domingo, setembro 24, 2006

Cartas de Estalinegrado - IV.





O maior contingente que a morte recrutou, a ferro e fogo, no açougue de Estalinegrado não foram soldados alemães ou russos, muito menos nazis ou comunistas. Foram soldados desconhecidos.



XXXVI

«Há um ano que você escreve a um desconhecido que não tem ninguém no mundo. Eu recebia as suas cartas, e nas longas noites de inverno ouvia pulsar o coração que nelas falava, ouvia ainda o pulsar do coração dos camponeses e dos animais; das plantas e dos cumes dos montes, a voz do vento e dos aludes de neve.
Você dizia sempre que eu, (o soldado desconhecido) devia encontrar nas cartas força, coragem e fé. Digo-lhe hoje que efectivamente as suas linhas sempre me deram força e coragem. Mas a fé está morta, tão morta como eu e cem mil camaradas meus estaremos dentro de um mês...
Hoje escrevo-lhe por dois motivos. primeiramente como soldado desconhecido a quem você dantes se dirigia, para me despedir de si, e em segundo lugar por supor que você vai passar a escrever a outro desconhecido para com as suas cartas lhe dar força, estímulo e coragem. E fé.
Menina Adi, é este o motivo mais importante. Pode-se demonstrar que se deve ter fé, mas quando uma pessoa se sente vendida como se fosse um animal, quando se reconhece que ter fé, em qualquer coisa boa foi tempo perdido, é nosso dever pedir aos outros que vejam as coisas como elas são.

XXXI

Quantas cartas escrevi eu até agora? Com a de hoje segundo as minhas contas, passam de 38. Numa carta que me escreveu em Agosto, você dizia-me que estava a fazer um album de correspondência (uma autêntica colecção de seres humanos), com direcções, particularidades, indicações de quando conheceu os seus correspondentes, da evolução da vossa amizade. Foi uma coisa que me divertiu deliciosamente. Também juntou à colecção a fotografia que lhe mandei? O meu album de correspondência não prima pela exactidão: tenho a certeza de que o seu sistema é muito mais perfeito do que as cruzinhas que eu faço no meu calendário de bolso. Mas afinal pouco importa que eu lhe tenha escrito 36 ou 37 cartas. Sou o seu correspondente número cinco. Deve ser muito interessante ler todas as cartas que você recebeu, que todas vêm de frentes de batalha. Quando a guerra acabar você tem material para fazer uma antologia de cartas. Queríamos encontrar-nos pela primeira vez; era em Karlsruhe não era? Mas isto vai muito mal. Vejo o futuromuito, muito negro. Já quase não há esperanças! Graças a Deus pouco me custa morrer. Não tenho sequer para recordar o nosso encontro ou a nossa separação.
Ai minha amiga, minha boa amiga, apesar de tudo sempre custa! É horrível passarmos os dias sem fazer nada - só a olhar; com o tempo acabamos por endoidecer. Se eu pudesse voltar ao mês de Setembro em que tive estilhaços de granada no braço e em que podia voltar para a Alemanha! Mas queria estar aqui quando tomássemos Estalinegrado, e agora já tenho lamentado muitas vezes a loucura em que me meti.
As minhas cartas iam cheias de alegrias;eu estava sempre alegre como um pardal, como você pôde verificar,mas agora essa boa disposição acabou - o momento é grave.
Que vai você escrever na sexta coluna do seu album? Em caso algum escreva "Morto em defesa da Grande Alemanha,etc...",não está certo! Escreva antes "Morto em defesa da Hanna, etc..., etc, etc."
Oxalá você não ache este estilo frívolo. Quero falar-lhe dos seus outros correspondentes. Mais cedo ou mais tarde, com certeza,alguns deixarão de dar notícias, mas duma forma diferente. DE repente, deixam de escrever. As suas cartas ficam sem resposta. tenho o dever de lhe comunicar. Menina Hanna, esta é certamente a minha última carta. Adeus! Esta luta desigual e louca que aqui suportamos faz-me perder a esperança de nos vermos um dia. Adeus! e ao despedir-me, quero agradecer-lhe de todo o coração o tempo que passou a escrever-me. Ia a dizer "que perdeu" mas reconsiderei que afinal não foi tempo perdido, pois as suas cartas deram-me muita alegria.»

1 comentário:

dragão disse...

As mulheram jamais incomodam os "espaços másculos". Pelo contrário, justificam-nos. E conferem-lhes uma genuína razão de ser.

Queira aceitar as minhas homenagens!...