«"Todo aquele que vive da verdade escuta a minha voz."
Pilatos replicou-lhe: "Que é a verdade?"»
- João 18, 37-38
Não sendo eu, de todo, aquilo que vulgarmente se chama uma pessoa sensível, confesso que o que vou postar a seguir, sobretudo a segunda carta, constitui um dos pedaços de literatura viva mais dilacerantes e sublimes que já alguma vez li. Vale mais que as obras completas de não sei quantos prémios nóbeis cuja nomeação vos poupo.
XVII
Pilatos replicou-lhe: "Que é a verdade?"»
- João 18, 37-38
Não sendo eu, de todo, aquilo que vulgarmente se chama uma pessoa sensível, confesso que o que vou postar a seguir, sobretudo a segunda carta, constitui um dos pedaços de literatura viva mais dilacerantes e sublimes que já alguma vez li. Vale mais que as obras completas de não sei quantos prémios nóbeis cuja nomeação vos poupo.
XVII
«Em Estalinegrado, pensar em Deus é deixar de acreditar n’Ele. Acho que devo dizer-te isto, querido pai, e custa-me muito fazê-lo. Foste tu que me criaste, porque me faltou a mãe e sempre me quiseste gravar na alma o nome de Deus.
E lamento duplamente as minhas palavras, porque são as últimas e porque depois delas não posso escrever mais nenhumas, que atenuem ou apaguem o efeito destas.
És um salvador de almas, pai, e sabes bem que na última carta só se diz o que é verdade ou o que se julga ser verdade. Tenho procurado Deus no troar dos canhões, em todas as casas destruídas, em todos os cantos, junto de todos os camaradas, quando estou acocorado nos esconderijos, até O procurei no céu... E Deus não respondeu quando o meu coração gritou por Ele. As casas estavam destruídas, os meus camaradas eram tão corajosos ou tão cobardes como eu, na terra havia fome e assassínios, no céu havia bombas e havia fogo, só não havia Deus.
Não, pai, Deus não existe! Repito-o, e sei que é horrível não mudar de ideias. E supondo que existia um Deus, só existiria junto de vós, junto dos livros dos cânticos e de orações, dos versículos pios dos padres e dos pastores, junto do som dos sinos e do cheiro do incenso, mas nunca em Estalinegrado.»
E lamento duplamente as minhas palavras, porque são as últimas e porque depois delas não posso escrever mais nenhumas, que atenuem ou apaguem o efeito destas.
És um salvador de almas, pai, e sabes bem que na última carta só se diz o que é verdade ou o que se julga ser verdade. Tenho procurado Deus no troar dos canhões, em todas as casas destruídas, em todos os cantos, junto de todos os camaradas, quando estou acocorado nos esconderijos, até O procurei no céu... E Deus não respondeu quando o meu coração gritou por Ele. As casas estavam destruídas, os meus camaradas eram tão corajosos ou tão cobardes como eu, na terra havia fome e assassínios, no céu havia bombas e havia fogo, só não havia Deus.
Não, pai, Deus não existe! Repito-o, e sei que é horrível não mudar de ideias. E supondo que existia um Deus, só existiria junto de vós, junto dos livros dos cânticos e de orações, dos versículos pios dos padres e dos pastores, junto do som dos sinos e do cheiro do incenso, mas nunca em Estalinegrado.»
III
«Tens de tirar essa ideia do pensamento, Margarida, e tens de o fazer depressa. Quero até aconselhar-te que o faças radicalmente, para a decepção ser mínima. Sinto nas tuas cartas o desejo de me veres em breve. Não me admira que o desejes. Também espero ansiosamente esse momento. Não é deste facto que me vem a inquietação mas sim de pensar que tu não estás só à espera daquele que amas –o homem – mas também à espera do que ele é como pianista. Sinto-o nitidamente.
Chega a ser cómica esta inversão de sentimentos – pensar que eu, que devia estar afundado no maior desespero, me resigno ao meu destino, enquanto a mulher que devia estar reconhecida ao destino por eu ainda estar vivo, se revolta contra ele.
Tenho muitas vezes a suspeita de que me diriges uma censura muda, como se eu tivesse culpa de não mais poder tocar. Queres ter a certeza, e é por isso que insistes tanto nas tuas cartas num ponto que eu teria preferido esclarecer quando estivéssemos juntos. Talvez seja o destino a querer que a nossa situação tenha chegado a um ponto em que desaparecem os subterfúgios e as reticências. Não sei se volto a falar contigo, no entanto acho que esta carta te deve preparar para o caso de eu um dia te aparecer.
Desde o princípio de Dezembro tenho as mãos aleijadas. Na esquerda falta o dedo mínimo, mas ainda o pior é que na direita os três dedos do meio estão gelados. Seguro o copo com o mínimo e o polegar. Sinto-me desamparado. Só quando perdemos os dedos é que notamos a falta que nos fazem nas coisas mais insignificantes. Mas, pelo menos, ainda posso disparar a minha arma com o dedo mínimo. No entanto, não posso levar a vida a disparar, com o pretexto de não ser capaz de fazer mais nada. Poderei talvez ser guarda-florestal? Isto é o que se pode chamar humor trágico... é para acalmar que rio!
Kurt Hahnke –parece-me que o conheces do colégio – tocou há dias, numa ruazita perto da Praça Vermelha, a Apassionata. Foi um espectáculo extraordinário! O piano estava mesmo na rua. A casa tinha sido dinamitada, mas o piano ficara intacto e os nossos trouxeram-no para a rua. Cada soldado que por ali passava martelava as teclas. Só pergunto: onde é que já se viu um piano numa rua? Como já te disse, Kurt tocou maravilhosamente no dia 4 de Janeiro. Pouco tempo faltará para o vermos na guarda avançada dos pianistas. Era “no múmero dos grandes pianistas” que eu queria dizer, mas já é tal a influência da guerra que saiu esta expressão “guarda-avançada”. Se este rapaz voltar à pátria, vai dar que falar. Nunca esquecerei aqueles momentos. Pelo menos aquele estranho auditório. Tenho pena de não ser artista para descrever aquele quadro: cem desgraçados enrolados em capotes, de cobertores à cabeça; o tiroteio zunia de todos os lados, mas ninguém lhe dava ouvidos – ouvia-se Beethoven em Estalinegrado, mesmo sem se perceber nada de música.
Para que te contei eu toda a verdade?»
Suponho que Kurt Hahnke nunca voltou. Mas mesmo que tenha voltado, uma coisa é certa: jamais voltou a tocar tão sublimemente. Porque naquele dia, em Estalinegrado, homens diante da morte, condenados ao desespero, subitamente, maravilharam-se diante de algo que os transcendia: escutaram Deus, pelos dedos dum homem, pelas cordas dum piano, pela pauta dum génio, e, por instantes, a porta do Céu entreabriu-se... no meio do inferno.
Chega a ser cómica esta inversão de sentimentos – pensar que eu, que devia estar afundado no maior desespero, me resigno ao meu destino, enquanto a mulher que devia estar reconhecida ao destino por eu ainda estar vivo, se revolta contra ele.
Tenho muitas vezes a suspeita de que me diriges uma censura muda, como se eu tivesse culpa de não mais poder tocar. Queres ter a certeza, e é por isso que insistes tanto nas tuas cartas num ponto que eu teria preferido esclarecer quando estivéssemos juntos. Talvez seja o destino a querer que a nossa situação tenha chegado a um ponto em que desaparecem os subterfúgios e as reticências. Não sei se volto a falar contigo, no entanto acho que esta carta te deve preparar para o caso de eu um dia te aparecer.
Desde o princípio de Dezembro tenho as mãos aleijadas. Na esquerda falta o dedo mínimo, mas ainda o pior é que na direita os três dedos do meio estão gelados. Seguro o copo com o mínimo e o polegar. Sinto-me desamparado. Só quando perdemos os dedos é que notamos a falta que nos fazem nas coisas mais insignificantes. Mas, pelo menos, ainda posso disparar a minha arma com o dedo mínimo. No entanto, não posso levar a vida a disparar, com o pretexto de não ser capaz de fazer mais nada. Poderei talvez ser guarda-florestal? Isto é o que se pode chamar humor trágico... é para acalmar que rio!
Kurt Hahnke –parece-me que o conheces do colégio – tocou há dias, numa ruazita perto da Praça Vermelha, a Apassionata. Foi um espectáculo extraordinário! O piano estava mesmo na rua. A casa tinha sido dinamitada, mas o piano ficara intacto e os nossos trouxeram-no para a rua. Cada soldado que por ali passava martelava as teclas. Só pergunto: onde é que já se viu um piano numa rua? Como já te disse, Kurt tocou maravilhosamente no dia 4 de Janeiro. Pouco tempo faltará para o vermos na guarda avançada dos pianistas. Era “no múmero dos grandes pianistas” que eu queria dizer, mas já é tal a influência da guerra que saiu esta expressão “guarda-avançada”. Se este rapaz voltar à pátria, vai dar que falar. Nunca esquecerei aqueles momentos. Pelo menos aquele estranho auditório. Tenho pena de não ser artista para descrever aquele quadro: cem desgraçados enrolados em capotes, de cobertores à cabeça; o tiroteio zunia de todos os lados, mas ninguém lhe dava ouvidos – ouvia-se Beethoven em Estalinegrado, mesmo sem se perceber nada de música.
Para que te contei eu toda a verdade?»
Suponho que Kurt Hahnke nunca voltou. Mas mesmo que tenha voltado, uma coisa é certa: jamais voltou a tocar tão sublimemente. Porque naquele dia, em Estalinegrado, homens diante da morte, condenados ao desespero, subitamente, maravilharam-se diante de algo que os transcendia: escutaram Deus, pelos dedos dum homem, pelas cordas dum piano, pela pauta dum génio, e, por instantes, a porta do Céu entreabriu-se... no meio do inferno.
Nota: Cartas últimas de soldados alemães nas vésperas do desfecho da Batalha de Estalinegrado.
1 comentário:
opá foda-se Dragão, lindo pá! que mensagem tão sublime e bela que deixas aqui... Caramba, parabéns!
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