sábado, janeiro 14, 2023

Cripto-filósofos, cripto-futuros e outras cacofonias fecais .II





A cripto-ciência não urde apenas a partir do infundamento aéreo com intuitos meramente comerciais, quer dizer, não engendra apenas  do ar tendo por fito o afundamento e, consequente, afogamento da realidade. Opera, por mecânica intrínseca, uma dupla agência: de falsificação e  de negação.

Se pensarmos no pensamento filosófico, - o realismo Aristotélico, por exemplo - não temos a realidade, temos uma tentativa de compreensão da realidade. Outros filósofos terão outras versões. Mas a realidade é uma. Logo, as  múltiplas versões filosóficas dela serão tanto mais efectivas quanto a sua compreensão corresponda àquilo que pretende compreender. Ou seja, partindo de dados da realidade, a compreensão busca a plenitude mais ampla possível da mesma. Sabendo, à partida, que só a visão da entidade a que chamamos Deus dispõe da plenitude perfeita. Só que não existem apenas versões da realidade. Ocorrem também filósofos e filosofias cuja versão da realidade parte duma aversão à mesma. Isto é, não se fundam na realidade: fundam-se no próprio pensamento do filósofo. Temos assim uma filosofia infundada, com presunções a absoluta - é princípio, meio e fim dela própria. Não parte da realidade e do cosmos: parte do pensamento e duma peculiar faculdade operativa deste: a razão/lógica. A origem desta escola, chamemos-lhe assim, está em Platão. Quando proclama que o mundo das ideias é o verdadeiro e a realidade não passa de simulacro. As outras duas grandes eclosões na continuidade desta "aversão à realidade" acontecem com Descartes e Kant. À pendura de todos eles manquejou aquilo que passa por "ciência moderna".

O que importa reter deste parágrafo resume-se a isto: existem versões da realidade, que legitimamente podem ser classificadas de "filosofias"; e existem anti-versões, ou aversões dessa mesma realidade. A a-versão, por um lado, nega,  antagoniza e despreza a realidade; por outro, falsifica-a, na medida em que se assume, não como "versão de",  mas como a própria coisa. Fundando-se nela própria, a lógica, à maneira das aranhas, passa, de seguida, a engendrar um mundo artificial, fictício, que passa a impor e impingir como "realidade". E realidade não apenas possível ou contingente, mas necessária e fatal. A esta modalidade deveríamos taxar de "pseudo-filosofias". De ressalvar apenas que Platão, e a sua vastidão, complexidade e variedade de momentos no seu próprio pensamento, tendo dado origem às pseudo-filosofias (ou neo-filosofias/neo-racionalismos) não pode ser, todavia, confinado a essa degradação. Textos e posições suas desencadearam o fenómeno (em parte também por influência dos Pitagóricos e de Parménides), mas esse aspecto negativo não o esgota nem resume. Afinal, Aristóteles foi discípulo dele. Digamos apenas que Platão, como denunciará Aristófanes, na ramagem em que abandonava o legado da tradição e cultura clássicas, era, em boa medida, um sofista. A mesma acusação será posteriormente elencada por um dos descendentes culturais de Aristófanes: Nietzsche. E, de facto, a sofisticação lógica de Platão arvora-se totalitária, única, verdade completa; e, isso, ganha expressão numa obra muito concreta, mal traduzida por "República", onde inaugura a feira das Utopias, através da primeira e mais marcante de todas elas.

 Os gregos clássicos chamaram Kosmos - ordem, beleza, glória, conveniência - àquilo a que hoje, distorcida e aleijadamente, chamamos "universo". O próprio termo denuncia o crime, premeditado e continuado: da plenitude degradou-se à "versão única". A falsificação tenta invariavelmente copiar o falsificado: a realidade é uma porque plenitude; a aversão racional procura também ser única, porque opera enquanto falsidade imposta como Verdade absoluta, indisputável e determinante. A a-versão é, para todos os efeitos, uma "uni-versão". Não custa, assim, perceber que o "universo" protagoniza apenas uma redução, nanificação do Cosmos. A universão é, de facto, uma miniversão, uma irrisão arrogante. Também, na proporção em que se funda exclusivamente no interesse ou expediente lógico do hominóide, é uma criação ad nihil. Extraída do nada, dado que alienada de qualquer realidade concreta, ontológica, natural, plena. E "alienada", entenda-se, no sentido em que não parte dela nem procura aproximar-se dela, mas, outrossim, irrompe duma posição afastada/desviante dela e urdindo contra ela. 

O racionalismo é, por conseguinte, uma posição adversária e animadversária da realidade, quer dizer, opõe-se-lhe, duplamente, como antagonismo e como censura. A construção duma "realidade" peregrina, perversa, contra-natura e totalitária (onde as primeiras baixas são a liberdade possível e a verdade enquanto caminho de busca, quer uma, quer outra, falsificadas de pronto enquanto liberdade e verdade absolutas) devém a sua principal força motriz, a sua vertigem dinâmica. Todos os projectos e programas "revolucionários", "progressistas expresso" - em suma, utópicos - deste mundo constituem o seu rasto na História e a sua paulatina, mas infreável, baba corrosiva; da civilização e da natureza. A utopia não é filha do "mito", nem dos sentimentos, intuições, instintos ou fábulas pedagógicas do passado (pensem em Esopo, nas tragédias gregas ou no grande edifício formador que vai dos mitos helénicos a Homero e Hesíodo): a utopia é a filha única e mimada da Razão. E ergue-se, soberba e invariavelmente, contra tudo isso e procurando apagar tudo isso. É, na essência, precisamente o inverso daquilo com que se vende, impinge, alardeia e ostenta: as Luzes são, naturalmente, as Trevas; a vida (bios) é, naturalmente, a morte (tanatos); o homem é, tendencialmente, a máquina (gestora ou operária) lógica, sem sentimentos, nem passado; a (super)racionalidade é, em bom rigor, um delírio esquizoide, uma patologia da espécie, uma alienação homicida e perigosa. E atenção que quando aqui se menciona "racionalidade" não se refere o uso equilibrado e saudável duma faculdade específica do entendimento, mas sim o vício desmesurado, industrial e obsessivo dessa faculdade baixa, de modo a secar e esterilizar todas as outras, sobretudo a mais elevada de todas elas: a inteligência. Aquilo que aqui se enuncia como "racionalismo" significa o implante e adubação feroz da razão, a sua promoção frenética a eucalipto do pensamento.

Agora, peguem nisto que aqui acabei de expor e confrontem com as "teses" dos cripto-filósofos-historiadores-palradores comerciais destes nossos dias, como seja esse/a/s tal Hariri (desconhecia que existisse e, na verdade, não desconhecia porque não há nada de real para conhecer)... Ficam, mais perceptíveis ou explicáveis? Ou esta notícia, assaz repugnante, por exemplo:

«As Canada prepares to expand its euthanasia law to include those with mental illness, some Canadians - including many of the country's doctors - question whether the country's assisted death programme has already moved too far, too fast.»

Só para terminar, que a arenga já vai longa...

Existe um personagem numa das tais mitologias que geraram civilização (sobretudo durante o período medieval - ou seja, terminal - da mesma) que se distinguia pelas seguintes desqualificações: ódio à Criação Divina, e ao Homem enquanto criança dela. Etimologicamente, o seu nome significa "adversário". A sua principal arma de infiltração no espírito da humanidade que odeia e planeia destruir: a soberba. Não vamos entrar em religiões ou discussões de índole religiosa. Fiquemo-nos apenas pela simbologia, pelo mito. E pela justeza do seu, verificado e comprovado, aviso. E pela intemporalidade, creiam bem, do seu valor.

5 comentários:

A Tal disse...

*****

marina disse...

o harari deve ter aversão a si mesmo , por isso fala da "libertação" do corpo biológico.
nem sei como nunca ouviu falar dele..é muito promovido pelos merdia , como do melhorzinho que há por aí.

dragão disse...

Cara Marina,

ignorava completamente essa besta. E continuarei a ignorar, olimpicamente. Cruzei-me fortuitamente com o artigo e achei apenas as teses "emblemáticas", nem sequer dum qualquer pensamento individual ou original (por muito mau que fosse), mas duma lógica que já leva mais de 100 anos (e que vem no encadeamento e uma certa viciação mental já milenar). Aliás, a capacidade de articular qualquer coisa de real por parte da "espécie eleita" é nula. Apenas falsificam, trafulham, martelam, mixordizam. Tudo a bem da fraude, do embuste e garantido sucesso rápido no mercado dos papalvos.

Faz todo o sentido que os merdia o promovam como do melhorzinho, dado que, pela amostra, e mais não é preciso, é mesmo do piorzinho. Abaixo de zero. :O)

marina disse...


os títulos mais conhecidos.
“Sapiens – História Breve da Humanidade, de animais a deuses”

"Homo Deus: história breve do amanhã"

a tal soberba dos rastejantes.

dragão disse...

Sim, isso salta logo à vista no google. Até aí fui. :O) Então o segundo título é todo um programa muito pouco original. Mas é típico dos fulanos: vendem todos os dias rodas novas, revolucionárias, ultra xpto, como invenção sua, patenteada. Têm um tendência compulsiva para regurgitar as piores porcarias onde fuçam. E vendê-las como preciosidades únicas, claro está.