domingo, setembro 03, 2006

Memória perdida. I. O singularismo português

« O Português é sem dúvida um ser especial. Fatalista e corajoso, habituou-se ao terrorismo e vive com ele, como um doente com o seu mal. Ao visitar o Norte, fiquei estupefacto, por ver portugueses continuar com o seu comércio ou explorar as suas plantações, na própria zona onde o exército se encontra em luta com grupos rebeldes. Que dizer então daquele vendedor de lotaria, originário dos Açores, que, na sua bicicleta a motor atravessava a perigosa zona de Uige para ir vender a "sorte grande"? Confessou-me ele, com o seu sotaque inimitável, que exercia este ofício havia já alguns anos, que os terroristas também compravam a lotaria, constituindo até um bom terço da sua clientela. Não é fácil imaginarmos um Americano a fazer o mesmo no Vietnam, ou um Francês na Argélia! "O senhor não vai acreditar", acrescentou este Português, "mas acabam de capturar, armas na mão, um Negro a quem eu vendi, há três meses, a sorte grande: 200.000 escudos. Deu-me 20.000 escudos de alvíçaras; com esse dinheiro vou comprar um automóvel". O homem confessou-me também que ganhava por mês, graças a este modo de vida "especial", cerca de 200 dólares, não contando com as gorjetas generosas dos felizes contemplados.(...)
O Paternalismo português, em relação aos indígenas, permite uma assimilação real. A integração tornou-se possível, não só graças à política oficial, tendente à criação duma sociedade pluri-racial, como também porque esta distância material diminui constantemente. Torna-se sem dúvida mais fácil para o Negro não evoluído ascender a um nível superior quando o próprio Branco tem um padrão de vida extremamente modesto. (...)
Na comunidade angolana, Brancos e Negros fazem o que podem para ganhar a sua vida. Se há demasiados Brancos, criados de café, os Negros podem ter outros empregos. Na verdade, o lugar de criado de café fascina-os porque é bem remunerado e porque as suas necessidades são mínimas. Não me acreditarão se lhes disser que, ao lado do meu hotel, há um café onde todos os criados são Negros. Todos ganhavam, segundo eles, 100 dólares mensais, o que lhes permitia à noite voltarem para casa de táxi, em grupos, ou individualmente. Agradava-lhes muito mais fazera viagem de táxi do que em bicicleta. Achavam também perfeitamente normal que táxis, guiados por Brancos, os esperassem à porta até àsd uas ou três da manhã, na atitude respeitosa devida a qualquer bom cliente. Lamento aqueles pobres Brancos, motoristas de táxi, assalariados ou proprietários, que transportavam nos seus carros, amorosamente cuidados, uma dúzia de Negros, homens, mulheres e crianças, apertados como sardinha em lata e carregados de cestos. Parecia que o carro ia rebentar. Por falta de clientela, estes Portugueses transformavam os seus táxis em camiões e, ainda por cima, ajudavam o negro e a família a instalarem-se com as suas trouxas! Nunca vi em qualquer outra parte de África motoristas de táxi aceitarem passageiros negros. E não esqueçamos que isto se passou já depois do terrorismo.»


- Mugur Valahu, "Angola - Chave de África"

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