Em 1961, Céline concedeu a sua última entrevista. Esta, foi gravada com o intuito de vir a ser radiodifundida.
É a transcrição da mesma o que se segue.
- O Amor ocupa um grande lugar nos seus romances?
- Nenhum. Não tem que lá estar. Quando se é romancista o que deve haver, sobretudo, é pudor.
- E amizade?
- Nenhum. Não tem que lá estar. Quando se é romancista o que deve haver, sobretudo, é pudor.
- E amizade?
- Também se não fala dela!
- Acha, então, que acima de tudo deve falar-se dos sentimentos sem importância?
- Não, não falar de sentimentos.
Falar do trabalho. Só ele é que conta, mas ainda assim com muita discrição...Fala-se dele com publicidade a mais...
Somos objectos de publicidade, manequins de publicidade. É nojento, vai sendo tempo de fazermos uma cura de modéstia geral. Na literatura, como no resto, estamos empestados de publicidade! É verdadeiramente indecente! Por isso resta-nos fazer o nosso trabalhinho e ficar calado, mais nada.
O leitor olha ou não olha, vai lê-lo ou não vai lê-lo, é uma coisa que só lhe diz respeito. Depois... acabou-se, só resta o autor desaparecer.
Somos objectos de publicidade, manequins de publicidade. É nojento, vai sendo tempo de fazermos uma cura de modéstia geral. Na literatura, como no resto, estamos empestados de publicidade! É verdadeiramente indecente! Por isso resta-nos fazer o nosso trabalhinho e ficar calado, mais nada.
O leitor olha ou não olha, vai lê-lo ou não vai lê-lo, é uma coisa que só lhe diz respeito. Depois... acabou-se, só resta o autor desaparecer.
- Uma vez disse-me que escrevia para encontrar uma “musiquinha”.
- Ah, quanto a isso está encontrada, não é verdade? Pois bem... trata-se do lado técnico.
Consistia em atravessar a linguagem que temos, a escrita académica, para fazer dela uma coisa viva. E para fazer dela uma coisa viva era preciso dar um encontrão à linguagem escrita habitual, que é uma linguagem convencional, académica, pobre. Empobrecemos o francês antigo, empobrecemo-lo para ficar académico. De um tal modo os jesuítas acabaram por apertá-lo, que a língua que temos é uma língua impossível.
Ao passo que na linguagem falada ainda a encontramos viva. Mas é necessário fazer a linguagem escrita passar através da linguagem falada, e isso é tão duro que ninguém quer fazê-lo.
Os autores são calaceiros, tradicionalistas! Então escrevem como o jornal que costumam ler, e como lhes ensinaram na escola e no liceu... o que é uma linguagem morta.
Já se brincou muito com essa coisa do francês língua morta, mas não podemos dizer... o francês que retemos é esse, nem mais. Como é evidente, há duas coisas a considerar: precisamos de um estilo, não é verdade? E então isso é muito duro. O estilo é que dá a tal “musiquinha”. Mas temos de avançar, de atravessar a linguagem falada. À linguagem popular podemos ir buscar aquilo que se chama palavreado grosseiro. Ou seja, numa tasca qualquer ouvem-se palavras estranhas e expressões curiosas. Mas são coisas sem dimensão. Para as montar é preciso construir um edifício. É preciso uma arquitectura, e então essa arquitectura, bem... minha nossa, é preciso termos trabalho. Não é? A arquitectura é que está na base de todas as artes.
- Pelos vistos, não escreve só pelo prazer de escrever?
Consistia em atravessar a linguagem que temos, a escrita académica, para fazer dela uma coisa viva. E para fazer dela uma coisa viva era preciso dar um encontrão à linguagem escrita habitual, que é uma linguagem convencional, académica, pobre. Empobrecemos o francês antigo, empobrecemo-lo para ficar académico. De um tal modo os jesuítas acabaram por apertá-lo, que a língua que temos é uma língua impossível.
Ao passo que na linguagem falada ainda a encontramos viva. Mas é necessário fazer a linguagem escrita passar através da linguagem falada, e isso é tão duro que ninguém quer fazê-lo.
Os autores são calaceiros, tradicionalistas! Então escrevem como o jornal que costumam ler, e como lhes ensinaram na escola e no liceu... o que é uma linguagem morta.
Já se brincou muito com essa coisa do francês língua morta, mas não podemos dizer... o francês que retemos é esse, nem mais. Como é evidente, há duas coisas a considerar: precisamos de um estilo, não é verdade? E então isso é muito duro. O estilo é que dá a tal “musiquinha”. Mas temos de avançar, de atravessar a linguagem falada. À linguagem popular podemos ir buscar aquilo que se chama palavreado grosseiro. Ou seja, numa tasca qualquer ouvem-se palavras estranhas e expressões curiosas. Mas são coisas sem dimensão. Para as montar é preciso construir um edifício. É preciso uma arquitectura, e então essa arquitectura, bem... minha nossa, é preciso termos trabalho. Não é? A arquitectura é que está na base de todas as artes.
- Pelos vistos, não escreve só pelo prazer de escrever?
-Ah! De maneira nenhuma! Absolutamente nada! Se eu fosse livre e tivesse dinheiro, nem uma linha escreveria! O artigo 1º. É este. Poderia pensar numa porção de coisas, mas não sentiria necessidade nenhuma de as comunicar.
- Mas como artigo 2º. Não poderíamos dizer que, dispondo de imenso dinheiro, também escreveria, nem que fosse só para si?
- Não, de forma nenhuma! Absolutamente nada! Descansaria. Acha que, no seu caso, aos 67 anos ainda andaria a escrever? Aos 67 anos, andar com os instrumentos às costas? Imagine! Mandava-os à vida e reformava-se, acabou-se... Aliás, é idiota, não se vai...
Um velho imbecil é uma coisa tão estúpida como ser lúbrico ou gostar de conferências... É tudo grotesco, é exibicionismo, é cabotinismo. Visto isso, qualquer coisa que também podemos dispensar.
Um velho imbecil é uma coisa tão estúpida como ser lúbrico ou gostar de conferências... É tudo grotesco, é exibicionismo, é cabotinismo. Visto isso, qualquer coisa que também podemos dispensar.
- Nenhum dos seus livros foi escrito com uma intenção que ultrapassa o prazer de ganhar dinheiro?
- Ah, nenhum! Isto posso eu dizê-lo francamente. Dinheiro, nada faço para ganhá-lo. Não, isso, há que ser justo. Sei dar conta do meu recado, não é verdade? Mas dizer que me dê gosto, isso não!
As pessoas que dão conta do seu recado, bem, não é que gostem de fazê-lo. Gostariam mais de ir à pesca. Há matemáticos que não gostam de matemática, é uma coisa que se vê. Há físicos que não percebem nada de física, a quem ela não diverte nada, que gostariam mais de ir apanhar flores, como eu compreendo isto...
As pessoas que dão conta do seu recado, bem, não é que gostem de fazê-lo. Gostariam mais de ir à pesca. Há matemáticos que não gostam de matemática, é uma coisa que se vê. Há físicos que não percebem nada de física, a quem ela não diverte nada, que gostariam mais de ir apanhar flores, como eu compreendo isto...
- De qualquer forma, desde há vinte anos ouvimos fizer-lhe que não gosta de escrever, e apesar disso escreve.
- Bem, as circunstâncias obrigam-me a isso, continuam a obrigar-me porque devo seis milhões à Gallimard. A história é só esta, e muito simples.
Todos os anos, todas as vezes que sai um livro meu, é dinheiro que eu pago.
Todos os anos, todas as vezes que sai um livro meu, é dinheiro que eu pago.
- Não escreve por amor ou por ódio?
- Oh, de forma nenhuma! Nem por um nem por outro. Caso eu tenha os sentimentos que referiu, só a mim me dizem respeito, não dizem respeito ao público.
- Mas, de um modo ou de outro, os seus contemporâneos interessam-lhe...
-Oh, não, de forma nenhuma!
- Indiferente?
- Absolutamente indiferente! Por estranho que pareça, eles é que se interessaram por mim.
Sim interessei-me uma vez, para tentar que não fossem combater na guerra. Santo Deus, foram lá parar... E, se não foram, é como se fossem. De qualquer forma, mesmo sem andarem na guerra voltaram carregados de glória. Pelo que me toca lixaram-me, na prisão.
E pronto. Só vi isto na história dos homens. Não vi mais nada, e por isso andei mal preocupando-me com eles... Não devia tê-lo feito. Eu estava sossegado, só devia meter-me naquilo que me diz respeito.
Sim interessei-me uma vez, para tentar que não fossem combater na guerra. Santo Deus, foram lá parar... E, se não foram, é como se fossem. De qualquer forma, mesmo sem andarem na guerra voltaram carregados de glória. Pelo que me toca lixaram-me, na prisão.
E pronto. Só vi isto na história dos homens. Não vi mais nada, e por isso andei mal preocupando-me com eles... Não devia tê-lo feito. Eu estava sossegado, só devia meter-me naquilo que me diz respeito.
- Nos seus últimos livros, apesar de tudo há um certo número de sentimentos que transparecem...
- Ah, quanto a isso podemos tornar transparente seja o que for, não é difícil.
- Quer convencer-me de que se trata apenas de um exercício de estilo ou de uma história, aquilo que quis contar? Que nada de seu, íntimo, lá existe?
- Oh, não, não, de íntimo não. Talvez haja uma coisa – a única coisa que talvez seja verdadeira -, é que não sei gozar a vida, não vivo. Não existo. E então, como não gozo a vida tenho esta superioridade em relação aos outros, que estão realmente podres mas sempre a gozar a vida. Gozar a vida é beber, enfardar, arrotar, foder, é uma porção de coisas que pregam com o homem no zero, e com a mulher também.
Quanto a mim, nasci de um modo que me impede completamente de gozar, mas até calha bem, reconheço, sei isso muito bem, sei seleccionar, sei saborear.
Dizia um romano que “o deboche não é entrar num bordel, é não sair de lá”. Bem, eu cá levei a vida a entrar nos bordéis mas a sair logo deles, não são coisa que me divirta.
Como não bebo, não gosto, bebidas e o resto, como não gosto de comer, isso chateia-me, então...
Eu cá sou assim, pouco dotado. A minha mãe era assim, e herdei dela este estranho temperamento que consiste em não saber gozar absolutamente nada, nada, nadinha. Só tenho uma vontade, dormir e não ser chateado, o que não é agora o caso.
- Quer convencer-me de que os seus livros não se parecem consigo?
- OH, claro que sim, absolutamente nada!
- Se alguém afirmasse que o reconhecia nos seus livros, o que lhe diria?
- Oh! Não me reconhecem nada, reconhecem... o tanas. Não me reconhecem absolutamente nada!
Avaliando pela correspondência e pelas coisas que recebo, é totalmente o contrário, por isso... Tudo quanto possa haver de ecos meus, as pessoas não os procuram.
- Quer realmente demonstrar que a sua obra é qualquer coisa totalmente exterior a si?
- Ela é minha, sou capaz de dar conta do recado, isso é verdade, e os outros não conseguem. Ainda por cima lixam-me, para se gabarem de ter conseguido fazê-lo. Mas não conseguiram. Umas bestas! Não é verdade?
Não conseguem, não foram feitos para isso, de maneira nenhuma, nenhuma. Mas insistem... Ah, vais receber uns recados, vou enviar-te umas coisas, os prémios são para nós...
Não há crítico que não tenha encontrado 150 Balzacs durante a sua carreira, mas depois nunca mais se ouve falar desses tipos.
Tudo mentira! É tudo mentira! Não percebem é nada do assunto. Há dois, três tipos que foram escritores na grande época, sinto isso, sim, Morand, Ramuz, Barbusse eram escritores, tinham o sentido do que era sê-lo, tinham sido feitos para isso. Mas os outros não, santo Deus, não! Uns impostores! Bando de impostores! Pois bem, esses impostores é que são os mestres, aliás Brunetière já tinha a dito: “Se a crítica não estiver muito atenta, as letras serão devoradas pelo charlatanismo”.
Já foram. E os críticos também. Foi tudo devorado pelo charlatanismo.
- Quer também dizer-nos, e garantir-nos, que é exterior a esta vida? É alguém que não pertence a esta vida?
- Tal qual, é completamente certo. Trata-se da minha interioridade, só minha, não incomoda ninguém e eu próprio sei que não tenho necessidades materiais, não fui feito para elas.
- Mas foi um dos homens mais apaixonados deste século!
- Sim, fui, porque me forçaram a exteriorizá-lo. Nunca ninguém teria sabido, se eu não tivesse sido forçado por razões materiais. Ter-me-ia mantido tranquilo...
Sim, uma vez, uma só vez e a propósito desta guerra. Disse para comigo: “Ah! Merda! É preciso fazer qualquer coisa, os pobres destes franceses vão embarcar numa coisa de que não podem sair”. De facto, meteram-se numa coisa e não conseguiram sair dela, nem alguma vez vão conseguir...Isso valeu-me chatices em muito maior número, não valeu? Por isso não, claro que não...
- De qualquer forma, é e foi muito sensível à dor dos homens, à desgraça dos homens, ao seu sofrimento!
- Fui, mas já não sou. As coisas deram nisso. Não, não, lixaram-me muito, e basta...Meti pena, mas já não meto. Agora sou indiferente. Eles só conseguem chatear-me, é tudo quanto sei dizer...
- Considera-se azedo?
- De forma nenhuma! Não, absolutamente nada!
- Filósofo?
- Oh, bem, escute lá, tudo isso são palavras. A Enciclopédia está cheia delas, sabe, aqueles livros grossos, há génios dessa coisa de que está a falar. Ah! Santo Deus, são tudo ideias, e nada há mais vulgar do que as ideias. “Eu cá tenho as minhas ideias, papá.” – “Oh, sim, creio que ele tem ideias”. - “Oh, o Agénor é uma pessoa com ideias”. – “Oh! Precisamos de saber o que pensa este escritor.”- “Oh, meu Deus, as suas palavras fazem lei.”
Não, é realmente merda! Está a compreender? Pura e simplesmente merda! E pronto. Creio que dou conta do meu recado e os outros não, logo juntaram-se para dizer que sabem.
- Ainda hoje se considera um dos maiores escritores vivos?
- Ah, de forma nenhuma! Isso de grandes escritores já é lixar adjectivos, etc... primeiro temos de bater a bota, e depois de a batermos, quando estivermos mortos, eles classificam. Primeiro temos de estar mortos. Porque enquanto formos vivos...
Como o homem odeia o homem, “o homem é um gorila destruidor e lúbrico”, não fui eu quem inventou isto, foi Taine. Acabou-se. Não passa disso, destruidor e lúbrico, gorila é o que ele é.
- Se bem compreendo, está convencido de que a posteridade vai fazer-lhe justiça.
- Ah, não! Não estou mesmo nada convencido! Mesmo nada! Não estou convencido, oh, santo Deus, não! É bem provável que ela pregue comigo na sombra. E nessa altura talvez já não haja nenhum Anatole France...
Vão fazer o inventário, e vão lá estar chineses, ou berberes. Vão estar-se completamente nas tintas para a minha literatura de tanso, o meu estilo de pobre coiso e para as minhas reticências.
- Já não acredita em ninguém, não acredita sequer na sua obra?
- Ah, absolutamente nada! Ah, absolutamente nada! Lá isso não, nada de nada, nada! Acredito nas contribuições que vão ter de ser pagas, também acredito nas dívidas que tenho por todo o lado, e pronto. Muito simplesmente.
- Detesta a vida?
- Bem, não posso dizer que gosto dela, não, isso não. Aguento-a porque vivo, e por ter gatos.
Mas sem isso, é evidente... É evidente que sou da escola pessimista, oh sim, de facto sou um pessimista. Não acredito muito no futuro desta gente, não, nem nada, mesmo nada, nada, não, mesmo lúbrica e tudo tem instintos, embora se trate realmente de outros instintos.
- Haverá alguém na terra que mereça a sua estima?
- A minha estima!... Todos têm o direito de ser como são! Não pedem a minha estima... Com que direito eu ia dar diplomas de estima e de não-estima. O que quer isso dizer? Absolutamente nada, um zero sob o ponto de vista científico. Eu cá tenho uma educação científica, olho para aquilo que existe, que não existe. Que raio de coisa seria essa de pôr-me a dar diplomas de bom comportamento? Não me diz respeito, em absoluto.
- Existe alguém que pessoalmente lhe interesse?
- Olhe, agora já estou velho de mais...67 anos... Estou a chegar ao fim... Quando o comboio apita, você diz ao homenzinho: “Mas por que é que toma o comboio, temos aqui um calvário lindíssimo para ver, tem acolá uma igreja admirável, venha daí.” Bem, mas eu respondo: “Não, merda, o comboio está quase a chegar e vou tomá-lo, sentar-me, deixe-me em paz, vá você passear.” Ora, eu já estou a ouvir o comboio apitar, compreende? A minha posição é esta.
Sabe, quando temos pela frente um louco, um maluco, ele reconhece-se por três coisas: não saber onde está, que horas são, em que país se encontra, a sua identidade. Bem, eu cá sei perfeitíssimamente quem sou, sei muito bem onde estou e que horas são. São coisas que eu sei muito bem, esse exame posso eu muito bem enfrentar, é o exame básico.
Mas não espere que eu comece a matutar em coisas destas, lá isso não...
- No entanto, e peço desculpa por usar uma palavra que lhe vai parecer inútil, ainda assim é um...
- Sim, venha a grande palavra...
- Desesperado!
- Ah, de maneira nenhuma! Merda, que isso é mais outra história, esse desespero! Absolutamente nada! Seria preciso que eu esperasse qualquer coisa, e não espero nada, espero bater a bota o menos dolorosamente possível, como qualquer outro, e pronto! É exactamente e estritamente tudo... Que ninguém sofra muito por minha causa, por mim, à volta de mim. E depois morrer com tranquilidade, pois então, se possível morrer num ai, ou então acabar comigo, o que ainda seria mais simples. Vivo assim, nesta situação, não transporto comigo desejos de futuro, isso não existe! Não! Não! O futuro vai ser cada vez mais duro, já agora me custa mais trabalhar do que custava há uma ano, para o ano que vem será pior, e pronto! Normal!
- Qual será o título do seu próximo livro?
- O Jogo da Cabra-Cega.
- E o tema?
- Oh, a mesma coisa. Divagação através de uma paisagem. Comigo, não sei se sabe, não é difícil. Eu tinha acabado. Já que falamos de literatura, eu tinha acabado, compreenda. Depois de Morte a Crédito, bem, acabei, pois claro. No fundo, tinha dito tudo quanto tinha a dizer, e não era grande coisa...
Depois aconteceu aquela sacanice e tive de cavar. Dei comigo numa nova peça, e contei o que vi... Depois, pronto. Vale a pena, porque no meu caso me dá um tema. Não tenho de pintar a manta para desencantar temas. “Ah! A sogra que adora o genro a quem o neto vai ao cu, etc...” Comigo não é preciso, não é preciso. Não procuro fazer sexologia, nem psicologia, nem metafísica, só tenho de contar e, como é evidente, transpor. Claro que há nisto uma cozinha, como não, uma cozinha. Agarramos nos factos e depois cozinhamo-los, há gente que come tudo, frango ou qualquer outra coisa. Cozinhar é uma coisa deste género.
- Reconhece-se, ao menos, como mestre de cozinha?
- Talvez haja quem mais tarde vá achar que houve muito melhores do que eu... Veja como as refeições do Luís XIV seriam agora impossíveis... Sabe, também isso é uma questão de gosto, que muda depressa...Oh, se muda...
Diga como eu:
«Prontos para atravessar os desertos e as ondas, e procurar mundos diferentes noutro lado qualquer.»
- Ah, quanto a isso podemos tornar transparente seja o que for, não é difícil.
- Quer convencer-me de que se trata apenas de um exercício de estilo ou de uma história, aquilo que quis contar? Que nada de seu, íntimo, lá existe?
- Oh, não, não, de íntimo não. Talvez haja uma coisa – a única coisa que talvez seja verdadeira -, é que não sei gozar a vida, não vivo. Não existo. E então, como não gozo a vida tenho esta superioridade em relação aos outros, que estão realmente podres mas sempre a gozar a vida. Gozar a vida é beber, enfardar, arrotar, foder, é uma porção de coisas que pregam com o homem no zero, e com a mulher também.
Quanto a mim, nasci de um modo que me impede completamente de gozar, mas até calha bem, reconheço, sei isso muito bem, sei seleccionar, sei saborear.
Dizia um romano que “o deboche não é entrar num bordel, é não sair de lá”. Bem, eu cá levei a vida a entrar nos bordéis mas a sair logo deles, não são coisa que me divirta.
Como não bebo, não gosto, bebidas e o resto, como não gosto de comer, isso chateia-me, então...
Eu cá sou assim, pouco dotado. A minha mãe era assim, e herdei dela este estranho temperamento que consiste em não saber gozar absolutamente nada, nada, nadinha. Só tenho uma vontade, dormir e não ser chateado, o que não é agora o caso.
- Quer convencer-me de que os seus livros não se parecem consigo?
- OH, claro que sim, absolutamente nada!
- Se alguém afirmasse que o reconhecia nos seus livros, o que lhe diria?
- Oh! Não me reconhecem nada, reconhecem... o tanas. Não me reconhecem absolutamente nada!
Avaliando pela correspondência e pelas coisas que recebo, é totalmente o contrário, por isso... Tudo quanto possa haver de ecos meus, as pessoas não os procuram.
- Quer realmente demonstrar que a sua obra é qualquer coisa totalmente exterior a si?
- Ela é minha, sou capaz de dar conta do recado, isso é verdade, e os outros não conseguem. Ainda por cima lixam-me, para se gabarem de ter conseguido fazê-lo. Mas não conseguiram. Umas bestas! Não é verdade?
Não conseguem, não foram feitos para isso, de maneira nenhuma, nenhuma. Mas insistem... Ah, vais receber uns recados, vou enviar-te umas coisas, os prémios são para nós...
Não há crítico que não tenha encontrado 150 Balzacs durante a sua carreira, mas depois nunca mais se ouve falar desses tipos.
Tudo mentira! É tudo mentira! Não percebem é nada do assunto. Há dois, três tipos que foram escritores na grande época, sinto isso, sim, Morand, Ramuz, Barbusse eram escritores, tinham o sentido do que era sê-lo, tinham sido feitos para isso. Mas os outros não, santo Deus, não! Uns impostores! Bando de impostores! Pois bem, esses impostores é que são os mestres, aliás Brunetière já tinha a dito: “Se a crítica não estiver muito atenta, as letras serão devoradas pelo charlatanismo”.
Já foram. E os críticos também. Foi tudo devorado pelo charlatanismo.
- Quer também dizer-nos, e garantir-nos, que é exterior a esta vida? É alguém que não pertence a esta vida?
- Tal qual, é completamente certo. Trata-se da minha interioridade, só minha, não incomoda ninguém e eu próprio sei que não tenho necessidades materiais, não fui feito para elas.
- Mas foi um dos homens mais apaixonados deste século!
- Sim, fui, porque me forçaram a exteriorizá-lo. Nunca ninguém teria sabido, se eu não tivesse sido forçado por razões materiais. Ter-me-ia mantido tranquilo...
Sim, uma vez, uma só vez e a propósito desta guerra. Disse para comigo: “Ah! Merda! É preciso fazer qualquer coisa, os pobres destes franceses vão embarcar numa coisa de que não podem sair”. De facto, meteram-se numa coisa e não conseguiram sair dela, nem alguma vez vão conseguir...Isso valeu-me chatices em muito maior número, não valeu? Por isso não, claro que não...
- De qualquer forma, é e foi muito sensível à dor dos homens, à desgraça dos homens, ao seu sofrimento!
- Fui, mas já não sou. As coisas deram nisso. Não, não, lixaram-me muito, e basta...Meti pena, mas já não meto. Agora sou indiferente. Eles só conseguem chatear-me, é tudo quanto sei dizer...
- Considera-se azedo?
- De forma nenhuma! Não, absolutamente nada!
- Filósofo?
- Oh, bem, escute lá, tudo isso são palavras. A Enciclopédia está cheia delas, sabe, aqueles livros grossos, há génios dessa coisa de que está a falar. Ah! Santo Deus, são tudo ideias, e nada há mais vulgar do que as ideias. “Eu cá tenho as minhas ideias, papá.” – “Oh, sim, creio que ele tem ideias”. - “Oh, o Agénor é uma pessoa com ideias”. – “Oh! Precisamos de saber o que pensa este escritor.”- “Oh, meu Deus, as suas palavras fazem lei.”
Não, é realmente merda! Está a compreender? Pura e simplesmente merda! E pronto. Creio que dou conta do meu recado e os outros não, logo juntaram-se para dizer que sabem.
- Ainda hoje se considera um dos maiores escritores vivos?
- Ah, de forma nenhuma! Isso de grandes escritores já é lixar adjectivos, etc... primeiro temos de bater a bota, e depois de a batermos, quando estivermos mortos, eles classificam. Primeiro temos de estar mortos. Porque enquanto formos vivos...
Como o homem odeia o homem, “o homem é um gorila destruidor e lúbrico”, não fui eu quem inventou isto, foi Taine. Acabou-se. Não passa disso, destruidor e lúbrico, gorila é o que ele é.
- Se bem compreendo, está convencido de que a posteridade vai fazer-lhe justiça.
- Ah, não! Não estou mesmo nada convencido! Mesmo nada! Não estou convencido, oh, santo Deus, não! É bem provável que ela pregue comigo na sombra. E nessa altura talvez já não haja nenhum Anatole France...
Vão fazer o inventário, e vão lá estar chineses, ou berberes. Vão estar-se completamente nas tintas para a minha literatura de tanso, o meu estilo de pobre coiso e para as minhas reticências.
- Já não acredita em ninguém, não acredita sequer na sua obra?
- Ah, absolutamente nada! Ah, absolutamente nada! Lá isso não, nada de nada, nada! Acredito nas contribuições que vão ter de ser pagas, também acredito nas dívidas que tenho por todo o lado, e pronto. Muito simplesmente.
- Detesta a vida?
- Bem, não posso dizer que gosto dela, não, isso não. Aguento-a porque vivo, e por ter gatos.
Mas sem isso, é evidente... É evidente que sou da escola pessimista, oh sim, de facto sou um pessimista. Não acredito muito no futuro desta gente, não, nem nada, mesmo nada, nada, não, mesmo lúbrica e tudo tem instintos, embora se trate realmente de outros instintos.
- Haverá alguém na terra que mereça a sua estima?
- A minha estima!... Todos têm o direito de ser como são! Não pedem a minha estima... Com que direito eu ia dar diplomas de estima e de não-estima. O que quer isso dizer? Absolutamente nada, um zero sob o ponto de vista científico. Eu cá tenho uma educação científica, olho para aquilo que existe, que não existe. Que raio de coisa seria essa de pôr-me a dar diplomas de bom comportamento? Não me diz respeito, em absoluto.
- Existe alguém que pessoalmente lhe interesse?
- Olhe, agora já estou velho de mais...67 anos... Estou a chegar ao fim... Quando o comboio apita, você diz ao homenzinho: “Mas por que é que toma o comboio, temos aqui um calvário lindíssimo para ver, tem acolá uma igreja admirável, venha daí.” Bem, mas eu respondo: “Não, merda, o comboio está quase a chegar e vou tomá-lo, sentar-me, deixe-me em paz, vá você passear.” Ora, eu já estou a ouvir o comboio apitar, compreende? A minha posição é esta.
Sabe, quando temos pela frente um louco, um maluco, ele reconhece-se por três coisas: não saber onde está, que horas são, em que país se encontra, a sua identidade. Bem, eu cá sei perfeitíssimamente quem sou, sei muito bem onde estou e que horas são. São coisas que eu sei muito bem, esse exame posso eu muito bem enfrentar, é o exame básico.
Mas não espere que eu comece a matutar em coisas destas, lá isso não...
- No entanto, e peço desculpa por usar uma palavra que lhe vai parecer inútil, ainda assim é um...
- Sim, venha a grande palavra...
- Desesperado!
- Ah, de maneira nenhuma! Merda, que isso é mais outra história, esse desespero! Absolutamente nada! Seria preciso que eu esperasse qualquer coisa, e não espero nada, espero bater a bota o menos dolorosamente possível, como qualquer outro, e pronto! É exactamente e estritamente tudo... Que ninguém sofra muito por minha causa, por mim, à volta de mim. E depois morrer com tranquilidade, pois então, se possível morrer num ai, ou então acabar comigo, o que ainda seria mais simples. Vivo assim, nesta situação, não transporto comigo desejos de futuro, isso não existe! Não! Não! O futuro vai ser cada vez mais duro, já agora me custa mais trabalhar do que custava há uma ano, para o ano que vem será pior, e pronto! Normal!
- Qual será o título do seu próximo livro?
- O Jogo da Cabra-Cega.
- E o tema?
- Oh, a mesma coisa. Divagação através de uma paisagem. Comigo, não sei se sabe, não é difícil. Eu tinha acabado. Já que falamos de literatura, eu tinha acabado, compreenda. Depois de Morte a Crédito, bem, acabei, pois claro. No fundo, tinha dito tudo quanto tinha a dizer, e não era grande coisa...
Depois aconteceu aquela sacanice e tive de cavar. Dei comigo numa nova peça, e contei o que vi... Depois, pronto. Vale a pena, porque no meu caso me dá um tema. Não tenho de pintar a manta para desencantar temas. “Ah! A sogra que adora o genro a quem o neto vai ao cu, etc...” Comigo não é preciso, não é preciso. Não procuro fazer sexologia, nem psicologia, nem metafísica, só tenho de contar e, como é evidente, transpor. Claro que há nisto uma cozinha, como não, uma cozinha. Agarramos nos factos e depois cozinhamo-los, há gente que come tudo, frango ou qualquer outra coisa. Cozinhar é uma coisa deste género.
- Reconhece-se, ao menos, como mestre de cozinha?
- Talvez haja quem mais tarde vá achar que houve muito melhores do que eu... Veja como as refeições do Luís XIV seriam agora impossíveis... Sabe, também isso é uma questão de gosto, que muda depressa...Oh, se muda...
Diga como eu:
«Prontos para atravessar os desertos e as ondas, e procurar mundos diferentes noutro lado qualquer.»
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A entrevista nunca veio a ser transmitida. O seu último livro não se chamou "Jogo da Cabra-Cega", mas sim "Rigodon". O comboio cujo apito Céline já ouvia, chegou nesse mesmo ano. Simbolizava o fim duma viagem, a do homem cuja noite chegava ao fim, e o início de uma outra: a do escritor cuja aurora rompia, a iluminar os píncaros da eternidade que só os génios imortais alcançam.
19 comentários:
Obrigado, mesmo considerando que este post é Serviço Público!
A Voz associa-se a este acontecimento Cultural!
Longa vida ao Dragão por nos oferecer estes presentes!
A tradução é da tua lavra, Dragão?
Está porreira.
O Céline para mim, não é génio nem deixa de o ser. Mas vou aprendendo a ler.
A tradução é de Alberto Nunes Sampaio.
Realmente, não há nada mais desmoralizador do que ter dívidas para pagar.
PS Por um momento até pensei que a entrevista estava a ser feita ao Dragão...
Os meus agradecimentos ao Dragão por pôr online - e em português - esta entrevista de um dos maiores escritores franceses do século XX!
Um verdadeiro serviço à Cultura europeia!
Quem faz uma, faz muitas mais!Aproveito para desafiar o Dragão a pôr online as entrevistas publicadas no Le Figaro Magazine «Céline 1957»,por culpa de «D`un chateu à l`autre»; «Vingt-quatre ans après sa mort, Céline nous fait colére» de 05.10.1985.
Existe a célbre entrevista à Radio Suisse-Romande, realizada em 1955 e publicada na Magazine Litéraire.
Então, quem publica uma... publica todas!
Lá iremos...
Assim certo comboio o permita.
Não é fácil verter para português a verve céliniana. Aqui e ali há algumas opções de tradução questionáveis mas no global vale mais que a pena difundir a visão desencantada (lá estamos nós com os adjectivos) do homem de Courbevoie. O Dragão está de parabéns.
Tem razão o nosso especialista FSantos. O Céline é quase intraduzível. Para além da dificuldades da música e do ritmo da frase, a própria linguagem célinina, quase argot, é difícil.
Por alguma razão Henri Godard, na edição da Plêiade de "Guignol's Band" I e II colocou em anexo um dicionário de argot.
A noite do Céline nunca chegou ao fim: senão era outro dos funcionários da charlatanice. A partir de agora, passo a imaginar um Céline a mijar-se a rir lá nos tais píncaros iluminados, os da eternidade.
Porquê só a partir de agora?
Antes não imaginava?
A rir, sim. A mijar-se, também. Em píncaros iluminados, não.
Apenas em vales de penumbra ou cumes nebulosos, não?
Não me diga que não acredita no clima para lá da morte...
É mais a adjectivação da topografia...
Talvez por isso tenha preferido abjectivá-la.
Imaginando o Céline a fazer coisas abjectas sobre o adjecto inimaginável.
Perfeito.
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