sábado, junho 30, 2007

Um dogma irrefutável

Tenho uma declaração importante, peremptória e, espero bem, altamente polémica, a fazer. Uma vez feita, não estou disposto a recuar sequer um mílimetro, nem que chovam picaretas ou uma galáxia super-predadora apareça para se refastelar com a nossa infame Via Láctea. Desafio abertamente o contraditório e quaisquer teses alternativas, mas aviso desde já que tenciono torrar todos e mais alguns. Por uma razão muito simples: aquilo que vou proclamar é a Verdade, na sua acepção mais pura e evidente. Estais preparados? Bem seguros? Então, tomem lá:
Os "Morphine" são a melhor banda surgida depois do ano de 1975.
Façam um favor a vós próprios e escutai faixas como "Do not go quietly into your grave", "Have a lucky day", "Test-Tube Baby/Shoot'em Down", "The other side", "Cure for pain" - melhor, oiçam-nas todas, e depois contem-me como foi.

Infelizmente, depois que fui obrigado a mudar para o "neo-blogger", nunca mais consegui publicar aqui vídeos do Youtube, pelo que não posso rechear com as devidas imagens e sons este dogma inexpugnável. Mas não faz mal. Se já os conheceis, decerto ides concordar comigo. Se não conheceis, ide conhecer, ó ignaros!
Não obstante, aqui ficam algumas "Urls":

sexta-feira, junho 29, 2007

Insólitos domésticos

Acabo de assistir a um fenómeno insólito: o mini-nistro e descomunal fungo Correia de Campas a exlicar ao Telejornal da RTPum a razão bestial porque demitiu a tal directora do Centro de Saúde Não Sei das Quantas. Imagine-se, exonerou-a porque a infeliz só dispunha como habilitação de uma simples licenciatura.
Lógica sublime: uma licenciatura não é bastante para dirigir competentemente um Centro de Saúde, mas uma licenciatura, ainda por cima manhosa e mal atamancada, é mais do que suficiente para dirigir um país. Quer dizer, para tratar da saúde a uma vilória não serve, mas para tratar da saúde a um país inteiro é magnífica.
Implicitamente, o Curreia, de seguida, vai demitir quem - o Primeiro-Ministro?

Galactofagia

Agora os cientistas, sempre na brecha, descobriram mais uma daqueles fenómenos paranormais que só eles conseguem vislumbrar: A Via Láctea está a comer uma galáxia mais pequena. Nem mais.
Ficamos assim a saber que habitamos uma galáxia canibal. Enquanto não chega uma galáxia gigante que a coma a ela, a nossa galáxia descobriu uma minúscula - a galáxia anã Sagitário, dizem eles - e está neste momento a devorá-la. Não sei quem lá mora, que espécies eu géneros, mas está decerto a passar um mau bocado. E não deve ser uma coisa bonita de se ver, excepto naturalmente para os cientistas, que se pelam por mironear monstruosidades destas.
Há malta que fica deslumbrada com estas permanentes e mirabolantes descobertas dos cientistas. Eu não. Fazem-me lembrar os adivinhos do antanho. São uma espécie de áugures menos divertidos e mais arrogantes. E padecem dum mal muito frequente na nossa espécie: como não caçaram suficientes gambosinos em pequenos, gastam a idade adulta, compulsivamente, em safaris compensatórios para tão traumatizante e vital carência.

quinta-feira, junho 28, 2007

A praga ou o Correia de Campas

Lembrou-me aquele comentário acerca do governo de então, em que, salvo erro*, Ramalho Ortigão, nas "Farpas", dizia qualquer coisa como "este governo não cairá porque não é um edifício, sairá com benzina porque é uma nódoa." E ocorreu-me a propósito deste ministro nosso da Saúde Malsã. Também não merece tratamento nem tem remédio, porque não é um doente; antes merece um pesticida bruto porque é uma praga. 605 Forte, no mínimo. E dentro do prazo, para que a cura não perigue e o fungo, em vez de morto, não saia reforçado.
* É erro mesmo. Não foi o Ramalho, mas o Eça, no "Conde de Abranhos". O que vale é que os leitores desta casa, sempre perspicazes e atentos, não deixaram passar em claro tão grosseira cavalgadurice e tratarem de aplicar o correctivo adequado à besta que aqui, sem qualquer pejo nem vergonha, defenestra a literatura e a história da mesma. Abençoados!...

A mínima rês

Aqueles que não acreditam em "homens providenciais" são aqueles que, regra geral e em contrapartida, acreditam, piamente, em estados providenciais, ou em Mercados providenciais, ou em ideologias providenciais, ou em ciências providenciais, ou em seitas ou mafias providenciais. Desprezam os homens porque acreditam em todas essas instituições e mistérios angélicos que lustram e terraplenam o planeta. Donde provirão estes anõezinhos ressentidos e bur(r)ocratas, estas maquinazinhas merdificantes (o pensante fica-lhes implícito), amantes da mecânica e da relojoaria? Que paraíso de engrenagens peregrinarão? Estas crisálidas do robot vão para onde?
Afinal, como é tanta e buliçosa a descendência de Procusta! E isso chega a ser espantoso. Porque o resto não é; e apenas reflecte uma das leis mais antigas do mundo: a mediocridade sempre odiará a excepção.

quarta-feira, junho 27, 2007

De simplex exorciborus

O caso resume-se em duas palavras: a sopeira do Dino tomou o freio nos dentes. O Dragão, que é um cínico, comentou: "Bem, antes o freio que o prepúcio; se fosse o prepúcio é que era uma chatice". Não sei quem é o tal "Prepúço", mas não achei piada à falta de solidariedade do Cospe-lume, pelo que estrilhei: " Dasse ó Dragão, se fosse a tua sopeira que desatasse numa sorna daquelas, agarrada às telenovelas, às "Marias" e às "caras" que só visto e a não querer fazer nenhum, aposto que não te punhas com essas altamijices! Em vez de te preocupares com o Dino, que além de meu secretário-técnico é teu amigo, interessas-te é pelo tal papuço, ou acúrcio, ou lá como se intima o fulano!..."
Aqui o gajo ainda me rosnou que o dito Púcio andava envolvido com uma tal Glande, mas eu já não lhe liguei nenhuma (tristeza do camandro, agora a cuscar a vida dos outros) e fui, mais o Dino, à procura do Padre Inocêncio para ver se vinha dar um jeito na possessa. Ao princípio, foi um bocado difícil convencê-lo da urgência da coisa. Cercado por um bando de beatas vestidas de corvos agoirentos, desplanteava-se a torto e a direito: que varrer telenovelas não era grave, mais grave e digno de exorcismo eram certas pessoas que passavam a vida a varrer galdérias e mulheres do alheio; que vampirizar revistas da tanga também não era alarmante, mais digno de emergência médica eram certos gabirus que até vampirizavam ácido das baterias à falta de aguardente ou trotil amedronhado; e outros remoques que tais visivelmente endereçados aqui ao Engenheiro. Eu até estava quase a dizer ao Dino: "Anda-te embora, ó Dino, que o prior só descumbersa!" Mas aí o Dino teve a feliz lembrança de murmurar que a desvairada agora até gastava as tardes metida em comícios da IURD e os sábados a escutar pastores evangélios em Campolide, pelo que o das hóstias lá se tocou, despachou as beatas, pegou na bíblia, numa série de cachecóis do clube dele e veio ver o que se podia fazer pela rês em perigo. "Má rês, avisei-o eu. Olhe que aquilo, da maneira que está, só lá vai com uma boas bordoadas". Donde recomendei que, na qualidade de pastor justiceiro, não esquecesse o cajado. Mas o gajo olhou-me de través e nem me respondeu. Nitidamente, não vai à bola comigo. Nem nitidamente nem aos domingos.
Chegados a casa do Dino, lá deparámos com a mal-parida, a ouvir o canal da IURD no rádio, de "maria" nas unhas e escarrapachada nos seguintes propósitos (até tirámos a fotografia que se segue para prova futura):



Estremecemos todos de horror. O prior benzeu-se. Pela casa toda, o pó e a sujidade amontoavam-se (amontoavam-se é pouco, que aquilo já formava cordilheiras); a desarrumação era geral; na cozinha, um monte de loiça suja levedava monstros e já invadia a sala; da casa de banho tresandavam cheiros que nos davam saudades duma boa sargeta de beco ; um monte de roupa por passar apinhava-se a um canto; cascas de amendoins e tremoços, caixas vazias de bombons e rebuçados cobriam a carpete e as alcatifas; uma ratazana pôs-se a milhas, mal nos viu.
Desmoralizado, o Dino choramingava no ombro do religioso, depositando nele as suas últimas esperanças.
O Delegado Divino reconheceu finalmente que havia ali obra do Diabo e decidiu meter mãos à obra. Eu bem lhe dizia "Olhe que isto só com as mãos não chega, tem que chegar-lhe também com um belo cacete!", mas o homem de Deus teimava com os seus ritmos tradicionais. Começou por ler-lhe uns versos numa língua estranha - gambosinês ou chatim, se me perguntassem - atirando-lhe ao mesmo tempo uns borrifos de água benta - tudo isto aperaltado nos cachecóis do clube dele (suspeito que é da Sanjoanense). Sussurrei ao Dino: "Está a borrifá-la, queres ver que a vai passar a ferro... Por mim, dava-lhe era c'o ferro na cabeça!...)
A megerona, claro está, borrifou-se para os borrifos. Bocejou que nem um hipopótamo, desligou o rádio e, de controlo remoto à ilharga, ligou a TVI. Melhor fora que tivesse vomitado verduras. Desatou a mamar telenovela à força toda. Ela e nós também, desgraçados e fodidos da vida, que o volume ia alto e já nem a declamação do padre se ouvia. O pastor desesperava e tentava obstar com o cordofone vocal aos transistores endemoinhados do telesgoto. Fraca contrapartida. Já quase a ficar afónico e roucafenho de tanto bravejar, ainda experimentou certas paisagens e perlicoques da Bíblia. O livralhão era grande e pesado. Maciço. Impunha respeito e via-se que fatigava os braços. "Faria melhor se lhe afiambrasse com o calhamaço na cornadura! Um calhamaço só la vai à calhamaçada!...", ainda pensei. E provavelmente estava cheio de razão. Porque daí a nada, o padre ficava mesmo sem pio nem pilhas, com o cordofone todo esbodegado. Vermelho que nem tomate ou quase da cor das camisolas do Glorioso por via do gritanço e da berraria (o que, reparei, destoava do cachecol), agora já só grasnava e grulhava em tom cada vez mais arfangélico. Foi nesse tom barítunante e a suar em bica, que comunicou ao Dino ser o caso mais grave do que ele pensava, pelo que tinha que ir comprar pastilhas prá garganta e falamentar com o bispo a fim de pedir reforços. Meu dito, meu feito: desandou porta fora, rua abaixo, todo derreado dos fagotes e da fézada. E deixou-nos entregues à bichareza - o paquiderme, os ratos, as aranhas, o varejeirame e as baratas. Já não falando no monstro alimalgémio que estava a fermentar, todo pimpão, no monturo rastejante da loiça suja que espreitava da cozinha..
O Dino, coitado e resignado, já se dispunha à retirada estragética, quando me lembrei dumas quantas astúcias e artiminhas. Não é por acaso que me chamam o Einstó da Graça, embora na Moraria me conheçam mais pelo Arquimetes de Alfama.
"Ouve lá, ó Dino... -disse-lhe eu. - Tens ai um monte de alfarrádios, ainda mais do que o Dragão, porque não experimentas ler-lhe outras partes erudóides? Não foi lá com a Bíblia, pode ser que vá, por exemplo, com aquele gajo muita esquisito, o Manuel do Canto - aquele, ó Dino, o da Crítica da Razão Puta!... Experimenta, meu velho, não perdes nada. Já que 'tamos co'a mão na massa..."
"Olha, boa ideia, Caguinchas, caro Engenheiro. Não foi com religião, a bruxa, pode ser que vá com filosofia!...", animou-se ainda ele.
Um ror de filosofia depois, a gajorra não tinha ido. Nem ido nem vindo, nem coisa nenhuma. Vaca do carulho, continuava no mesmo sítio, a pedir uma grua ou um monta-cargas dos valentes que a removessem dali para o abate. O Dino experimentou ainda o Vitoganso Toino, Camões, o Bocage, alguns manuais de alvenaria, o borda d'Àgua, o Tintin na Patagónia, enfim, livros e mais livros, de todos os talhos, feiçalhos, matérias e patérias, esótécnicos e tudo, mas o estafermo lá continuava todo rainhoso e mastodono.
O Dino lastimava-se e assumia a derrota. "Já experimentei tudo, - carpia - filosofia, poesia, teatro, ciências, astrologia, psicologia, agro-pecuária, ocultismo, e nada. Acho que desisto. Tem as banhas dum hipopótamo e a couraça dum pangolim!..."
Reparei então num letrotério que ele tinha em cima da secretária, com uma capa a lembrar crocodilos. "Ainda não experimentaste este, ó Dino!", alertei-o. "É o livro do Dragão", actualizou-me. "Ofereceu-mo no Páscoa e ainda nem o li." E de facto era o que lá dizia na embalagem "À Queima-Roupa", César Augusto Dragão.
"Oh pá, experimenta ler-lhe umas páginas" - sugeri. "Se bem o conheço, o Guarda-princesas, deve ter gatafunhado para aí umas receitas tais, que a gaja mal oiça duas ou três dá-lhe o fogo no rabo em três tempos e desopila em passo de corrida!... O sacana escreve coisas que não só não lembram ao diabo como o põem a fugir a sete pés!...Ao diabo e a qualquer ser vivo... e mesmo as pedras, os grandiosos calhaus, não sei não..."
Numa última tentativa, o Dino lá principiou -isto é, piou que nem um príncipe - na leitura das pilérias e grupos do Labaredas.
Para nosso grande espanto, ao fim de dois ou três capítulos, operara-se uma espantosa e assombrosa transformação. Como naquelas histórias em que o sapo dá lugar ao príncipe, aqui a sopeira elefantosa metamorflausinou-se em algo que, para que não me chamem mentiroso, registei - em flagrante deleito - na fotografia que se segue:


Em menos de nada, com um dinamismo digno duma fada, desatou a deixar a casa num brinco. Até dava gosto vê-la. A passar a ferro, então, era um mimo...



Por fim, lida a obra, a moçoila apetitosa, agora uma profissional de mão-cheia, verdadeira fada do lar, concluíra também as tarefas domésticas. E predispôs-se às espirituais, ou mais bravias, por assim dizer. Realmente, colocada ordem na casa, só faltava colocar ordem nas ideias que descarrilavam desordenadamente em duas cabeças. Ambas minhas, esclareço, a de cima e a de baixo. Já que o Dino, felizmente, fruto da idade, da leitura monocórnica e embalado no suave milagre que lhe salvara o lar, adormecera que nem um santo. Bendita hora!



Porque, graças a Deus, eu de santo não tenho nada. E ela de postiço também não tinha.


Emgenheiro Ildefonso Caguinchas


PS: Além disto, acho que o livro também é bom para desentupir canos. Lêem-se-lhes duas páginas e é vê-los correr em beleza.

terça-feira, junho 26, 2007

Do descrédito para o colapso




Uma das provas hiantes de que esta pseudo-democracia, após rebolar no descrédito, se abeira velozmente do colapso é que, em cada novo regabofe eleitoral, este em pouco mais consiste que numa distribuição antecipada de pelouros a criaturas que, na grande maioria dos casos, apenas mereciam pelourinhos.
Nunca a tão diminuta gente vestiu tão apropriado um diminutivo.

segunda-feira, junho 25, 2007

Entre o Chuto e o Pasto

João Goulão, que não conheço de lado nenhum mas aproveito para cumprimentar, dizem-me, é o digníssimo presidente do Instituto da Droga e Toxicodependência. Para além de dar emprego ao João Goulão, mais o rebanho de disfuncionários e amanuenses às suas ordens, também desconheço com todas as minhas forças para que diabo serve uma instituição estatal com tão prosaico nome, mas suspeito seriamente que, ou para rigorosamente nada, ou para coisa nenhuma (excepto aos domingos e dias feriados, em que contribui, de certeza absoluta, para a felicidade de muita gente). Mas isso agora não vem ao caso. O que vem é uma entrevista do sujeito ao Destak. Querem ver o que é uma mente brilhante? Então deslumbrem-se:
Premissa nº1 - «os adolescentes têm hoje uma maior capacidade de fazerem escolhas individuais».
Conclusão (dele, naturalmente) - O consumo de drogas tende a estabilizar, se é que não está já mesmo em animado retrocesso.

Que ilação protuberantíssima podemos nós, entretanto, retirar dum tão impecável e fulgurante silogismo? A mais óbvia e elementar:
Não é só a maioria dos jovens que vê o uso do haxixe como "inócuo e inofensivo": o presidente Goulão, a maioria parlamentar e respectivo governo também.
Ora, com autoridades destas, vamos continuar a pensar mal dos traficantes?...

Mas há mais.
Vamos ao segundo raciocínio, não menos esfuziante do que o primeiro.
Premissa nº2 - «A cocaína ainda continua a ser associada ao glamour, nomeadamente ao mundo dos artistas e do dinheiro, e, por esse motivo, as pessoas pensam que "não deve fazer muito mal". » (perífrase agravada de eufemismo para dizer que o consumo, certamente para compensar a diminuição da heroína, aumentou).

Neste caso, em vez da ilação, é uma perplexidade que nos irriga: então se a heroína está desprestigiada, em recuo esbaforido e a cocaína avança em ombros, qual maré viva, não fazia muito mais sentido, em vez de salas de chuto, criar salas de snifo? E no lugar de troca de seringas, não deveriam antes propiciar a troca dos inaladores? Ou agora nas prisões o Estado só permite heroína? É reserva ecológica? Insere-se no novo PDN - Plano de Droga Nacional, digo Nacinhal?...

Mas o João Goulão, presidente em exercício do Instituto benemérito, como bónus, deixa ainda um alerta. Sobre a cocaína e o seu prestígio entre os jovens que imaginam que "não deve fazer muito mal". Que essa é «uma «visão errada», garante, pois, pelo contrário, a cocaína cria «uma ávida dependência» e pode provocar patologias mentais graves, como «a esquizofrenia e as psicoses».
O que, convenhamos, é verdade. A cocaína tem efeitos reconhecidamente nefastos. Embora não tão nefastos como o Ministério da Educação e respectivos frankenstoinos residentes. Porque aquela, a coca, eventualmente, sob determinadas condições, poderá gerar esses efeitos perversos, enquanto estes, os magarefes do ensino, outros efeitos não engendram senão esses. Andam mesmo há anos, num afã intenso, a criar dependentes, insipientes e mentecaptos ávidos e a provocar, promover e cultivar toda uma cornucópia de patologias mentais graves, como a esquizofrenia, as psicoses, as neuroses, a paralisia conceptual, a esterilidade imaginativa e - súmula teleológica, síndrome consumada de todas essas - a doutorose. Aliás, deve ser por isso mesmo que o país fervilha e rebenta sob uma constelação inesgotável de salas, não de chuto, mas de pasto. E a palha abunda em todas elas. Palha alucinogénea, ainda por cima. É, de facto e de jure, toda uma resma de gerações de porturreses a aprender a "tripar". Não como tantas vezes no passado infame, em que faziam das "tripas coração". Nada disso. Agora, sob o imperativo modernaço, perpétuo-reformador, aprendem a fazer delas cérebro, alma. Quando não o próprio sexo e - por inerência de novideia - nação.

sexta-feira, junho 22, 2007

Sermões impassíveis - "Caos, merda, família".

AVISO: Este postal não é recomendável a leitores facilmente sugestionáveis. (E deve ser precedido da leitura destoutro aqui, sob pena de não fazer completo sentido).


Também tenho, não propriamente um amigo, mas um inimigo, um tipo bizarro que, segundo conta o Caguinchas e corroboram todos aqui na tasca, digo cibertasca, tem um namorado. O namorado também tem três pimpolhos, embora a malta suspeite que não por muito tempo. Adiante todos perceberemos porquê. Voltando ao meu inimigo, descobriu, aqui há uns anos, que dum ponto de vista, digamos romântico e sexual, preferia o canibalismo, ou seja, não se contentava de comer metaforicamente o objecto desejado: tinha que devorá-lo também materialmente. Ao que parece, não o contentava que a relação fosse apenas uma relação, tinha que ser também uma refeição. Ambicionava refastelar-se. Em suma, sofisticou-se. Um ímpeto vanguardista irresistível apoderou-se dele e desenfreou-o às maiores audácias.
Talvez por isso, a mera antropofagia dos ancestrais, que algumas tribos da Nova-Guiné, dizem, ainda praticam como há mil anos, armando espeto ou grelhador, enfastiou-o rapidamente. Que coisa sensaborona e entediante! Incendiado de fantasias cada vez mais obsidiantes e avançadas, não tardou a descobrir o nicho cultural que mais lhe convinha (e onde desde essa data vem nidificando): dedicou-se ao canibalismo escatofágico, tornando-se uma espécie de cagossuga fogozíssimo. Tomado dessas voracidades, viram-no peregrinar restaurantes na companhia de parceiros obesos particularmente glutões, a quem empanturrava de comezainas e manjares laxantíssimos, duas horas antes de os conduzir à retrete conjugal. Uma vez aí, imagina-se a que amorosíssimos e repugnantes festins não se devotou, com que mingaus fétidos não regalou os peculiares apetites, que empreitadas voraginosas não levou a cabo. Basta recapitular os tremendos contentores paquidérmicos em que sistematicamente refocilava e saciava momentaneamente a gulodice. Até que um dia, ao que consta, após uma sessão prévia de flatulências afrodisíacas que o deixaram singularmente excitado, terá comido um amante que, além de diarreia crónica, padecia de hemorróides agudos (estava a modos que menstruado). Foi assim que provou sangue, o meu inimigo. E gostou. Minto: não gostou, adorou cada instante, venerou cada segundo. Algo na mistura de merda e sangue o tranportou, por foguetão expresso, senão mesmo TGV, a outra galáxia.
Desde então, a escatofagia viu-se enriquecida com o vampirismo. Quer dizer, além de comê-los e snifá-los, aos namorados, também os bebe. Formidável e polifacetado três-em-um, empanzina-se, droga-se e embriaga-se neles. Enfim, um cidadão exemplar. Comendador e laureado.
Quanto ao seu namorado actual, apaixonou-se por ele (pelo meu inimigo) depois de decénios de relações infelizes com mulheres, donas-de-casa obtusas todas elas, maníacas da higiene e das limpezas sem excepção, marechalas do lar ainda por cima. E que, para cúmulo, não achavam piada nenhuma a que ele defecasse pelos sofás, golfasse pelas alcatifas e cismasse de urinar de pata erguida contra as paredes, à moda cínica. Em resumo, bruxas repressoras e inibitórias, sem qualquer motivação para o arrulho, a faguice e todas essas dulcinóias tão inerentes aos espíritos delicados com vísceras altamente perfunctórias. E sensíveis.
Não sei se o meu inimigo e o namorado almejariam casar. Mas imagino. Efabulo. Dava-me jeito à arenga que sim. Entretanto, suspeito que gostariam de fazer uma série de coisas típicas dum casal, sem terem que esconder-se atrás de sebes, demandar matas cerradas, túneis recônditos, grutas naturais, ou, o que ainda é mais deprimente, barricarem-se em sanitários públicos a desoras. Já não falando no mais humilhante e mutilador de tudo: ficar em casa. Quase de certeza, acho eu, o meu inimigo gostaria de andar com o namorado pela trela, na via pública, nas alamedas e jardins, eventualmente nos centros comerciais e hipermercados, sem que isso fosse considerado "obscenidade", "exibicionismo", "provocação", ou até "nojice" (nem, tão pouco, "pecado"). Pois se qualquer cão, até rafeiro, pode defecar na rua e ninguém vê nenhuma aberração nisso; se qualquer casal cão/dono pode ter uma relação plena e saudável ao ar livre, um largando a pérola com visível ademane, o outro recolhendo-a com manual volúpia e enluvada ternura, então, porque raio, porque diabo, porque carga de água das malvas, ó corações graníticos, não podem, o meu inimigo mais o seu lulu, desfilar em idêntico requinte, coroados na magna vantagem da recolha ascender de manual a oral, acrescentada do bónus de não deixar nódoa nem odor?!... Será que os humanos têm menos direitos que os caninos? Será que o que se tolera aos animais irracionais não pode tolerar-se às pessoas modernas e evoluídas?...
Por causa destes trogloditismos obscurantistas, o namorado do meu inimigo continua a desbordar-se de preferência no armário e hesita em assumir diante de todos tão pipilante, maviosa e pulcra relação; titubeia, vacila e gagueja na hora de exibir tão fremente, pungente e edificante romance aos filhos e ao conselho de administração a que preside. Borra-se de medo quando apenas deveria borrar-se de prazer e por prazer. Chega até a borrar-se sozinho, desperdiçando assim o melhor da sua vida com angústias, dúvidas e terrores. Pelo menos é o que diz, queixando-se amargamente, o meu inimigo. Lastima-se sinceramente dum tal prejuízo e não menor contrariedade. Aprecia o néctar fresco, como o leite ainda quente à bica da têta. Que só assim preserva, diz ele, além das propriedades nutritivas, a eficácia afrodisíaca, o efeito psicotrópico e libidogéneo, o valor afectivo. Para além disso, detesta comida requentada e, sobretudo, abomina que o namorado se veja na contingência de usar fraldas de castidade e rolhões herméticos de segurança. Em pleno Século XXI, é uma aberração inadmissível!, proclama. "E o stress - indigna-se - o stress arruína o PH da substância de qualquer relação!..."
É meu inimigo, porque os inimigos do Engenheiro Ildefonso Caguinchas meus inimigos são. Mas diante dum tal quadro de drama e tragédia, perante tão severa e desnaturada clandestinidade, até eu, e o Caguinchas e toda a tasca, digo cibertasca, em coro comigo, perguntamos: será mesmo necessário fazer sofrer assim, com desumanidade tamanha, pobres infelizes destes?... "Caos, merda, família", não é um lema supimpa e tão bom como outro qualquer?...

quinta-feira, junho 21, 2007

Reciprocidade ou coesão?

«Cartas de condução emitidas em Angola válidas em Portugal».

O que, convenhamos, é da mais elementar justiça. Depois dos diplomas universitários, era mais do que tempo das cartas de condução. Em breve serão os passaportes e, logo a seguir, os BIs.

Se bem me lembro, o lema forte do MPLA era "Uma Angola unida, de Cabinda ao Cunene". Não tarda, está desactualizado. Terá que ser convertido em "Uma Angola Una, do Minho ao Cunene".

quarta-feira, junho 20, 2007

Regras para a Direcção do Desespírito

1ª Regra:
Em democracia moderna só as promessas ou intenções são sufragáveis, jamais as decisões.

Significa isto que o máximo que o povo pode eleger são putativos representantes seus que, uma vez eleitos, deixam automaticamente de estar vinculados a qualquer programa, garantia, fidelidade ou compromisso entretanto contraídos. Ao assinar de cruz, o cidadão não elege: delega. Passa um cheque em branco por determinado prazo. A um soberano substituto, doravante seu tutor legal, para quem abdica e ao qual infantilmente se submete.
Em conformidade, o referendo ou plebíscito só é permitido e encenado pelos putativos representantes quando entre estes e os representados não existe hipótese plausível de desacordo.

terça-feira, junho 19, 2007

Sorteio ou catapulta

A propósito de mais esta perda de tempo e dinheiro para o Município Alfacinha, reafirmo-o peremptoriamente: com as urnas não vamos lá. Isto, bem entendido, se a ideia é encontrar alguém que nos represente e não alguém que nos enterre. Trinta e três anos de exéquias fúnebres e delíquios mortuários já chateiam. Insisto portanto no sorteio por tômbola ou roda da sorte. Já temos o Totoloto, o Loto 2, o Euromilhões; é só questão de acrescentarmos o demoloto. Se o sufrágio universal mais não tem que instaurado o naufrágio geral, quem sabe se através da lotaria não desencantamos, por feliz acaso, uma bóia de salvação ou até, caso a Fortuna sopre mesmo de feição, uma jangada!...
Não confiais na escolha da sorte? Mas deveríeis. Aufere duma vantagem evidente em relação à vossa: sempre tem uma probabilidade, ainda que mínima e remota, de não sair merda.

Ou então uma catapulta. Em vez de eleitos, os perpétuos e vitalícios candidatos eram catapultados. Para a Câmara da minha terra, por exemplo, montava-se a máquina eleitoral lá do outro lado do rio, na Trafaria e concediam-se três lançamentos a cada lista ou partido. A máquina era igual para todos, genuína virtude democrática. Depois, por ordem alfabética, apontavam e atiravam. O candidato que, após imaculada trajectória balística, acertasse em cheio no telhado dos Paços do Concelho era eleito presidente. Estava morto? Quase de certeza. Mas aí, precisamente, residia a ímpar vantagem deste processo: era da maneira que menos mal fazia aos vivos.

Experience


Civilizacinha

Um artigo na Alameda Digital de leitura, mais que recomendável, obrigatória.

À parte alguns devaneios e nostalgias terminológicas, subscreveria quase tudo. Excepto a conclusão final. Aí, creio que o autor se equivoca redondamente quando diagnostica que (ponto 5.6)«Todas estas actividades contra a Civilização são orquestradas por indivíduos com interesses e motivações diversas. Muitos fazem dessas actividades, no seu dia-a-dia, uma permanente militância. Eles recebem depois o apoio de pessoas que influenciam mentalmente, que subornam pelos mais variados meios, ou que simplesmente são confusas e frouxas, pessoas que, embora não defendam explicitamente essas doutrinas e práticas com o mesmo empenho, constroem uma argumentação eventualmente filosófica relativista, «ponderada», permissiva, cúmplice, que, na prática, apoia as maquinações dos conspiradores contra a Civilização.»

Por uma razão muito simples: não julgo que sejam "actividades contra a civilização", mas, conforme certificam - diaria e ininterruptamente - os ditames da moda campeã e do Mercado Todo poderoso, através dos seus inúmeros arautos e turbinas corta-relvas da dinamização cultural, manifestações superiores e avançadas da mesma. Chamar conspiração contra a "Civilização" à vanguarda iluminada da dita é capaz de ser um pouco excessivo. Porque, efectivamente, não é de conspiradores que se trata, mas de jóqueis, surfistas dourados, locomotivas, faróis, capatazes. E alcaiotes, todos eles.
Conspiradores contra a civilização são todos os que não adoram nem agradecem, de ventas no chão e cu apontado ao céu, este maravilhoso Mundo-Barbie, perfeitamente amorfo e desossado - esta civilizacinha! - onde nos conduzem. Escória nazi-fassista, no mínimo. E sem excepção.

segunda-feira, junho 18, 2007

A Comida-lixo e o lixo que serve de comida



«União Europeia contra a fast food».
Claramente, estamos perante uma conspiração, um boicote sinistro aos nossos pensadores liberais ML (muita loucos), quer de direrda, quer de esquerdeita. Todos sabemos como é no decurso - e, sobremaneira, no corolário - da digestão de tão suculentas rações que logram produzir aqueles portentosos nacos de doutrina econopolítica. Quando, a bem da reestruturação empresarial, descobre que sai mais rentável e infinitamente menos dispendioso para as meninges concessionar, em regime de outsourcing, as funções cerebrais ao intestino grosso, pode lá uma junk-mind viver sem uma dose abundante de junk-food. Se lhe retiram o input, que será do output? Isto, acreditem, na vida das psicoputas, não é nenhuma questão de somenos.

De caminho, a mesma notícia reforça-nos uma evidência que julgo pública e notória: «Em Portugal, um em cada três jovens são obesos» De facto, um em cada três é obeso e três em cada quatro são estúpidos que nem uma porta. Graças a essas cadeias de fast food mental que são as televisões, com realce para a inestimável e consagradíssima TVI. A estes costumes, a UE, contudo, diz nada. Não admira: ao contrário da obesidade, a imbecilidade é um dos pilares - pilar e trave mestra - da Nova-Civilização Acidental. Ou melhor dizendo, se a porcinização do corpo os preocupa ligeiramente, por causa das despesas, já a porcinização da alma enche-os de satisfação pelo dever cumprido, por causa dos lucros.
Para terminar, e em jeito de revelação angustiante, ficamos a saber que as «famílias menos abastadas comem mais fast food». Aqui, todavia, permito-me duvidar. Duvido mesmo com grande cepticismo. Na realidade, as famílias da classe média-média é que comem cada vez mais fast food (têm que poupar na comezaina para os diversos créditos -de viagens, solários, spas, colégios, salas de explicação, play-stations, etc); as menos abastadas, essas, quer-me cá parecer, devoram, isso sim, e com inusitado desembaraço, doses crescentes de rações para cães e conservas fora de prazo. E chamo a atenção que estamos apenas a sociopsiar ao nível da classe dos "abastados" - dos menos e dos semi-outrora-quase. Porque se formos para a classe dos pobres - dos mais, dos menos, dos completos (fora os absolutamente indigentes e sem-abrigo)-, temo que o quadro, de tal modo excruciante e ruinoso, ainda cause alguma revolução ó-gregoriana nas entranhas dos leitores mais sensíveis. Para ser sincero, a mim, mais até do que a sobrevivência dessas quase-gentes, intriga-me, sidera-me e constitui mistério profundo a arte quotidiana de conseguirem não apenas sobreviver como ainda alimentar um ou mais telemóveis. É caso para dizer que num país onde, tradicional e fervorosamente, se engravidou pelos ouvidos, agora descobriram como alimentar-se também. À falta de com que darem ao dente, dão à tremela; em vez de encherem a barriga, atestam o orelhame. Bizarro? Incrível? Por mais que pesquise, não vislumbro outra explicação. Direi até mais: se no tempo do Salazarismo tenebrosíssimo cada pobre conseguia o prodígio de alimentar inúmeras bocas famintas, agora, nesta democracia radiante que Deus a benza, cada pelintra consegue a não menos transcendente proeza de alimentar numerosíssimas orelhas insaciáveis. Já não falando nos pobres de espírito, os indigentes mentais convulsivos, acantonados nas elites e gravitando à babugem delas, porque esses, ao que tudo indica, privilegiam mais o SMS.

Já agora, uma estatística interessante seria avaliar o número -certamente crescente - de pessoas que, sem dinheiro sequer para o Mcdonnald's ou demais manjedouras de comida-lixo, se alimentam directamente no contentor do mesmo nome. Poderá ser mais deprimente, é certo, mas estou em crer que, a médio/longo prazo, é capaz de se tornar mais saudável.

domingo, junho 17, 2007

Desejo de Requinte

- Ambrósio, apetecia-me discriminar algo!...
- Tomei a liberdade de pensar nisso, senhora...
- Ambrósio, mas... é um pobre!...
- E desempregado, senhora!...
- Humm!... Que delícia! Bravo, Ambrósio!

Super-Progresso

Mas entretanto nem tudo são más notícias. Um dos mais graves problemas da cidade de Lisboa está prestes a ser resolvido pela dinâmica e intrépida equipa de António Costa. É só cumprir-se a formalidade do sufrágio coroador de sondagens, o Costa assumir a poltrona e já está: os gays vão poder casar-se na cerimónia das noivas de Santo António, ou até mesmo no Salão Nobre da Câmara Municipal. Quem o garante, é Ana Sá Brito, a número três da lista prognovencedora. Falta só a bênção da maioria chuchalista, no palramento e na governadura. E quem duvida de que, nesta risonha confluência astral, ela advirá?
Por conseguinte, congratule-se toda a nacinha em festa: tudo se coordena e inclina para que Portugal se converta, a breve trecho, num país de galfarros hiperactivos e de paneleiros felizes.

sábado, junho 16, 2007

A Sempiterna esbirraria

O António Balbino Caldeira «acaba de ser convocado para prestar declarações como arguido no âmbito de inquérito judicial relativo ao assunto do percurso académico (e utilização do título de engenheiro) de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa».

Dizer que isto tem claros contornos pidescos seria um insulto para a antiga polícia política: ao menos aquela tinha a dignidade mínima de se assumir como tal e agir sem subterfúgios nem máscaras sonsas.

Isto ainda não é a América, mas, pelos vistos, já é quase Angola.

quinta-feira, junho 14, 2007

Os Anjos do Sexo

O João Gonçalves - a quem aproveito para rogar que não me inunde o tasco com excursões de turistas linkobúlicos - define-o como o "pitbull da esquerda portuguesa". Permito-me discordar em toda a linha. Até porque o próprio, numa ostentação ufana da sua delicada raça, se exibe numa estirpe que de "pitbull" não tem nada. Pelo contrário, todo ele é "poodle", todo ele é colo e canicure em barda; pedigree pal e foie gras, pelo menos, cinco vezes ao dia. Em suma, aquilo a que no bom idioma transmontano se chama um "lambe-cricas" . Coisinha mais vacinada e desinfectada não deve haver.
Bem, mas é claro que tudo isto depende da perspectiva, do ponto de observação. A mim parece-me um "poodle". O seu béu-béu recoquete, o pêlo (das ideias) lustroso e bem tosquiado, a coleirinha colorida, a trela moderna, as patinhas bem tratadas e mimosas, a dentuça hiperactiva apesar de atrofiada, enfim, toda essa panóplia de trim-tim-tim passear na rua, de roda das saias da Madame Cleptocracia à babugem da gamela da Sopeira Situação, nunca me enganou. Mas à generalidade da "direita portuguesa", admito, poderá parecer um "pitbull". Eventualmente, um rothweiller. Àquilo a que eu, num momento de singular inspiração, cataloguei de "direita colibri", aí, Deus os acuda, certamente há-de até figurar um lobo mau ferossíssimo, senão mesmo um demónio da Tasmânia raivoso.
Isto, note-se, quanto ao sujeito. Porque quanto ao nome predicativo do mesmo (na gramática antiga), a discordância beirabisma a frontal refutação. É que se o conceito "esquerda portuguesa" já é um perfeito oximoro na generalidade da dita, no caso do "poodle" em análise, então, o oximoro devém - para lá de paradoxo - patadoxo, taradoxo e taralhadoxo, só para citar a coifa mais visível. Chamar português a um "poodle" destes deve constituir mesmo um dos piores, senão o pior, dos vitupérios com que se lhe pode assestar. Português, por Santa Barbie e São Judas Lacoste - uma rafeirice de gente desta?! Cães sem papá nem mamã a escorarem-lhes o trote e o defecanço na via ápia, mais as respectivas luvinhas ecológicas para facilitação, recolha e acondicionamento do artigozinho esforçado, de teor geralmente fofo e aroma invariavelmente fétido. Português é que nunca!...
Por conseguinte, tudo somado e abreviando, nem pitbull, nem português e mesmo de esquerda só na medida em que a amnésia lho permite. Uma amnésia selectiva, naturalmente. A maior parte do tempo, não se lembra. Do que não lhe interessa apenas. Ignora donde veio, ninguém sabe para onde vai. Suspeito que se Pacheco-pereiriza, mas ao ralenti, a passo gastrópode. Lá chegará, na tese; porque na prática nunca de lá saíu. É só aparentemente que flana, em trânsito, piriquitando entre lounges. O profeta Moisés Marx, de tábua de passar a ferro civilizações em riste, enformara a esquerda, ao contrário do idealismo, como uma praxis. Mas ele, caniche intrépido, já vai nos antípodas de Marx: esquerda doravante é só tese, só pose, halo e halitose, prosápia para engazupar papalvos. Agora Marx é poste de iluminação contra o qual erguer a pata e verter mágoas. Esquerda, de poodle, no seu momento mais intenso e glorioso, é estar catrafilado, co'a língua de fora, na perninha do urbano incauto a dar pinocadas fantásticas, babosas, imaginando uma ménage à trois entre ele próprio, a cadela Laica e o molosso Mercado. E é certamente no exercício de tão mirabolante e obsessivo frenesim que lhe ocorrem, não duvidem, grande parte dos fornicoques e floriloops para espantar basbacantes com que armadilha os passeios. Querem um exemplo sublime?
Podia quase citar por busca aleatória, mas contento-me com este eloquente postal, albardado com esta estupenda frase:
Evidentemente, está a usar de um eufemismo óbvio: Litro por cu. Toda a gente sabe que é assim que os poodles garanhantes, ainda mais metidos a libertoinos, alcançam o nirvana: a dá-lo. Ou a cheirá-lo. Ou ambas as coisas. Sem tabus. Alternativamente. Ou seja, com toda a reciprocidade.
E soletrem bem: dá-lo... chei-rá-lo... Estão a ver? É daí que lhes vem o halo.

quarta-feira, junho 13, 2007

Carne para Frankenstein


Vá lá, seja filantrópico: já doou sangue? Doe também o seu cadáver. E à hora da morte, já sabe, entregue a alma a Deus e o corpo à ciência. Se bem que, entre torturado pelos cornúpetos infernais ou dissecado pelos estudantes de medicina, quer dizer, entre as profundezas e as (nov)altezas, venha o diabo e escolha.

Mas não termina aqui. Falta a melhor parte:
O que nos permite compreender, entre outras coisas, a formosa gesta dos psicopatas particularmente carniceiros, ou dos verdugos profissionais de todas as épocas. Na verdade, a nada mais aspiram do que a humanizarem-se. E com tal fervor, com tanta sofreguidão, que nem esperam que o paciente morra.
Aliás, não deve ser por acaso que durante séculos se constituíram como principais abastecedores - imaginem de quem, isso mesmo: dos estudantes de medicina.
Pois é, iam directos, os presuntos, do patíbulo para a sala de anatomia. Agora vão ter que comprá-los à China. É a globalização.


PS: Quanto àquela parte em que o Barbosa crocita que «em todo o processo inerente ao uso de corpos para estudo ou investigação, os médicos, cientistas e estudantes de medicina têm a máxima consideração pela dignidade pessoal e social do falecido e dos seus familiares», sinceramente, o melhor é eu nem comentar isto. Com todo a respeito e máxima consideração pelo Barbosa, era abrir-lhe o crânio com uma serra eléctrica e enfiar lá dentro dois pingos de bom senso. De outra maneira, está mais que visto, não é possível.

terça-feira, junho 12, 2007

Especificidade, senhores, especificidade!...

Um título de notícia do Diário Digital reza que "Jim Carrey interpreta preso homossexual em novo filme". Ora, isto chamou-me a atenção não por qualquer especial interesse que esse particular actor me suscite (nos últmos anos, aliás, por via duma caterva histriónica de idêntico quilate, tenho vindo, paulatinamente, a passar de cinéfilo a cinéfobo), mas pela indefinição gritante do próprio título da notícia. Frase mais vaga, redonda e improfícua é difícil. Porque em se tratando dum preso, ainda para mais numa penitenciária americana, não basta referir que é homossexual: tem que especificar-se se é homossexual voluntário ou involuntário. Da mesma forma, em se passando o enredo no Portugal presente, não basta enunciar um determinado sujeito como homossexual: é essencial classificar se por vocação ou conveniência. De resto, como em qualquer outra profissão.
Tudo isto, claro está, partindo do princípio excessivamente optimista de que os jornalistas, à semelhança dos veterinários de família, não estão limitados aos genéricos.

Modernidade II

No mito bíblico, a mulher é extraída duma costela do homem; na fábula moderna, sob os auspícios da razão e da tecnoeficiência, já conseguem produzi-la a partir dum simples escarro masculino. É a distância que vai do Genesis à revolução biogenética.

Modernidade

Um homem cada vez mais convertido num filho da puta, uma mulher cada vez mais parecida com o homem (um verdadeiro "homem-de-imitação") e fica tudo dito quanto à essência da modernidade.

segunda-feira, junho 11, 2007

Tempo de espera

Segundo o DD, o Governo diz que quer reduzir o tempo de espera para cinco meses.
Pois claro, corroboro eu, faz todo o sentido. Nestes tempos da globalização e da super-competitividade, já não se admite que as grávidas continuem a gastar nove meses para dar à luz. É completamente obsoleto e anacrónico. Um desperdício de tempo e dinheiro. Assim não vamos lá.
Além disso, quanto menos desenvolvido vier o cérebro, melhor. Menos se tem que gastar depois com educações e formações académicas.

domingo, junho 10, 2007

Comunicado das Edições Lança-Chamas

O livro "À Queima-Roupa", de César Augusto Dragão, não esteve disponível nesse lamentável acontecimento cultural que hoje terminou, sob o enganoso título de " 77ª Feira do Livro de Lisboa". As "Edições Lança-Chamas" tudo fizeram para estar presentes, mas, infelizmente, a perversidade, o encanzinamento e a burrocracia congénita da CML, em torpe conluio com a APEL, não o permitiram. E todavia as nossas condições eram da mais elementar justiça, modéstia e simplicidade; a saber 1. Substituição daquela ridícula e gigantesca bandeira verde-rubra hasteada no topo do Parque Eduardo VII pela bandeira deste blogue, em idêntico tamanho, e apenas iluminada com holofotes; 2. Melhoramento das infra-estruturas de apoio à feira, através do acréscimo de um bordel nocturno que serviria, em simultâneo, de stand de vendas da nossa editora; e de um ringue de boxe, onde César Augusto procederia à distribuição de autógrafos, alternadamente, nos livros e nos críticos da especialidade; 3. Concessão de honras de estado, com direito a batedores avançados, majoretes e fanfarra, de cada vez que o nosso César Augusto visitasse a feira. De realçar, que a nossa boa vontade chegou ao ponto de abdicarmos do felatio simbólico a César Augusto Dragão por Margarida Rebelo Pinto, do queijo da Serra e presunto de Chaves à discrição para todos e da luta de orelhas (ou orelha-de-ferro) entre José Rodrigues dos Santos e Miguel Esteves Cardoso. É verdade; chegámos mesmo ao extremo de aceitar como opcional o Aston Martin e a suite presidencial no Ritz. Mesmo assim, nada feito. Eram mais que evidentes -eram sobrepujantes! - a má fé e o fundamentalismo saloio daqueles energúmenos. Assim, não admira que a cultura neste país não vá a lado nenhum e estagne num repugnante e pantanoso compadrio. É uma vergonha!
Aqui fica, pois, registada, para memória e indignação dos vindouros, a fidedigna denúncia de tão vil tramóia.

De caminho, e em jeito de compensação para tamanha sabotagem das artes, se é que tal é possível, passamos a transcrever uma resenha sucinta das críticas mais importantes entretanto vertidas em honra do mirabolante cartapácio.


«Um livro inesquecível. E não digo isto apenas porque, neste particular momento, tenho um sujeito extremamente mal encarado a apontar-me uma caçadeira à cabeça e um outro igualmente carrancudo de facalhão em riste. É realmente uma obra próxima do imortal. Ao contrário de mim, infelizmente. Que, ainda para mais, tenho uma pele deveras frágil ao sol - fará agora a um ferro em braza.»
- Ernesto F. Mendes, "DN", 31.04.2008

«Entre declarar “À Queima-Roupa” a obra prima dos últimos 24 meses ou levar com uma picareta de rompante, não hesito e espero que fique bem claro: "À Queima-Roupa", de César Augusto Dragão, é a maior obra da literatura portuguesa depois que a Antártida começou a descongelar!... O próprio César Augusto, se não é a reencarnação de Swift, Cervantes, Dostoievski e vários outros grandes vultos das letras lusas, num verdadeiro muesli cultural todos-em-um, parece!...»
- Eduardo Almôndega Coelho, "Visinha", 30.02.2007

«Faltam-me as palavras para descrever o que sinto. E alguns dentes para soletrá-las coercivelmente também. Dificuldades, essas, que as beiças inchadas por via dum valente pontapé voador circular (segundo me explicou gentilmente o técnico encarregue da entrega) só amplificam. Foi, de facto, senhoras e senhores, meninos e meninas, uma tareia monumental. Que suportei estoicamente, diga-se, com cristã longanimidade, e que, finalmente, louvado seja Deus, começa a dar os seus frutos: sim, vejo agora como está escrito num estilo arrebatador. Ou melhor dizendo, espreito, na medida em que um hematoma repolhudo e um sobrolho derribado mo permitem. Sim, acho que diviso por fim com certa nitidez: realmente é um livro devastador, um lirimoto de grau 20 na escala grega, sou forçado a confessá-lo. Pronto, já podem chamar o 112?...»
- Chico Graça Moura, "Jornal de Letras", 31.06.2007

«Digo-o sem qualquer rebuço: se deram o Nobel ao Saramago, a César Augusto Dragão, no mínimo, deviam entregar a França, a Áustria, a Checoslováquia, os Paises-Baixos, a Polónia, a Ucrânia e a Escandinávia. Tenho mais amor às minhas unhas do que à verdade. Mas, entretanto, alguma alma caridosa que forneça uma xuxa a Lobo-Antunes: aquele dedo não resiste muito mais!... »
- Jean Claude Delmas, "Revue Littéraire", 61.05.2007

“À Queima-roupa”, de César Augusto Dragão, é um obra sólida, contundente, que nos deixa mergulhados numa intensa comoção. Cada parágrafo conta. Sei do que falo: acabo de levar com ela, repetidas vezes, na cabeça. Uma capa duríssima! Só me apetece chorar.»

- "Nicolau Toy do Amaral", "Expresso", 03.13.2007

«Por amor da sua saúde e, especialmente, da minha e dos meus filhos reféns em parte incerta: encomende já o livro, leia-o de fio e a pavio e reconheça: este homem não é um génio, é um deus!... Ou, no mínimo, um super-herói, um super-homem!...»
- Carlos Hipotenusa, "Derpertai", 23.23.2006

«A leitura de “À Queima-Roupa”, de César Augusto Dragão tem para a crítrica literária a importância que o nascimento de Jesus Cristo teve para a História Universal: há um antes e um depois. Antes de a ler, é-se, tão somente, crítico; depois de lê-la, tornamo-nos idólatras.»
- Gertrudes Cândida Meireles, "Bordados e decorações", a publicar brevemente.

«Não li, nem preciso. É daquelas obras que fica bem em qualquer estante. A encadernação vale o dinheiro. Uma verdadeira pechincha! Combina na perfeição com qualquer reposteiro ou jogo de maples.»
- Paula Trombone, "Embalagens e etiquetas", 01.02.2001

«Tem palavras a mais e imagens a menos. Não entendi nada.»

- Engenheiro Ildefonso Caguinchas


Edições Lança-Chamas
Pela Direcção,

Assinatura irreconhecível

sexta-feira, junho 08, 2007

Utopias e Naves de Loucos


Enquanto não publico, porque não me apetece, a segunda parte da Conversa telefónica com o meu amigo Etienne Davignon, aproveito para repor um texto sempre actual.


«Os navegadores lançam as raízes da árvore genealógica da representação do bom selvagem e do paraíso terreal reencontrado. O Novo Mundo alimenta o ideal da fusão comunitária como remédio para a crise moral e social que mina o Velho Mundo.»
-Armand Mattelart, "História da Utopia Planetária -Da Sociedade Profética à Sociedade Global".

Desde então, há que reconhecê-lo, nunca mais o conceito "novo" deixou de galopar e redimir outros conceitos. O último capítulo dessa aventura, nestes nossos dias, fala-nos duma "Nova Ordem"... Mas já em 1898, após a invasão de Cuba pelo Corpo Expedicionário dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, futuro presidente, clamava: «a americanização do mundo é o nosso destino!» Não se tratava apenas dum desabafo entusiasta, dum delírio energuménico para animar as tropas. A doutrina do "Destino Manifesto" [dos Estados Unidos] já vinha desde James K. Polk e servira às mil maravilhas para confiscar belicosamente, ao México, o Texas, o Novo México, o Arizona, a Califórnia, o Nevada, o Utah, parte do Colorado e do Wyoming. Convertida em artigo de fé, esta doutrina passou a ser pregada, desde 1886, pelo reverendo Josiah Strong, o qual, com o fervor próprio dos iluminados, exortava à instauração urgente e redentora dum império cristão e anglo-saxónico. Em 1890, tão profusa sementeira colheu o seu principal fruto: "Alfred Thayer Mahan, professor do Naval War College, futuro almirante e artífice do poderio naval americano". Vai tornar-se o seu principal apóstolo. Uma nova geopolítica, baseada no domínio dos mares, iniciou-se então: "em direcção às Caraíbas, pelo golpe de mão sobre Cuba mas também sobre Porto Rico, considerados bastiões estratégicos do "mediterrâneo Americano"; em direcção à Ásia, pela conquista das Filipinas." «Nestas novas aventuras imperiais, o discurso messiânico roça o delírio. Elas são, aos olhos dos seus novos cruzados, a "manifestação da Vontade divina", o cumprimento do "desígnio da Providência", da "predestinação". "O que a nação ganhou com a expansão, escreve Mahan, invocando explicitamente a "religião de Cristo", foi uma ideia de regeneração, uma elevação do coração, a semente duma futura acção de beneficiência, uma possibilidade de sair de si mesmo e ir pelo mundo comunicar o dom que a nossa nação tão generosamente recebeu"». Ainda hoje podemos constatar os efeitos e os episódios mais recentes desta doutrina benemérita, por exemplo, no Iraque. Quer dizer, o vínculo entre a Nova Ordem e o Novo Mundo obedece a uma lógica transcendente, intrinsecamente "religiosa": o Novo Mundo é o Eden restaurado do Homem Novo, a oportunidade concedida por Deus à regeneração do Velho Mundo, decadente e corrompido. Mas isso é só a primeira fase. Existe depois um refluxo, um retrocesso, como nas marés... Ou seja: uma vez realizado e construído esse Novo Mundo, pelo Homem Novo, peregrino evadido do Velho Mundo (por obra e graça de Deus), compete-lhe transmitir essa regeneração ao resto do planeta. A Nova Ordem, temos o privilégio de testemunhá-lo, é só a última peripécia dessa odisseia. De facto, no fundo da alma americana, habita esta obsessão evangélica, este desígnio nacional por delegação divina, este imperativo categórico de levar a Boa Nova às Trevas e aos seus reféns. A americanização afigura-se, nesse sentido, uma espécie de Renascimento à escala planetária (e não já apenas ocidental), de que a globalização é só o penúltimo capítulo dum esforço entranhado e recorrente. Tentar explicar ou compreender esta aventura mirabolante em moldes estritamente racionais ou mesmo políticos revela-se duma precaridade confrangedora. O americanismo e a americanofilia não podem ser compreendidos sem a dimenção de crença paranóica, de fé religiosa que é, simultaneamente, o seu alicerce primordial e a sua força mística de combate.
Curiosamente, esta mesma mitologia, se bem que em moldes diversos, presidiu a outra peregrinação regeneradora, de promessas planetárias: a revolução bolchevique. Com o seu Homem Novo em trânsito para uma Nova-terra, paradisíaca e resgatada aos vícios e males do passado, materializa igualmente uma lógica protestante, de regenaração e ruptura histórica, de terraplenagem cultural e refundação cívica. Em ambos os modelos emerge essa novidade revolucionária -também ela essencialmente "protestante" -, da "redenção pelo trabalho". Quer dizer, o paraíso outrora perdido (quiçá, por causa da ociosidade) pode ser agora reconquistado através do labor humano - o Novo-Eden será necessariamente uma Humanofactura; assim o destinou Deus. Daí, naturalmente, germinam o culto da produção e a consagração da Indústria, como fórmulas de credo. Daí, igualmente, resulta a economia como Nova-teologia, a riqueza e o mercado como emanações Divinas (no caso americano), ou a mecanização e o plano científico como epifanias da Virtude (no caso soviético). Durante milénios, a espécie humana, nos intervalos da luta pela sobrevivência, entregou-se a sonhos e devaneios. Muitas vezes as coisas ficaram por aí, a pairar nesse limbo etéreo que tantas vezes tem a forma de meras palavras e a que chamamos, com algum desdém, utopia. Mas, subitamente, no século XX, em coacção ou reacção a esse fermento evangélico americanizante, amplificados e difundados numa profusão inaudita, como que as quimeras irromperam, à solta e em apoteose, pela realidade. No espaço de cem anos, o mundo cedeu o seu território a três utopias. Amargamente, em relação a duas delas, constatámos essa verdade de séculos, que só a amnésia treinada e inculcada sempre dissimula: o sonho hegemónico, uniformizante, quando desce à realidade revela o pesadelo que o anima e povoa. Se o mundo vai ou não despertar do terceiro, não sei. Afinal, os homens precisam de sonhos. Como diria Nietzsche, vale mais um mau sonho, que sonho nenhum (se bem que ele dissesse, em vez de sonho, "sentido" e este sonho não pareça ter sentido nenhum...)
Relembro apenas essa alegoria que Brand, em 1594, publicou, sob o título "A Nave dos Loucos". O enredo é simples e não de todo estranho: Num mundo às avessas, loucos, sem mapa nem bússula, embarcam, à deriva, em busca dos paraísos bem-aventurados. Como plano prévio exclusivo ao empreendimento está o comum acordo que irão de perigo em perigo, até soçobrarem finalmente em plena tempestade. Quem tenha dificuldade em imaginar, é só ir à janela. Ou ligar a televisão. De preferência à hora do telejornal.

quarta-feira, junho 06, 2007

Convidaram-me para Bilderberg - 1ª Parte


A reunião magna já terminou e eu, mais uma vez, nem me dignei comparecer. Para memória futura, deixo, não obstante, a conversa telefónica que saldou mais uma investida frustrada daqueles bacocos. O episódio decorre no dia 23 do mês transacto...

Telefonou-me o Etienne.

A conversa decorreu em francês, depois em inglês, a seguir em alemão, em russo e, finalmente, terminámos em grego clássico. Embora sabendo que os meus leitores são mais cultos do que eu (o que não é difícil) e quase tão poliglotas quanto o Caguinchas, o que se segue é uma transcrição em português, porque Língua mais bela do que a nossa não existe. E um grandessíssimo caralho das Caldas foda e refoda o filho duma cadela aleivosa que se atrever a ladrazar o contrário!!...

Dragão - ... Etienne quem?
Etienne Davignon - Sou eu, pá, o Davignon!...
Dragão - Ah, és tu, ó Davi!... Não te reconheci o tom melífluo. Então diz lá. Se bem que, pela falinha mansa, já me cheira a esturro... O esturro em que vais ficar se me vens outra vez com convites! Deixa que te avise de antemão: tenho uma agenda muito preenchida.
Etienne Davignon - César, este ano tens que vir. É crucial. Bilderberg precisa de ti.
Dragão - Deixa-te de merdas, ó Etienne! Quantas vezes é preciso dizer-te: quero que Bilderberg se foda! Sabes bem que prefiro Carlsberg. Aliás, para ser franco, até é mais Super-Book, se bem que ultimamente a Sagres nem ande nada má.
Etienne D - Mas César, mon ami, pensa bem. Isto sem ti é um deserto de ideias. Uma tortura desumana, escutar tanta banalidade na andropausa. São esforços sobrehumanos e doses maciças de anfetaminas para um tipo não ressonar a sono solto!...
Dragão - Não posso, ó Davignon. Tens toda a razão quanto ao deserto, mais camelos juntos é difícil, parece Tombuctu em hora de ponta, compreendo perfeitamente a tua angústia, mas nem pensar. Tenho coisas muito mais importantes para fazer. Agora, então, que me tornei uma besta-seller, mal durmo. Tenho livros para despachar, leitores que não me ligam peva, um encadernador que me chama de seu Salvador e uma ucraniana nova ali no «****** Now» que ainda não experimentei. Já não falando na Senhora Dragão, que, se sabe que eu vou a Istambul, pensa logo, e com toda a razão, que vou refastelar-me em turcas, kurdas, arménias e o que para lá houver, pelo que me desata p'r'aqui em fúrias, amuos e birras que nunca mais acabam. Até a estou já a ver, de narinas fumegantes, aos gritos: "César Augusto, tu nem penses em trazer-me um harém cá para casa!" (Aqui entre nós: é claro que eu não penso noutra coisa, mas tenho que fazer de conta que não. Contra o ciúme patológico das mulheres, só mesmo a dissimulação mais estanhada dos homens). Não, ó Davignon, caro donzelo, Istambul não dá. Até Badajoz ainda ia, quando muito Algeciras - arranjava uma desculpa que ia comprar caramelos ou cabedais a Ceuta -, mas Istambul nem pensar. Era uma carga de trabalhos!... Já tenho a minha dose de sarilhos domésticos. Adaptando sábias palavras de sábio mestre: não tentarás o senhor César Augusto e nem só de putas vive o dragão!...
Etienne Davignon - Mas César Auguste, não seja por isso: envio-te o meu jacto particular e podes até trazer a senhora Dragão. A título excepcional, ela até pode palestrar aos conferencistas, será uma honra!...
Dragão - Bem, aí, por um lado, até seria fascinante: ela a sulfatar aquelas bestas com Kant e Heidegger, a centrifugar-lhes aqueles vácuos mentais com a arquitectónica da razão pura e a vocação extraordinária do "dasein", e os tipos, pior que num cacilheiro em alto-mar de borrasca, mais murchos que o Desidério Murcho e quase tão obtusos, sofofóbicos e toinofrénicos quanto ele, a esverdongarem de náusea, aos vómitos - o Durão já de gatas, agarrado ao Balsemão, a golfarem ambos sobre o Guterres, com os lábios inchados este, se é que tal é possível, mas no caso até era, autênticos bexigões batraquioplégicos, quase a fazerem-no levitar pelo tecto da sala, saturados de escorrerem uma baba azeda do jantar transacto, uma mixórdia pré-fecal amariscada que alastrava, aos jorros, sobre as cavalgaduras contíguas e destas, em géiseres não menos abruptos, arfabundos, gorgolejagantes, aos bandalhos limítrofes, num imenso ralo espumejante, em pandemoníaco e (uff!) visceral borbotão. Ah, sim, de facto era bem bonito, um quadro verdadeiramente pitoresco, digno dum Goya, dum Céline, quase dum Hieronymus Bosch. Aquela miúda possessa do Exorcista I, campeã da metabadalhoquice incubofónica, havia de se roer de inveja! Até na cabeçorra a andar à roda era cilindrada! Aquilo pareciam ventoinhas de helicóptero em catadupa!... Mas, por outro, de boleia na bela lá vinha o senão, e lá ficava eu com as asas coarctadas em Istambul, sobretudo à noite. E o pior era que, para levar a legítima, tinha que deixar as ilegais, todas estas suculejantes ucranianas que por cá ficavam, desamparadas, indefesas, à mercê da gula amarinhante dessa ave de rapina que é o meu imediato Caguinchas, energúmeno capaz dos piores abusos, galifão sempre pronto a refastelar-se nos melhores pitéus da coutada alheia! Nos melhores e nos piores, raios o partam, porque o safardana, em estando com os copos, leva tudo de empreitada. Ah, não, uma tal perspectiva interdita-me todo e qualquer raid turístico. Até se me revolve a figadeira, só de pensar nisso!... Quando voltasse, é mais que certo, teria o feudo usurpado e devassado até às cavalariças!... Quando muito, restariam algumas ovelhas incólumes. Com um javardo sacrílego destes à solta, toda a sentinela é pouca!...
Etienne Davignon - Mas, César, porque não trazes também o Caguinchas? Temos a vaga deixada pelo Wolfowitz, e esse Caguinchas sempre parece ser um putanheiro bem mais desembaraçado e consequente!... Já não falando em toda uma estética nasal bem mais apresentável, se é que não é descabida a conjectura ...
Dragão - Impossível, ó Etienne. A senhora Dragão não suporta o Caguinchas. Considera-o mesmo - com absoluta justiça tenho que reconhecer - um ordinarão relapso que devia lavar a boca com sabão e a mioleira com creolina. Devota-lhe ininterrupamente uma embirração implacável, não há como tornear isso. Sabes como são as mulheres... Bem, se calhar até nem sabes, ou já não te lembras, isso aí, ao vosso nível, parece que a especialização é mais rapazinhos, matulões depilados e coisas esquisitas...
Etienne Davignon - Oh pá, sabes como é: Poder a mais e tesão a menos. Já o Divino Marquês explicava isso. Quando um gajo começa a fornicar um país inteiro, perde o interesse pela simples vagina. A indústria derroga sempre o artesanato. Mas tu pensa bem, ó César: já reparaste bem na lista de convidados deste ano? É a nata do planeta.
Dragão - Mais parece a borra. O que não admira... Num planeta que, cada vez mais, lembra um aterro sanitário!...
Etienne Davignon - Vá lá, não desconsideres; foi o que se pode arranjar. Mas sempre se compensa a desqualificação com a quantidade. Em todo o caso, vamos debater o destino da humanidade, os caprichos do mercado, as tendências da moda, as taxas das comissões... Era importante que cá viesses ajudar a moldar o futuro do mundo...
Dragão - Vai dar música a outro, ó barão das quantas! Tu julgas que eu nasci ontem? Mas interessa a alguém essa gentalha que para aí abivacas às expensas do otário? Nem ao menino Jesus! Isso mais parece a feira itinerante das marionetes-chôchas em leasing, o circo voador dos bonifrates vaidosos em leilão, o caravançaral das cáfilas pinóquiais por conta de outro. Tanta monarquia da tripa - tanto símio mascarado com o rei na barriga e o bobo na tola! - só mesmo por obra e graça de São Lucro Miragaitas . Essa malta brava reune-se aí para enfardar, cagar e mijar sob rigorosa escolta armada durante dois ou três dias, e mais quê? Mais nada. Zero absoluto!... Olham uns para os outros, desfilam no púlpito meia dúzia de anedotas, outras tantas patacoadas para boi dormir, palram, untam-se, besuntam-se, delambem-se, comparam as manicures, discutem plásticas e amaciadores de cabelo, cremes e campos de golf, inspiram uns zombies na puberdade vitalícia a partirem montras e apedrejarem polícias, findo o que levantam todos a tenda e retornam, uns ao funambuladouro jet-seita, os outros ao pré-tratamento de resíduos, e pronto, aí tens o teu querido Bilderberg que tricoteia amanhãs choramingas num planeta a chocalhar de ceguinhos e aleijões mentais. Como se um bando de papagaios acéfalos, uma caterva de espanta-pardais engravatados determinasse o que quer que fosse!... Oh pá, vai pentear ateístas!...

segunda-feira, junho 04, 2007

O novo Kit BE

Um Bloco de Esquerda com preocupações ambientais é o equivalente a uma bosta mutante que desenvolve auto-consciência. Agora vai levar, pelo menos, mais dois ou três milênios até conseguir sintetizar vergonha; e outro tanto, senão o dobro, para conseguir segregar remorso. Por conseguinte, para o que à humanidade interessa, não são de registar grandes progressos: vai continuar a poluir os passeios, de emboscada ao transeunte incauto, ferozmente predisposta a grudar-se-lhe à sola dos sapatos.
(Ainda não há muito tempo, com o meu feitio nefelibata -ou ninfobata, se quisermos estar com rigores - acabava de entrar em casa após mais uma surtida ao exterior, quando a Senhora Dragão me invocou nos seguintes termos:
-"César Augusto, que pivete trouxeste tu da rua?! Está a casa empestada!..."
Instintivamente, arrepiei-me com os sapatos. Entre o horror e a repugnância, não me contive de bradejar:
-" Diacho, queres ver que pisei o Miguel Portas!...")

Mas se a bosta em nada progrediu, já o mesmo não poderá ser dito do kit de militante bostista. Graças a esta providencial "consciencialização", experimentou um avanço elogiável. Prova disso mesmo é o facto, entre outros, da mochila socialismo-barbie ( o tal das minorias fracturantes) estar já a ser convertida num equipamento indispensável à nova estratégia: o autoclismo individual de campanha. Assim, cada bosta pode transumar devidamente aparelhada do seu próprio estojo de limpeza. Já não era sem tempo!...

On the rocks...



O G8, rezam as notícias, estará dividido sobre forma de lutar contra o aquecimento global.


É mais uma daquelas notícias sem qualquer fundamento com que nos bombardeiam quotidianamente. Em primeiro lugar, porque se o tal G8 estivesse minimamente preocupado com "aquecimentos globais" (seja lá o que isso for), não faria da transformação sistemática do planeta num inferno a sua principal ocupação e desígnio supremo. Toda a gente sabe que o inferno irradia muito calor. Local mais quentinho duvido mesmo que exista. E sei do que falo: tenho um primo meu que preside ao Conselho de Administração de um - neste caso, o tradicional, o religioso. Estes agora, G(ebos)-oitos, Bilderbergues, Maçonarias e demais tunas alienígenas querem construir um outro, mais moderno e sofisticado; um inferno perfeitamente igualitário, sem discriminação de qualquer espécie, todo ele laico, balalaico e cadelaico, não no Além, mas no Aquém. Um que trate por atacado não a alma, que é coisa que a massa não tem, mas a carniça enmanadescida, a fressura prometida ao banco de órgãos, o recheio gorduroso do esqueleto desvertebrado e respectivas próteses derradeiras. E não apenas alguns, em determinadas circunstâncias ou idades, mas todos, bebézinhos e pré-bebézinhos incluídos. Foi o que deu o naufrágio das utopias, pois foi: descobriram que o paraíso é só o engodo, a antecâmara propedêutica do inferno. Vai daí, decidiram prescindir das carícias preliminares e irem logo direitos ao assunto, à canzanagem. Agora já não temos o inferno garantido caso nos portemos mal: agora temo-lo de qualquer maneira, façamos o que fizermos. É indiferente. Não requer qualquer esforço ou arbítrio da nossa parte. Doravante, a cruz onde nos supliciam, obrigam-nos primeiramente a assiná-la. Assassinam-nos com a nossa própria assinatura. Logo que a firmamos, crucificam-nos nela. Como por artes infernais, o papel devém gólgota e o voto transforma-se em condenação implacável. Tem o seu quê de poético. E também de justo, temo bem reconhecê-lo.
Em segundo lugar, porque, claramente, toda essa malta G-não-sei-quantos está apostada - direi mais: apostadíssima, compenetradérrima e pantobcecada - no "arrefecimento global". Diariamente, há não sei quantos mamíferos - apenas em teoria, humanos - que arrefecem duma vez por todas. O que, aliás, nos remete para a lema paradoxal dessa benemérita e vipante gente: Quantos mais torramos, mais arrefecem. E é verdade. Só um aviãozinho daqueles muito rápidos e todos reluzentes, carregados de sistemas high-tech e armas altamente eruditas, a quantidade de gente sobreaquecida que não arrefece!... De resto, não deve ser por acaso que a inteligência das armas cresce na proporção inversa da inteligência das pessoas. Quer dizer, à medida que as pessoas ficam cada vez mais estúpidas, as armas tornam-se cada vez mais inteligentes. Entretanto, os mais estúpidos de todos são aqueles que acreditam piamente que o fenómeno da inteligência acontece por osmose entre armas e pessoas, ou seja, o tipo com uma arma na mão é mais inteligente do que o tipo desarmado; o gajo com uma arma inteligente é mais inteligente do que o gajo com uma arma burra; o marmanjo com uma arma genial é mais inteligente que o marmanjo com uma arma inteligente; e por aí fora. Ora, como neste planeta em rilhafoles transplantado até as cantigas devêm armas, imagine-se agora os discursos, as receitas, os artigos, os programas, as teorias, as doutrinas, os anúncios, as aulas, as notícias, as histórias, as novelas, etc,etc,etc. Isto, ó meus irmãos, é tudo uma horda em pé de guerra; uma corrida geral e desenfreada aos armamentos. Andamos nisso desde Neanderthal.
Planeta, um formigueiro caótico destes? Não me lixem. Contam certas lendas sinistras, mas bastante simpáticas para a realidade, que Deus, um belo dia, decidiu entregar este mundo ao Diabo. Para que ele o administrasse, por mil anos. Foi o Primeiro Reich, suponho. Pois bem, permitam-me, na qualidade de parente afastado do segundo, que apimente um pouco o episódio...
Por ironia, sarcasmo ou mera teatralização de quem servia aperitivo, só Ele sabe, Deus terá então perguntado:
-"Como o queres?"
Ao que o outro, o dos chifres e unha fendida, ainda meu parente por linha apocalíptica, simulando estar do outro lado do balcão, respondeu:
-"Simples. Apenas com duas pedras de gelo."
As pedras de gelo viriam a ser posteriormente baptizadas de Ártico e Antártida. Agora, dizem, e mostram-nos imagens alarmantes, estarão a derreter. Mas não é para isso que servem as pedras de gelo? Não lhes compete refrescar a bebida?
Para nós poderá ser uma tragédia. Mas para o Diabo, que é quem nos há-de carregar a todos, não passa dum martini on the rocks. Que convém ficar bem fresquinho antes de com ele lenificar a goela ressequida, sequiosa, ardente... por via dum ofício ininterrupto que decorre em clima artificial particularmente monótono. E abrasador.

domingo, junho 03, 2007

O Ovo do Dragão

Mas, afinal, porque é que não constroem dois aeroportos - um na Ota e outro no Poceirão?
Um deles até podia já dispor de pista de aterragem para naves espaciais e terminal de embarque para as almas em trânsito para o Outro Mundo. Ou então, melhor ainda: um para fumadores e outro para não fumadores.

sábado, junho 02, 2007

As rãs pedindo rei

«Viviam certas rãs num charco imundo
Em república plena. Era um pagode!
Tal qual uns democratas que há no mundo
Julgando que a república, no fundo,
Outra coisa não é senão a gente
Fazer o que bem quer e quanto pode,
A rã tripudiava impunemente
Todos os dias era certo o choque
Entre o batráquio forte, intransigente,
E a parte da nação já descontente
Que a Júpiter pedia ou rei ou roque.

O deus fez-lhe a vontade.
Largou-lhe lá do céu um rei pacato,
De suma gravidade.

Das alturas tombando, o rei na queda
Fez tal espalhafato,
Que as fêmeas em pavor, os machos fulos,
Aquelas saltitando, estes aos pulos,
Como é uso das rãs nas grandes crises,
Cada qual a gritar: arreda! arreda!
Entre os juncais, no lodo, nas raízes
Dos salgueirais se enreda.

Por longo tempo em seus esconderijos
Das rãs esteve homiziado o povo.
Transformaram-se em medo os regozijos
Da antiga bacanal. Gigante novo
Cuidavam ser o rei que o céu lhes dera.
Não ousavam sequer sair da toca;
Pois, não raro, os instintos maus da fera
Por imprudente a presa é que os provoca.
Já nessas eras muito a pêlo vinha
Dizer: Cautela e caldos de galinha...

O rei era um pedaço de madeira.
Nem mais, nem menos. Numa bela tarde
Uma das rãs, por ser menos covarde
Ou mais bisbilhoteira,
Tirou-se dos cuidados, manso e manso,
Na flor das águas surge, e às guinadinhas
Com muito tento e jeito,
Do cepo se aproxima.
Após ela vem outra...e outra... aos centos!
Vendo que o rei não sai do seu ripanço,
Rodeiam-no; coaxam: salta acima!
E coaxado e feito!...

O rei, temido outrora, às picuinhas
Dessa chusma vilã se vê sujeito.
Em rápido momento
Sobre ele a malta audaz se encarrapita,
E faz do bom monarca um bom assento.
Nem chus nem bus! Calado que nem porta,
Qual fora noutros tempos!...
Isto irrita.
Rompem as rãs então numa algazarra
Qu o pântano atordoa,
Os fios de alma a quem as houve corta:
«Leva daqui, ó Jove, esta almanjarra
Que nem mexe, nem pune, nem perdoa,
E mais parece uma alimária morta.
Cabide duma croa,
Em vez de nosso rei - nossa vergonha!»
Vai Júpiter que faz? Uma cegonha,
Das muitas que possui, logo destaca,
E manda que das rãs ponha e disponha,
Numa das mãos o queijo e noutra a faca.

Ora a cegonha, apenas em seu trono
Dona das rãs se vê e sem ter dono,
Diz consigo:
«Nasci dentro dum fole!
Quem tira agora o papo da miséria
Sempre sou eu!...»
Passeia toda séria,
Perna aqui... perna além, num andar mole,
E quanta rã apanha quanta engole.

Geral consternação o charco enluta,
Renovam-se as lamúrias:
Que o rei é doido e tem às vezes fúrias:
Que, doido ou não, o povo trata à bruta:
Por fim, que faça o deus formal promessa
Doutro rei que as não coma tão depressa!
O Júpiter tonante
Destarte lhes responde:
"Inútil prece!
Dei-vos um rei tranquilo, inofensivo,
Que nem sempre se tem nem se merece:
Um rei que era um regalo!
Foi vê-lo e pô-lo pela barra fora!
Dei-vos um segundo: um génio um pouco vivo.
Meninas, aguentá-lo!
Era bom o primeiro e foi-se embora.
É mau este de agora.
Contentai-vos com ele, ó meus endezes,
Que venha quem vier... pior mil vezes!"»

- Francisco Palha, "As rãs pedindo rei"

sexta-feira, junho 01, 2007

Do bipedismo ao apedismo

«Bipedismo humano começou nas árvores». E praticamente caiu em desuso nas redacções dos jornais, televisões e revistas. Porque se um pequeno número ainda consegue escrever de quatro, entremeado de zurros pitorescos e resfolganços mimosos, a maioria já nem isso: contenta-se de reptar viscosamente por artigos e colunas. É o apedismo em todo o seu esplendor - uma forma de locomoção rojabunda, anuscêntrica e cloacápeta, situada algures entre a lombriga e a lesma.