encher os alforges sob a alegação de que é dinheiro da Al-Qaeda, da PT e da IURD, sempre quero ver o que acontece. Sim, sempre quero ver se há alguém com cara -com distinta lata! - para me dizer alguma coisa.

PS2: De qualquer modo -digo-o com pesar - nunca pensei assistir a uma impudicícia destas: ver judeus a assaltarem bancos é o mesmo que dar, em flagrante, com padres, de cacete em riste, a assaltarem igrejas. Ao domingo. E na hora da missa.

PS3: O tempora! O mores!

Brevemente, no Dragoscópio...

A Última Entrevista de Louis-Ferdinand Céline - concedida a Louis Combelle, em 1961.

Neste antro, perto de si.

A Corrupção e outros Mitos Urbanos



Lá está, no Melhor dos Mundos, a melhor das democracias. E na Melhor das Democracias, a melhor das corrupções.
No entanto, esta notícia pode ser mais tortuosa do que parece à primeira vista. Pode ser que os FBIs andem a investigar toda a corrupção, que é imensa (mas constitui tradição nacional lá do sítio, way of life); ou pode ser que andem a inventariar especialmente a "corrupção dos Democratas" (já de si , lendária), de modo a esquadrinhar e pescar "fios de chantagem" com que manipulá-los durante as votações. Especialmente agora (e daí a lufa-lufa), em vésperas de eleições para o Congresso, com as sondagens a vaticinarem um descalabro republicano. A primeira hipótese, sinceramente, parece-me um bocado inverosímel.
Procurar corrupção nos Estados Unidos deve ser como garimpar sardinhas num cardume, ou moscas numa esterqueira. Quer dizer, a dificuldade -a pouca que existe - não é descobri-la: é seleccioná-la.
Exagero? Sem dúvida. Tanto quanto a Mafia ser um mito urbano.

Breve curriculum blogae

A pedido desta menina - e o pedido duma jovem , ainda mais jovem escritora, é uma ordem - lá vou responder a mais um daqueles "não sei quês" em cadeia. Para dar um ar um pouco menos desenxabido à coisa, organizei o depoimento em forma de pequeno currículo (no fundo, é pura sacanice, aproveito para mandar umas indirectas e, como de costume, ficar-me a rir).
Falta apenas pedir desculpa à estimada amiga pelo atraso nestes meus dislates e votos de felicidades para a sua prometedora carreira literária. Ah, e leva mais um, de bónus, como indemnização pela demora. E agora abrigue-se...


1. - Profissão: Desempregado do Império. Faço também uns biscates como ajudante de coveiro, no Cemitério dos Sonhos e Ilusões, às ordens dum tipo chamado Destino.
2. - Posição Política: sobra-me a testosterona para ser de esquerda e falta-me a cartilha para ser de Direita. O Centro, nem vê-lo: é uma coisa deprimente e o único que frequentei foi o de Desemprego.
3. - Habilitações literárias: da passagam por uma faculdade deste país ficou-me um aforismo: “Quanto mais lido com universitários, mais louváveis me parecem os estivadores”.
4. - Experiências radicais: fiz a guerra e descobri que é menos stressante que esta paz vegetal em que nos transumam, desossam e nulificam.
5. - Religião: acredito em Deus (o de Aristóteles); Ele é que, tudo o indica, não acredita em mim.
6.– Filosofia de vida: preservar os testículos e a coluna vertebral.
7. - Preceito de higiene mental: à escala humana, não há bens nem males absolutos. A única coisa que consegue ser absoluta, frequentemente, é a estupidez. E a cegueira voluntária.


Passar este inquérito a alguém é que já exorbita das minhas forças.

Não há teorias precárias




«Every genuine test of a theory is an attempt to falsify it, or to refute it. Testability is falsifiability.»
- Karl Popper

Steven E. Jones é um conceituado professor de física duma universidade norte-americana. Recentemente, dum ponto de vista estritamente científico, fez à teoria oficial do colapso da Torres do WTC aquilo que Karl Popper, esse farol da moda, recomenda (e bem) que se faça. Testou-a exaustivamente. Parece que a teoria não se aguentou lá muito bem.
O relatório e o resultado, que, asseguro, não perdem nada em constatar, encontra-se aqui: «What Caused Not Two but Three World Trade Center Skyscrapers to COMPLETELY Collapse on 9/11/200»

Chamo a atenção que não se trata propriamente duma "teoria da Conspiração", mas sim duma investigação em redor do colapso estrutural das Torres, bem como dum certo número de fenómenos físicos associados.

O professor Jones, entretanto, foi sumariamente despedido pela universidade. Provavelmente, alguém a quem ele terá "falsificado" a teoria, "falsificou-lhe" o emprego. Isto revela uma das grandes verdades essenciais do nosso tempo: não há teorias precárias; há, isso sim, empregos precários.


Uma muito boa noite!...

terça-feira, setembro 19, 2006

Bloguem-nos mucho que eles não se importam.

Eu já me interrogava preocupado (e em contagem descrescente para uma secreta e mirabolante operação de resgate) se a Lolita, o Besugo e o Alonso, atarefados em permanente guerra civil fratricida, não teriam sido confundidos com terroristas islamo-qualquer-coisa e levados -ensacados e à surrelfa - para uma daquelas prisões conficenciais que os mandatários da Democracia Global têm distribuídas pelo mundo.
Mas não. Graças a Deus! Rejubilemos, compatriotas! Estão são e salvos, os artistas! A mistura de líquidos que, meticulosa mas algo ingenuamente, ensaiavam, afinal, após um inesperado estouro acompanhado de muito ruído, apenas lhes escavacou o antigo endereço. Acabo de toscá-los a emergirem completamente ilesos e -maravilha! - nem um pouco aturdidos de entre os escombros. Prova espantosa disso? Ora, ainda mal se levantaram, nem sequer sacudiram a poeira (caliente) e já estão de novo a espingardar uns c'os outros! A Lolita culpa o Besugo, o Besugo desculpa-se com o Alonso e o Alonso reclama com a Lolita.
A nova madrass... digo, morada - pelo menos até que o besugo, com a sua bata explosiva, nalgum ensaio mais peregrino, a mande pelos ares - é esta: www.chumo.blogspot.com.
Actualizai-vos e multiplicai-vos! A seguir, ide lá, em manifestação de apoio. A palavra de ordem para hoje é: «O Blogame mucho não é um blogue murcho!»
Ah, onde raio foram eles buscar aquele "chumo" é que não faço a mínima ideia. Se calhar não escaparam assim tão ilesos dos desabamentos e consequente odisseia através do entulho. No resto estão normais. Quer dizer, continuam o blogue de reais talentos que sempre foram. E com a tão insólita quão abençoada idiossincrasia de o único elemento a perceber de futebol (e a elucubrar sobre ele com algum bom gosto, sageza e propriedade) ser uma senhora.


PS: Não tem de quê. Eu é que agradeço.
Nem sabem os trabalhos, canseiras e homicídios voluntários a que me pouparam.
E, para a próxima, que diabo, contratem umas cobaias e vão vê-las experimentar essas receitas num descampado.

A Camuflagem é uma arte

...

Neste país d’amigos, compadres, gosma a cem,
Onde se laureia o medíocre, o que não presta,
Acreditem: fazer um público elogio a alguém
Não sendo, este, eunuco, cuco, mamo-refém,
É estampar-lhe um alvo bem no centro da testa.

...

Cartas de Estalinegrado. - III






«- Então que amas tu, singular estrangeiro?
- Amo as nuvens...as nuvens que passam...lá longe... as maravilhosas nuvens!»
- Baudelaire, "O Spleen de Paris"


I

«A minha vida não mudou nada, está como há dez anos- consagrada às estrelas e afastada dos homens. Não tenho amigos, e tu sabes porquê. Sentia-me alegre quando me sentava ao telescópio a observar o céu e as estrelas; sentia-me feliz como uma criança que pode brincar com estrelas.
Foste a minha melhor amiga, Mónica. Sim, leste bem: a minha melhor amiga. A altura é séria demais para brincar. São precisos 14 dias para esta carta chegar às tuas mãos. Antes disso saberás pelos jornais o que se passou. Não penses muito nisto, a realidade aparecerá deturpada mas deixa aos outros o cuidado de a esclarecerem. Que te interessa isso a ti ou a mim? Sempre pensei em anos-luz e agora vejo-me reduzido a segundos de vida.
Mónica, o que é a nossa vida comparada com os milhões de anos dos céus cheios de estrelas! Por cima da minha cabeça Andrómeda e Pégaso continuam a cintilar nesta noite tão bela! Olhei-as longamente por sentir que em breve estarei junto delas. Devo-lhes a alegria e a tranquilidade que me enchem, mas neste momento para mim, tu és a mais bela de todas as estrelas. As estrelas são imortais, e comparado com o todo da vida humana é um grão de areia.
À minha volta tudo desaba, morre um exército inteiro, o dia e a noite são um braseiro, e há quatro homens que continuam a ocupar-se de cálculos de temperatura e de altura de nuvens.
Percebo pouco de guerra. Não matei ninguém. Não disparei uma vez sequer. Mas sei bem que isso nada interessa aos inimigos. Ainda gostava de poder continuar a contar estrelas por mais anos, mas não é possível.
Também aqui me ocupo de questões meteorológicas. Somos quatro e sentimo-nos felizes enquanto isto assim continuar. A nossa actividade é em si mesma muito simples: medir a temperatura, o grau higrométrico do ar, calcular a altura das nuvens e as condições de visibilidade. Se um burocrata lesse o que escrevo... violaria uma coisa secreta.»

segunda-feira, setembro 18, 2006

Estratégias e estratagemas



Segundo Shopenhauer, "a Dialéctica Erística é a arte de disputar, e isto de tal forma que se tenha sempre razão -por qualquer meio".
Ora, para se ter sempre razão, por qualquer meio, o grande filósofo pessimista expõe uma série de estratagemas - trinta e oito, mais precisamente. É para o "estratagema 32" que chamo a vossa especial atenção. Passo a enunciá-lo:
«Uma alegação adversa do oponente pode ser rapidamente eliminada, ou pelo menos tornada suspeita, colocando-a numa categoria execrável, ainda que tal ligação seja somente aparente, ou mesmo vaga: por exemplo, "Isso é maniqueísmo, é arianismo; isso é pelagianismo; isso é idealismo; isso é espinosismo; isso é panteísmo; isso é brownianismo; isso é naturalismo; isso é ateísmo; isso é racionalismo; isso é espiritualismo, isso é misticismo", etc. Ao fazer isso, assumimos: 1) que a alegação em causa é efectivamente idênctica a tal categoria, ou está pelo menos contida nela, e bradamos então: "Oh! Já se sabia!", e 2) que tal categoria está totalmente refutada e não pode conter um único termo verdadeiro.»
Este estratagema, escrito em 1830, é, como já devem ter reparado, muito requisitado nos nossos dias. Mais concretamente, vê-se esgrimido ad nausea, a maior parte das vezes sem qualquer pudor ou honestidade. Basta actualizar a lista de "ismos" e adicionar-lhe o "fascismo", "comunismo", "nazismo", "catolicismo", "salazarismo", "nacionalismo", "machismo", "anti-semitismo", etc, etc, e algumas "palavras terminadas em "fobia". As novas minorias iluminadas e totalitárias, à semelhança das antigas, apoderam-se do aparato da propaganda e lançam-no, ferozmente, em campanhas ininterruptas de extermínio de qualquer crítica ou, sequer, dúvida.

A ideia de que o mundo progride é ilusão das mais delirantes. O mundo não progride: chafurda. Geralmente, nos mesmos erros, vícios e filha-da-putices atávicas; e soberanas.

O C.A.F.T.E.N. - Primeira audiência.

O C.A.F.T.E.N (Comité de Análise dos Factos, Técnicas e Empresários da Notícia) reuniu-se. Em acta - para memória, educação e deslumbramento de gerações futuras - foram registadas as presenças de mim próprio, presidente, reitor e Tira-Teimas; o Caguinchas, vogal e consoante lhe dá na telha, mais consoante portanto que vogal; o Dinossauro, chefe do estado maior a que esta bandalheira chegou; o Alfredo Bisnau, secretário técnico e asssessor de imagem; e duas brasileiras sem direito a voto. A ucraniana ao meu colo, não contou, pois, segundo os regulamentos, faz parte do estojo pessoal e honorífico do presidente: entre a nossa confraria, anotem bem, o presidente é aquele que tem a ucraniana ao colo. Caso contrário, ninguém quereria ser o presidente, pois a irresponsabilidade é o único imperativo categórico entre nós reconhecido e consagrado. Já o Armindo Taberneiro pode-se considerar (não digo pode considerar-se, por respeito para com os súbditos, digo, associados) que participou, mas unicamente à distância, na qualidade de observador e despachante de imperiais. A mulher dele, Dona Inzulinda Quitéria, no seu perpétuo avental contra-maçónico, tratou do catering e acudiu, sempre que necessário, como de resto manda a verdadeira receita liberal, com o trotil às ventas parlapiantes, glossofágicas e sequiabundas dos reunidos.
Tive a palavra eu, por auto-concessão soberana, e, lubrificando a goela para extermínio de quaisquer pigarreios superfluos, proclamei - sem mais delongas nem flausinices - o seguinte:
-“Foda-se, pouco barulho!! Calados, caralho!! Mas vou ter que me chatear?!...”.
Ao mesmo tempo, como determina o protocolo, esmurrei a mesa de um modo brutal e osculei lubricamente a ucraniana. Eu disse lubricamente? Ó diabo, é melhor corrigir: queria dizer paternalmente.
A ribaldaria amainou e as brasileiras chegaram mesmo a cacarejar: “Minha nossa!”
Concatenada assim, sobre a minha distinta e ilustre pessoa, a atenção dos demais (uma bela corja de safardanas todos eles, diga-se em abono da verdade) passei à ordem do dia.
-“Assunto!...” . Trovejei, emulando Zeus. – Uma tal Fernanda Câncio, costureira de trivialidades por encomenda, aqui no DN, afirma, chiba e delata o seguinte: que o Primeiro Ministro, durante uma cerimónia pública, vejam lá bem, benzeu-se. Digo mais, não só afirma, chiba e delata, como articuleia e colunoscreve! E não só se benzeu: persignou-se!..."
A assembleia recebeu a notificação com os murmúrios, restolhares e grungunlóquios da praxe. Algum escândalo também; com vários meneios desaprovadores à mistura.
Protocolarmente, como vem consignado nos estatutos, determinei uma pausa para deliberação e análise. Cada comissário socorreu-se do respectivo kit democrático- uma imperial e um pires de caracóis -, e largaram num concurso de brejeirices de encontro às brasucas, as quais ditas fulanas, sendo apenas duas, implicavam uma oferta menor que a procura, fenómeno esse que, segundo os liberais, resulta num encarecimento do produto. Alheio ao mercado, nos seus infinitos embrulhos e desembrulhos, eu, na minha qualidade de presidente, e no exercício dos meus deveres de zelo para com o material que me está distribuído, procedi a uma meticulosa inspecção da ucraniana contígua, certificando-me que tinha - a mocetona - tudo no seu devido lugar. Foi uma alacridade que me deu: não só tinha, como pude regozijar-me com o facto de se apresentar limpa de ferragens esfoliantes e não escalpada onde muito convém. Nestes meandros e cuidados sensíveis, vasodilatei-me a tal ponto que temi pela segurança e longevidade da assembleia. Tratei pois de abreviá-la, não fosse o diabo, pelos dedinhos de fada da ucraniana, tecê-las.
Sob protesto pela irregularidade regimental, e após séria deliberação e análise, começou por depor o Dinossauro.
- “Estamos num estado maior da bandalheira, mas, que diabo, é um Estado laico, ora essa, com mil raios e vejam lá bem!... – preambulou ele.
No que foi logo coarctado pelo secretário técnico Bisnau:
- “Protesto, senhor presidente! Se estamos num estado maior da bandalheira laico, o orador precedente não pode referir-se ao diabo!... É uma entidade metafísica."
Tive que lhe dar razão e ralhar asperamente ao outro. Que, após acto de contrição e dois goles de imperial, prosseguiu:
- “Portanto, como dizia, se este é um estado laico, o primeiro ministro deste interessante estado não deve benzer-se durante cerimónias públicas. Muito menos com a mão direita, como, suspeito, foi o caso. Isso é que não! Com a direita, nunca. Se lhe derem os fornicoques nervosos, deve optar por coçar e escarafunchar compenetradamente as narinas. Mas sempre com a esquerda, friso; retirando o búzio, descendo até ao nível da cintura, tranferindo-o para a direita e depois, com o indicador e o polegar armados desta, catapultando-o na direcção do sapato dum qualquer secretário de estado avulso. Assim é que é. Denota proficiência, organização. Como compete a um dirigente daqueles. Tenho dito."
Aproveitando que o Caguinchas estava distraído com as brasileiras, encristou-se e despulpitou de lá o secretário Alfredo Bisnau. Nos termos que se seguem:
-“Sou de parecer que se o Estado é laico, o primeiro-ministro deve dar o exemplo e abster-se de beatices. Caso a seca seja de meia noite e a comichão mais que muita, recomendo que passe a mão direita pela cabeça, no sentido testa-nuca e depois, com doutorice, enfie o dedo mindinho no orelhame, no bom desimpedimento do canal. Tenho dito.”
Embora contrafeito, temendo o pior e airbagando com as mais diversas ameaças, lá tive que dar a palavra ao Caguinchas. Ganancioso de exibir-se nas suas lendárias galarozices e marialvuras às brasileiras, e no mais que óbvio intuito desonesto de açambarcá-las, disparatou do seguinte jaez:
- “Se o Estado é esse cachorro que vocês p'r’aí dizem, então o primeiro-ministro que se deixe de benzeduras e delicadezas. Para benzeduras existem os padres, que representam Deus. O primeiro-ministro representa o povo, representa-nos a nós –e se nos representa a nós, também me representa a mim..."
Aqui desembestado na lógica, ainda tentei atenuar o descalabro que se anunciava. Dele e meu, que o raio da eslava saía-me uma habilidosa da melhor espécie. Tonitruei, pois, como se impunha:
-"O orador que abrevie a retórica. Há imperiais para beber!...Para além de congressos mais urgentes a que ainda tenho que presidir hoje!..."
- "Já estou a chegar à parte bravia, fique descansado, ó Presidente do Cuspo! -Rosnou ele, incomodado. - Como ia dizendo, se me representa a mim, o Loteia-tachos, trate de agir em conformidade: nas cerimónias solenes, ocupe mas é as mãos a coçar a tomatada como deve ser, ou a apalpar a peida à garina jornalista ou doutora que esteja mais à mão e mais ao pé! Ele que monte mais nas gajas e menos no povo, que é ver todo um país a medrar!... Ah, e quanto ao cabrão do cachorro, o tal laico, que lhe ponha um açaime que é para ver se o filho da puta nos deslarga das canelas!...”
Consumada a catástrofe, aproveitei para dar por encerrada a audiência (até porque um outro imperativo - sobremaneira categórico – me convocava). E escafedi-me de roldão, com o estojo, para as emergências.
As brasileiras? Ora, levou-as o diabo, na figura do Caguinchas, deixando os outros dois, mais que treinados na coisa, a chuchar não no dedo, tranquilizai-vos, mas numa canecas bem frescas e numas patas de santola a crédito, com que o Mefistófeles da Graça, em perfeita sincronia, os indemnizou e sobornou pelo direito exclusivo à dose dupla de pitéu exótico com que, imagino, se refastelou nessa mesma noite.

domingo, setembro 17, 2006

É um dos dons dos génios: a Profecia



«À medida que a democracia é aperfeiçoada, o cargo de Presidente representa, cada vez mais, a alma íntima do povo. Num grande e glorioso dia destes, os vulgares tipos desta terra alcançarão finalmente o seu mais profundo anseio e a Casa Branca será então adornada com um completo retardado mental.»

- H.L. Mencken

Epístola a Neo-Pangloss

Preclaro MCB,
Ilustríssimo,

Suponho que esse Deus da Decência que Vª. Excª nos anuncia seja o providencial (e até aqui inescrutável) demiurgo do Melhor dos Mundos. Uma tal revelação –creia-o solenemente – deixa-me avassalado e pronto a sabe Deus que peregrinações devotas e macerantes.
Se não fosse temer que tal possa constituir um abuso da sua prodigalidade benemérita, até lhe suplicaria a caridade de me informar do endereço de tão pulcra deidade, bem como o horário de recepção ao público, para que eu, e outros crentes inveterados da minha laia, corramos a prostrar-nos e espojar-nos (sobretudo mentalmente) a seus pés. A seus, Dela, sublime deidade, entenda-se, mas também a seus, seus, Mestre MCB, iluminado e prefulgente profeta da Mesma, além de Mais Feliz dos Homens e dos Sábios. Por conseguinte, “a seus” ao quadrado: seus seus e seus Dela. Ou será ao cubo?...
Seja como for, a suspeita devém certeza: Vossa Eminência sobrevoa-nos a uma grande altura. Um nível incomparavelmente acima da blogosfera, da estratosfera, da noosfera, enfim, numa deriva orbital decente apenas ao alcance de predestinados: a castelobrancosfera!
Enquanto aguardo, em excruciante expectativa, que Vossa Santidade aterre elegantemente desse Sinai, com a redacção completa e acabada das Novas Tábuas debaixo do braço, roo-me e atormento-me, cativo de uma mortificante dúvida: que toilette deverei levar à peregrinação inaugural?!... (Perdir-Vos uma sugestão, nem me atrevo. Porque isso, mais que abuso, estadearia indecente desfaçatez).

Sinta-se louvado, Meu Salvador!
Retiro-me, rastejando e arando - encomiasmático - com a penca os solos. Deixando-lhe, para terminar, e em tributo, imagens do melhor dos Mundos...




- Abnegados caixeiros viajantes do Melhor dos Mundos, em merecida pausa nos árduos trabalhos da evangelização ao domicílio, relaxando na Green Zone, em Bagdad.

....

sábado, setembro 16, 2006

Crise ecuménica

Sobre esta crise última, papalo-muçulmanesca, que tanto parece excitar certas alminhas, tenho a depor, sucintamente, o seguinte:
O Santo Padre, claramente, está com o rebanho trocado. Levam mais a sério e dão mais importância ao que ele diz os muçulmanos do que os católicos.

Cartas de Estalinegrado - II



"Nossa Senhora das Lágrimas que estás
sentado lá no Topo do Mundo,
e olhas as coisas, boas e más
cá dentro dos homens, bem no fundo.

Nossa Senhora das Lágrimas que és
a verdadeira Soberana deste Reino,
com a dor das almas toda a teus pés
e o desespero humano deitado no teu seio...

Nossa Senhora das Lágrimas que vês
os fios deste nosso Destino atroz,
e em silêncio escutas inúteis porquês
Nossa Senhora das Lágrimas, reza por nós!..."

XXXV

«Tenho chorado tanto nas últimas noites que eu próprio não sei como resisto. Já vi um camarada meu chorar, mas por outro motivo. Chorava por ter perdido o carro blindado que era todo o seu orgulho. E por mais inconcebível que pareça, eu compreendo que se possa chorar a perda de material de guerra. Para ele, era uma coisa que tinha vida. O facto é que dois homens choram. Sempre me comovi facilmente: um acontecimento chocante, uma acção nobre, faziam-me chorar. O mesmo me acontecia no cinema e até ao ler certos livros ou ao ver um animal sofrer. Nessas alturas esqueço o mundo que me rodeia e vivo intensamente aquilo que vejo e sinto. Pelo contrário, sou insensível à perda do material de guerra e era incapaz de chorar por um carro blindado que ficou na estepe feito em pó pela artilharia... Desta vez choro por ter visto um homem irrepreensível, um soldado corajoso, duro e inflexível chorar como uma criança.
Na terça-feira, com o meu tanque, pus fora de combate dois T-34 que se tinham infiltrado nas nossas linhas. Foi um combate magnífico e impressionante. Momentos depois aproximei-me dos despojos fumegantes. Pendurado para fora da torre um ser humano tinha a cabeça pendida e as pernas juntas e queimadas até ao joelho.
Ainda estava vivo e gemia. Devia ter dores horríveis e não havia possibilidades de o salvar. Mesmo que eu lhe quisesse poupar a vida, ele viria a morrer depois dumas horas de sofrimento pavoroso. Liquidei-o com as lágrimas a correrem-me pelas faces, e há três noites que choro por este Russo que matei. As cruzes que se erguem em Gumrak assinalando as sepulturas dos meus companheiros mortos, arrasam-me os nervos. Tenho medo de nunca mais poder dormir sossegado quando voltar para junto de vós. A minha vida é um contra-senso pavoroso.
Agora durante o dia combato com canhões. Sempre que fazemos fogo há um tanque que fica em chamas. Já fizemos isto a oito e deveríamos chegar à dúzia, mas só nos restam três projécteis. Atirar a tanques é diferente de jogar ao bilhar, e de noite choro como uma criança. Que mais nos espera ainda?»

XXVIII

«Custa-me escrever-te esta carta, tanto quanto te há-de custar a lê-la! Infelizmente não leva boas notícias. Antes de tas vir dar deixei passar dez dias, mas isto não as melhorou. A nossa situação agravou-se de tal maneira que - como eu bem receava - em breve estaremos completamente isolados do mundo. Soubemos há pouco que este é o último correio que daqui sai. Se eu soubesse que ainda havia outro, teria esperado, não dava ainda estas notícias, mas assim, sempre as dou. Para mim a guerra terminou.
Estou no Hospital de Gumrak e espero ser evacuado de avião. Espero com tanta ansiedade esse momento, que me parece que o vejo cada vez mais longe. É para mim uma grande alegria voltar para casa, e para ti também, minha querida mulher. Mas, o estado em que volto é que não te pode dar alegria. E fico totalmente desesperado quando penso em te aparecer inválido - tens de o saber - amputaram-me as pernas.
Vou contar tudo, lealmente. A perna direita ficou completamente esfacelada e foi amputada por cima do joelho: a esquerda por cima da coxa. O médico assegura que com aparelhos poderei andar como qualquer pessoa. É um bom homem, cheio de boas intenções. Queira Deus que diga a verdade! Já sabes tudo. Querida Elise, queria saber o que tu pensas. Não tenho nada que me distraia e passo o tempo todo a pensar nisto. Penso muito em ti, tenho também desejado morrer - é um grande pecado - nem devia dizê-lo.
Nesta tenda, somos mais de oitenta, mas o número dos que estão estendidos lá fora nem tem conta. Através das paredes da tenda ouvem-se os gritos e os gemidos, e ninguém lhes pode valer. Ao meu lado está um tenente de Bromberg com uma terrível ferida no ventre. O médico disse-lhe que em breve voltaria para casa, mas o enfermeiro disse: "Não passa desta noite...nem se lhe toca." Este médico é boa pessoa, apesar de tudo! Do outro lado, entre mim e a parede, está um soldado de Breslau que não tem um braço nem nariz; disse-me que já não precisava de lenços de assoar. Quando lhe perguntei como se arranjava quando chorasse, respondeu-me que aqui já ninguém chora. Que são outros que brevemente chorarão por nós.»