terça-feira, janeiro 03, 2023

O Medo e a Ganância



«A decadência das religiões organizadas significa que a maioria os homens e das mulheres já não constrói a sua personalidade adentro da estrutura católica. A estrutura moderno - ou antes, estruturas, pois há uma variedade elas, para como semelhanças familiares entre si - é muito menos extensiva do que aquela que desalojou. É uma estrutura na qual apenas alguns elementos da mente são capazes e encontrar um lugar. Os outros ficam de fora, para levarem uma vida rebele e obscura, em total independência da personalidade organizada. Mas, antes e descrever as actividades destes proscritos amotinados, deixem-me mostrar quais os elementos psicológicos que foram incluídos na estrutura moderna, e por que razão.

O princípio unificador através do qual os modernos tentaram coordenar os elementos da natureza do Homem numa personalidade é a eficiência social. A vida deixou de ter um significado sobrenatural; a razão da vida passou a ser conseguir aquela consumação natural, mesmo bastante natural - o êxito socialmente reconhecido. É em nome deste êxito que as descontinuidades da vida espiritual do Homem têm de ser superadas, os elementos separados da sua natureza coordenados e as suas discordâncias harmonizadas. Estimam-se as funções mentais que ajudam ao êxito socialmente reconhecido; as que militam contra a eficiência são desprezadas; e, ao mesmo tempo, temidas. Não se encontra utilidade para elas numa personalidade sobre a qual se decidiu, antecipadamente, que deve ser a personalidade de um indivíduo socialmente eficiente e próspero. Têm de ser forçosamente suprimidas, ou então, tratadas como o cientista cristão e o proverbial avestruz tratam todas as realidades que consideram desagradáveis. Se estas realidades particularmente desagradáveis se recusarem a acreditar nele quando lhes diz que elas não existem - bem, tanto pior para ele e para as suas esperanças de vir a conseguir êxito.

O êxito socialmente reconhecido é o êxito profissional; um homem impõe-se à sociedade desempenhando bem o seu trabalho. As qualidades requeridas para obter êxito na maioria das profissões pertencem ao nível da razão, da vontade e da intuição. O homem de êxito deve ser capaz de pensar claramente, de concentrar a sua atenção e de impedir a  mente de divagar, trabalhando sempre com diligência, mesmo quando se sinta sem vontade nenhuma de trabalhar. Quer isto dizer que o seu poder da razão e da vontade têm de estar altamente desenvolvidos. Em muitas profissões, a intuição, que é a faculdade da percepção inconsciente, o poder de ver para além das superficialidades do aqui e agora e de detectar as realidades por detrás das máscaras e as possibilidades dinâmicas latentes no presente embrulhado, é, dificilmente, menos indispensável do que a razão e a vontade. Ninguém desprovido de intuição pode esperar obter êxito em qualquer profissão cujo negócio consista em tratar directa e pessoalmente com homens e mulheres, ou especular sobre o futuro. Na presente conjuntura, estas qualificações na razão, vontade e intuição estão a prémio porque elas, e só elas, podem garantir aquele êxito profissional, cuja consecução se tornou o objectivo desejável, isto é, aquele que confere à vida todo o seu significado e finalidade. Entre os outros elementos psicológicos que foram coordenados na moderna personalidade do sucesso, os mais importantes são as tendências aquisitivas. Estas, foram moralizadas não por um qualquer processo de sublimação, mas através duma mera inversão de valores. Ao que anteriormente era preto, chama-se agora branco. A cobiça, que era um pecado mortal nos dias dos  nossos antepassados medievais, tornou-se agora uma das virtudes cardeais. Deste modo, uma fonte do que constituiu outrora uma energia extremamente inconveniente, foi refreada e obrigada a produzir trabalho dentro da personalidade organizada. Se temos o direito de considerar como virtude o que os nossos antepassados classificaram como pecado, é outra questão. Mas é verdade que assim procedendo fizemos com que as tendências em causa pareçam, pelo menos temporariamente, menos incómodas. Porém, a paz espiritual foi comprada por alto preço - um preço que nós já estamos a pagar e que os nossos filhos continuarão a pagar, muito depois do precário intervalo que com ele se comprou se tenha tornado um assunto de história antiga.»

          - Aldous Huxley, "Proper studies" 


Duas notas apenas: é bem verdade que, em larga medida, a modernidade outra coisa não é que a inversão da antiguidade e, sobretudo, do seu corolário medieval - e isto a quase todos os níveis. Sendo que, quando não é inversão, é perversão. 

O outro traço indicador disso mesmo é que, ao lermos esta decifração da "receita" para o cozinhado da "personalidade moderna", ocorre-nos desde logo (pelo menos a mim, que o conheço de ginjeira) um refugado inaugural e trampolim dos modernícolas: "Discours de la Méhtode", dum tal Descartes. É aí, precisamente, que o odos cede (de novo) passo ao meta-odos, (entenda-se, a civilização enquanto odisseia degrada-se a uma "metodologia frenética"; e a poiesis dá, definitivamente, lugar ao trabalho). 

Todavia, os modernícolas não inventam nada: apenas recuperam e ensarilham aquilo que a decadência grega já manifestava, emblematicamente, através da célebre expressão das "Nuvens", pelo "Sócrates sofista": «mandar avançar uma maquinaria (mechanon) cá das minhas". Quer dizer, a mente humana enquanto estrita - e estreita - maquinação. Só que, e por requinte próprio, a sofística reaparece agora, no dealbar moderno, como super-sofística - uma sofistica, digamos assim, ampliada, por desdobramento e acumulação. Porque, de facto, a modernidade não germina apenas (à maneira dos fungos) da decadência medieval: é também a transposição e continuação da decadência grega. Dito em modo analógico, configura o retorno ao labirinto, onde o Homem, doravante amnésico, formigueja até mais que deambula, alheio a qualquer ideia de percurso, de entrada e saída (princípio e fim), confinado ao absurdo e à besta que lá reina. Toda uma sucessão interminável e inexplicável de corredores e paredes, onde se viaja de nenhures para lado nenhum. Num mundo fechado, sem portas nem janelas. Em que o espaço desocupado pelo despejo judicial de Deus e da esperança se vêem preenchidos, respectivamente, pelo medo e pela ganância. O crente reduz-se assim a um exasperado. Como o Libertino, de Sade... Paradigma psicológico e modelo soberano até aos dias de hoje.

PS: A título de curiosidade: aqui há mesmo muitos anos atrás, quando se entrava no curso de filosofia, havia no 1ºAno a cadeira de Filosofia Antiga (a única, de resto, que devia haver ao longo dos anos todos). No meu tempo, levei logo com uma xaropada, emitida por um frenético erudito (e verdadeiramente enciclopédico a citar este mundo e o outro), que consistia mais ou menos nisto: o mito e a razão. A filosofia nascia (se é que não dava mesmo à luz) da razão. O pensamento lógico era o cúmulo do catita; o outro uma lástima, como as fábulas que se contam e  com que se endrominam as criancinhas. É claro que a malta, olimpicamente, e por força do mandamento coorporativo, não queria saber do Mito para nada e desatava logo a dar na veia com o pai Sócrates/Platão e, vá lá, meia dúzia de pré-coisos antes dele (sobretudo os dois mais crocantes: Parménides e Heraclito). E depois era sempre a aviar, abstrusos em série (evitando sempre, com desdém académico, até aqueles filósofos mais inclinados ao "mito" - Schopenhauer e Nietzshe, por exemplo, nada de perder tempo com eles; e o Aristóteles, só mesmo o Organon e previamente trinchado). Os racionaldos é que era!, chupadinhos até ao tutano do esfíncter: Platão, o Agostinho, dois ou três santos mais ou menos delirantes e enfadonhos, o René (meu Deus, o René!, tábua de salvação dos imbecis e mentecaptos), o Locke, o Hume, o Kant e toda a plêiade de tumores anexos. Sem isso, não há diploma. Os amanuenses, todos eles devotos. lá se iam (e julgo que ainda andam nisso) fertilizando uns aos outros.

Passados todos estes anos, tendo ruminado decénios sobre o assunto, sabem o que eu vos digo sobre esta treta do "Mito e da Razão"? Nada como responder com uma bela analogia: estão a ver a metamorfose da borboleta? O mito é a borboleta. Ciclicamente, cansa-se de voar e descansa a cagar uns ovos numa folha qualquer. E morre - por isso também lhe chamam "efémera". Depois, desse excremento mítico, nasce a Razão. Não, como é óbvio, não se trata dum progresso... Apenas duma necessidade.

Deus nos proteja das "épocas da Razão"! Mas se acordarmos um dia, como é actualmente o caso, no meio duma porcaria dessas, olhem, que Ele tenha piedade de nós. 

5 comentários:

marina disse...

o kant é um caso engraçado , desenvolveu aquela palha do dever por problemas pessoais e de auto estima. pode-se ser bom sem ser bom? e ele diz que sim -:)
é um caso de psiquiatria.

Vivendi disse...

"Quinimmo beati, qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud."

Bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam.

dragão disse...

Cara Marina,

O Kant, segundo o diagnóstico de outro doido, seria uma caso de neurose obsessiva. Reza a lenda que os cidadãos de Konigsberg (a actual Kalingrado russa, enclavada entre suínos) assertavam os relógios pelas deambulações dele.
A moral, sobretudo, é um desastre. Mas dará, seguramente, num futuro próximo, um bom manual de operações para Inteligências Artificiais Motorizadas. :O)

marina disse...

pus-e aqui a pensar se o homem frio e sem sentimentos Kant não terá sido o pai da "redistribuição de rendimentos" : a caridade cristã , voluntária e alicerçada num bom coração , substituída pela solidariedade forçada , baseada no tal frio "dever".
A Sofia que me perdoe se só penso disparates -:)

dragão disse...

Também devo estar a ficar doido: escrevi acertar com dois ss. :O(

Quanto ao "homem frio", houve um outro filósofo (igualmente inclinado à loucura) que lhe deu o nome exacto: "monstro frio". Ou seja, o Estado. E sim, o Immanuel deu-lhe um forte contributo, mas a besta já vinha embalada de currais prévios.
Em todo o caso, esse paralelismo não é descabido. Bem pelo contrário, merecia até investigação mais detalhada.