terça-feira, setembro 19, 2006

Cartas de Estalinegrado. - III






«- Então que amas tu, singular estrangeiro?
- Amo as nuvens...as nuvens que passam...lá longe... as maravilhosas nuvens!»
- Baudelaire, "O Spleen de Paris"


I

«A minha vida não mudou nada, está como há dez anos- consagrada às estrelas e afastada dos homens. Não tenho amigos, e tu sabes porquê. Sentia-me alegre quando me sentava ao telescópio a observar o céu e as estrelas; sentia-me feliz como uma criança que pode brincar com estrelas.
Foste a minha melhor amiga, Mónica. Sim, leste bem: a minha melhor amiga. A altura é séria demais para brincar. São precisos 14 dias para esta carta chegar às tuas mãos. Antes disso saberás pelos jornais o que se passou. Não penses muito nisto, a realidade aparecerá deturpada mas deixa aos outros o cuidado de a esclarecerem. Que te interessa isso a ti ou a mim? Sempre pensei em anos-luz e agora vejo-me reduzido a segundos de vida.
Mónica, o que é a nossa vida comparada com os milhões de anos dos céus cheios de estrelas! Por cima da minha cabeça Andrómeda e Pégaso continuam a cintilar nesta noite tão bela! Olhei-as longamente por sentir que em breve estarei junto delas. Devo-lhes a alegria e a tranquilidade que me enchem, mas neste momento para mim, tu és a mais bela de todas as estrelas. As estrelas são imortais, e comparado com o todo da vida humana é um grão de areia.
À minha volta tudo desaba, morre um exército inteiro, o dia e a noite são um braseiro, e há quatro homens que continuam a ocupar-se de cálculos de temperatura e de altura de nuvens.
Percebo pouco de guerra. Não matei ninguém. Não disparei uma vez sequer. Mas sei bem que isso nada interessa aos inimigos. Ainda gostava de poder continuar a contar estrelas por mais anos, mas não é possível.
Também aqui me ocupo de questões meteorológicas. Somos quatro e sentimo-nos felizes enquanto isto assim continuar. A nossa actividade é em si mesma muito simples: medir a temperatura, o grau higrométrico do ar, calcular a altura das nuvens e as condições de visibilidade. Se um burocrata lesse o que escrevo... violaria uma coisa secreta.»

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