sábado, setembro 02, 2006

Guliver em Liliput, ou Viagem ao Cu da Noite

«A literatura, se verdadeira, descreve abismos por onde vagam monstruosidades dilaceradas: homens perdidos da esperança à procura duma alma.»
- Dragão


«Ah! Foi substituído o patrão! As suas violências, as suas larachas, as suas artimanhas, todas as suas badalhoquices publicitárias! Sabem enfeitar o pechisbeque! Não foi preciso esperar puto! Já subiram para o poleiro os novos alcovetas!... Reparem nos novos apóstolos... Barrigudos e com voz maviosa!... Grande revolta! Grande batalha! pequeno saque! Avaros contra Invejosos! Tanta algazarra para isto! Nos bastidores mudou-se de focinho... Neo-topázios, neo-Kremlin, neo-putas, neo-lenines, neo-jesus! Eram sinceros no princípio... Presentemente, todos compreenderam! (Os que não compreendem: fusilam-se.) Não são culpados, são submissos!... Não teriam sido eles mas os outros... Aproveitou-lhes a experiência... Estão de olho alerta como sempre... A alma é agora o "cartão vermelho"... Está perdida! nada mais!... Eles estão a par de todos os tiques, todos os vícios do mísero proleta... Deixá-lo engolir! Deixá-lo desfilar! Sofrer! fanfarronar!... Deixá-lo denunciar!... É da natureza dele!... Não pode nada contra!... O proletário? metido em "casa"! Lê o meu jornal! Lê a minha prosa, aquela ali, exacto, não aqueloutra! Põe-te bem na força dos meus discursos! E não vás para lá disso, ó sacana! Se não queres que te corte a cabeça! É o que ele merece, não outra coisa!... A jaula!... Quando é chamada a bófia, sabe-se o que nos espera!... E não se acaba tudo aqui! Faz-se o que se puder para não se ficar com cara de responsável! serão tapadas todas as saídas! Tornar-nos-emos «totalitários«! Com os judeus, sem os judeus! Nada disso tem importância!... O principal é que se mate!... Quantos cristãos teimosos acabaram na fogueira durante as épocas obscuras?... Na boca dos leões?... Nas galés?... Inquisicionados até ao tutano? Por mor da Conceição de Maria? ou de três versículos do Testamento? Não é possível contá-los! Motivos? Facultativos!... nem vale a pena existirem!... Nesse aspecto os tempos não mudaram muito! Não estamos mais exigentes! Todos podemos dar o berro por mor de uma coisa que nem sequer existe! Um Comunismo a fazer caretas!... Não tem importância nenhuma no ponto a que chegamos!... É o que se chama morrer por uma ideia ou então não percebo nada!... Ao fim e ao cabo somos puros sem darmos por isso!... Calculando bem, não será isso a esperança? E o futuro estético também! Guerras de que se não sabe o porquê!... Cada vez mais formidáveis!... Que nunca mais deixarão ninguém sossegado!... em que toda a gente rebentará... se tornará herói ali no local... e pó para cúmulo de tudo!... E a terra ficará livre... Pois nunca servimos para nada... A barrela pela Ideia... »

- Louis-Ferdinand Céline, "Mea Culpa"

Medir a literatura com bitola política é o mesmo que forçar Guliver a desfilar a última moda de Liliput. Do ponto de vista de anõezinhos talvez pareça, essa, uma tarefa fascinante, um empreendimento a todos os títulos razoável, quando não imperial. Mas tais palácios, ainda mais consumidos de tais fogos no rabo, ao simples humano -gigante descomunal e aberrante para tais micróbios - outra coisa não suscita que uma mijadela lá bem do alto, em chuveiro apagador. Que os minúsculos, certamente, tomarão por ofensa imperdoável, mas que o colosso despeja na melhor das boas intenções.
No que interessa, no que é essencial, Céline nunca foi nazi: foi lúcido. O resto é conversa de piolhos púbicos (e púdicos) entre florestas de pintelhices.
Aliás, no que concerne aos "grandes celinianos", os Zés-e-joões-pedros da exclusiva pívia canhota, que lêem com preservativo, ambientizador e ressalva, mal lhes oiço clamar "Celine, grande Celine!...", acode-me logo uma interjeição óbvia e automática: "Dion?"

Sem comentários: