sexta-feira, março 31, 2006

Super-MacGyver ou Mais Lenha... (Adenda ao postal anterior)



Neto e bisneto de ferreiro, está-me na massa do sangue o gosto de malhar enquanto está quente. Por conseguinte...

Quem é David Wurmser?

«David Wurmser, Dick Cheney's Middle East adviser, is a neocon ideologue who has participated in several key reports outlining the neoconservative agenda in the Middle East. In 1996 he helped write a report for Israel's Likud party that urged Israel to break off then-ongoing peace initiatives. The report, which was titled "A Clean Break: A New Strategy for Securing the Realm" and was published by the Institute for Advanced Strategic and Political Studies (an Israeli- and DC-based think tank) advised then-Israeli Prime Minister Benjamin Netanyahu "to work closely with Turkey and Jordan to contain, destabilize, and roll-back" regional threats, help overthrow Saddam Hussein, and strike "Syrian military targets in Lebanon" and possibly in Syria proper. Coauthors of the report included Richard Perle, Meyrav Wurmser, and Douglas Feith.»

O tal "Clean Break:A New Strategy for Securing the Realm", não perdem nada em lê-lo integralmente. Basta seguir o link.

Também a propósito de Lobbies, convém não esquecer um certo "Lobby Hollywoodesco".
Quem, entre outros, o enunciou cruamente foi Marlon Brando, numa entrevista a Larry King, em Abril de 1996:
«"Hollywood is run by Jews; it is owned by Jews--and they should have a greater sensitivity about the issue of people who are suffering. Because...we have seen...the greaseball, we've seen the Chink, we've seen the slit-eyed dangerous Jap, we have seen the wily Filipino, we've seen everything but we never saw the kike. Because they knew perfectly well, that that is where you draw the [line]."»

Uma análise exaustiva sobre o assunto, por Ben Stein, pode ser lida aqui.
Logo a abrir pode ler-se:

Já a "Moment Magazine", na sua edição de Agosto de 1996 (e numa espécie de resposta às afirmações de Marlon Brando) exibe na primeira página: "Jews run Hollywood - So What?"
O autor do artigo, Michael Medved, judeu, reconhece: ""Não faz senso algum tentar negar a realidade do poder judaico e proeminência na cultura popular. Qualquer lista dos mais influentes executivos de produção em qualquer um dos maiores estúdios de cinema irá produzir uma grande maioria de reconhecíveis nomes judaicos."
Outras perspectivas sobre o assunto, podem ser lidas aqui, aqui e aqui.

Entretanto, a especial pedido do Timshel (na vida real, WILLIAM DONAHUE, presidente da liga católica), aqui fica a sua opinião sobre hollywood:
«Who really cares what Hollywood thinks? All these hacks come out there. Hollywood is controlled by secular Jews who hate Christianity in general and Catholicism in particular. It‘s not a secret, OK? And I‘m not afraid to say it. That‘s why they hate this movie. It‘s about Jesus Christ, and it‘s about truth. It‘s about the messiah.
Hollywood likes anal sex. They like to see the public square without nativity scenes. I like families. I like children. They like abortions. I believe in traditional values and restraint. They believe in libertinism. We have nothing in common. But you know what? The culture war has been ongoing for a long time. Their side has lost.
You have got secular Jews. You have got embittered ex-Catholics, including a lot of ex-Catholic priests who hate the Catholic Church, wacko Protestants in the same group, and these people are in the margins. Frankly, Michael Moore represents a cult movie. Mel Gibson represents the mainstream of America.»

Nota: O Timshel não gosta de cinema. Por conseguinte, é um cripto-nazi (um anti-semita encoberto). Daí, igualmente, o seu fascínio pelo JCN.
Agora que ando a ter lições nesta lógica-canivete-suiço, estou em vias de me tornar Super-MacGyver.

The Lobby Strikes Back

Em democracia, um governo é eleito no pressuposto de representar os interesses da maioria do povo que o elegeu, em matérias de política interna, e os interesses do país que representa, em assuntos de política externa.
As acções dos lobbies, ou grupos de pressão - que podem ser nacionais, internacionais, autárquicos, coorporativos, religiosos, desportivos, etc,etc -, processam-se, no mínimo, a um nível paralelo, numa espécie de mercado negro das influências. A obscuridade, a revelia e o alcance em que todo o processo decorre deveria, no mínimo, a nós, moléculas dum povo supostamente soberano, preocupar-nos, sob pena de acabarmos enclausurados numa sociedade putativamente aberta, mas, na realidade, telecomandada a partir de núcleos secretos e fechados a qualquer escrutínio. Por outras palavras: uma democracia meramente superficial, decorativa, aparente, a mascarar uma criptocracia profunda. E efectiva.
Todos sabemos de alguns lobbies famosos, quer entre nós, quer lá fora, entre os outros. Para consumo interno, a Maçonaria, a Opus Dei, o lobby-gay, o "grupo de Macau", o Sport Lisboa e Benfica, a Liga dos empreiteiros-ao-assalto-da-paisagem, etc, lá vão facilitando acessos e ascensões, sinecuras e mordomias aos respectivos acólitos e associados. E lá vão distorcendo, com efeitos bem notórios (que chegam a ser desavergonhados), as escolhas e expectativas do elitorado. Podemos criticá-los a todos, com contundência à descrição, excepto o lobby gay: se o ousamos é porque somos homofóbicos e sabe-se lá que outras monstruosidades e aberrações soturnas.
Lá fora, nos Estados Unidos, por exemplo, a fauna é bem mais vasta e complexa: o filão justifica-o. Cito alguns exemplos mais notórios: a Mafia, as Petrolíferas, a Indústria de Armamento, as Farmacêuticas, os Think tanks neoconas, os talibãs evangélicos, os sauditas, os ingleses, os cartéis de vários tráficos que pagam eleições e lavam dinheiro em Wall Street, os judeus, etc.
Do mesmo modo, podemos criticá-los a todos, com escândalo e indignação aos molhos, excepto os judeus. Desaba-nos logo o labéu em cima, o pior de todos: anti-semita e, necessariamente, nazi, neonazi, criptonazi, turbonazi, meganazi, islamonazi e por aí adiante.
A argumentação dos patrulheiros de guarda ao tabu assenta em duas linhas predominantes: 1. ou não há lobby nenhum judeu, é tudo teoria da conspiração; 2. Ou, se há, é absolutamente inofensivo, imaculado e angélico, o pobre coitado.
Bem, para se constatar que existe pelo menos um, basta visitar a página da AIPAC (The American Israel Public Affairs Committee) - onde, entre outras preciosidades e apelos enérgicos, em subtítulo, pode ler-se: "America's Pro-Israel Lobby". Outra página interessante a visitar talvez seja o JINSA (Jewish Institute for National Security Affairs). Depois, se não for pedir muito ou constituir tremenda ofensa, basta investigar as relações privilegiadas (para não lhe chamar promiscuidades de vária ordem) destas instituições com os think-tanks neoconas e destes com a Administração Americana, para se ficar com uma panorâmica deveras sugestiva do idílio melífluo que para ali vai.
Uma mera revista pelas notícias dos últimos tempos também nos fornece alguns dados significativos:

Ainda sobre a putativa "inocuidade" do Lobby Santo, um simples relance sobre a política externa americana dos últimos anos, mais as respectivas obsessões com Iraque, Irão e Síria, adicionado à política descarada de dois pesos e duas medidas num conflito (o da Palestina) em que era suposto servir de árbitro (ou polícia), suscitará, no mínimo, sérias dúvidas. A não ser àqueles que partem de preconceitos antecipados e de prévia má fé. Sendo judeus, compreende-se e tolera-se: afinal, estão a pleitear pelos interesses da sua "nação". Não o sendo, só se justifica por um voluntarismo recenseável em três géneros hipotéticos: mercenarismo, ingenuidade ou imbecilidade (passe, num certo sentido, a redundância entre estes dois últimos).

Em todo o caso, o que é sobremaneira bizarro em todo a complexa lógica apologética dos rino-magníficos, cuja aberração se torna cada vez mais evidente, é porque carga de água há-de ter o Lobby Judeu privilégio de excepção. A justificação mais corriqueira flagela-nos com o seguinte: porque foram massacrados pelos nazis, alcançaram uma santidade indubitável e usufruem de prerrogativas únicas. Ora, outros também foram chacinados pelos nazis, ainda em maior quantidade, e, no entanto, ninguém parece disposto a conceder-lhes idênticas benesses. A Humanidade, por todos os continentes e séculos, tem-se entretido, alegremente, com toda a casta de carnificinas e morticínios recorrentes, cíclicos, ignóbeis, e nenhum conjunto de vítimas até à data conseguiu tão providencial estatuto. Regra geral, varre-se para debaixo do tapete. Porquê, então, este carinho especial, este remorso inesgotável, este carpideirismo permanente e descabelado para com o povo eleito? Os mortos deles são mais valiosos que os dos outros?... Grande mistério.

É bem feita. E já vai com sorte. Quem o manda meter o nariz onde não era chamado?
Em suma: O Big-Nose Empire strikes back. A Cabala Anti-semita Mundial (na qual, pelos vistos, eu também milito), que se cuide.
Fiquem atentos aos Protocolos dos Nabos de Arião, que lá vem tudo bem explicadinho.

quinta-feira, março 30, 2006

Explicação para o boneco



"Quando espreitas no abismo, o abismo também espreita para dentro de ti.» - Este sempre foi um dos aforismos nietzschieanos que mais me fascinaram. Até há bem pouco tempo eu contemplava o enigma, como Édipo diante da Esfinge, e estasiava-me, perplexo. Até que uma noite destas, por concessão da musa Insónia, a mais generosa de todas as musas, percebi. Acho que percebi... Eis a tradução: "Tu és o abismo."
"Conhece-te a ti mesmo", prescrevia o Oráculo de Delfos. Quer dizer: "Abisma-te."
"O espanto é o pai da filosofia", reconhecia Aristóteles, na sua "Metafísica". Haverá maior espanto que debruçados no abismo, ou seja, diante de nós próprios?... Tragédia mais terrífica e digna de piedade?...
Tudo está ligado. Tudo eternamente passa e retorna. Tudo. E nós em tudo. Quem tiver olhos que se abisme.
Entendeste, boneco?

quarta-feira, março 29, 2006

Conversas com as paredes

Decorria o ano de 1755. Como é sabido, e há provas, as forças da Natureza acabavam de terraplenar Lisboa. Eu não vi, mas dizem que foi um grande espectáculo. Não sei se sensibilizado por isso, Voltaire, um tipo particularmente cínico, escrevia a Jean J. Rousseau, um indivíduo distintamente simplicio, o seguinte:
-"Nunca nos esforçamos tanto como quando nos queremos tornar bestas. Ficamos com vontade de andar nas quatro patas quando lemos a sua obra."
Nem Voltaire, nem Rousseau foram filósofos que mereçam grandes créditos ou encómios. O que não invalida que não tenham escrito coisas admiráveis. Como literatura, bem entendido. Isto não é uma depreciação: Se pensarmos que grande parte da Filosofia nem sequer boa literatura é, um conjunto de disparates estar bem escrito já é motivo para regozijo e foguetório.
Rousseau escreveu uma quantidade monumental de asneiras, sem dúvida, mas -ao contrário da maior parte dos badamecos de vasta trunfa que hoje -em coro pastoral - o menoscabam, escreveu-as com talento e fino recorte literário. Expôs-nos imensas burrices, mas sem ser aos zurros. Nos antípodas, ainda e sempre, destes jovens hodiernos, que nos debitam conhecimentos invariavelmente geniais, mas num tom, e sobretudo num dialecto, que nos dificulta o entendimento e a eles a clareza, pois em tudo revelam o asnoguês mais arreigado e tonitruante.
Não obstante, extravio-me. É de Voltaire e da sua resposta a Rousseau, em epígrafe, que queria falar.
Pois bem, estou absolutamente em desacordo. Acho mesmo que, para armar em engraçado, o Voltaire mandou o rigor e - embrulhado nele - a verdade às urtigas. É claro que os nossos jovens de capilaridade pujante levantam-se e riem. Acham muita graça e, à semelhança das focas do circo, desatam a bater palmas. Mas quem não tenha ficado refém desse idade da imbecilidade que é a adolescência, nem se deixe embarcar nesta enxurrada modernaça que porfia de transformar todos em adolescentes, não.
De facto, o querer tornar-se besta - na generalidade da raça humana - não requer qualquer esforço. Eu diria mesmo que é um instinto natural e atávico. Uma tendência semi-compulsiva. Tendo a natureza na parcimónia uma das suas leis fundamentais, tem também no homem um dos seus alunos mais aplicados. Só que, neste, a parcimónia degenera em preguiça, lei do menor esforço, ser com a manada, ir na correnteza, convergir para a sargeta. Por isso, não admira que não requeira qualquer esforço. Esforço, e um esforço cada vez mais titânico, requer a essa tradicional besta, que as religiões, políticas e até grande parte das filosofias não se cansam de celebrar enquanto tal, o tornar-se humana. O levantar as patas anteriores do chão, os olhos da lama e apontar a coluna ao céu e os olhos a um horizonte mais elevado.
Gosto muito de falar com as paredes.

terça-feira, março 28, 2006

Questões simplórias para debate



Se não há problema nenhum com os chamados "lobbies", se são instituições perfeitamente legítimas e naturais de influir obscuramente nas decisões dos Executivos, porque diabo gastam os países tanto dinheiro com campanhas eleitorais e sufrágios públicos?...

Numa suposta democracia, os lobbistas são eleitos e legitimados por quem?

Numa tão apregoada democracia liberal, quem é mais soberano: o povo ou os lobbies?

Definição de Deputado (ou Congressista, ou Senador) (segundo o Dicionário Shelltox Concise do Dragão): s.m, dignitário que o povo elege e um lobby dirige. É incorrecto, isto?

Anti-semita por correspondência

De qualquer modo, cara Helena, a última coisa que eu desejaria é que a estimada senhora passasse vergonhas ou fizesse figuras tristes por minha causa. Diabos me levem, se hei-de permitir que a tomem por alguma paranóica descabelada ou harpia de plantão à redoma da Fé.
Ainda para mais quando todos sabemos que foi por via daquele tremendo impropério meu, - de chamar “pencudos” aos semideuses que fazem lobby lá nas américas, um raio me parta!-, que a Helena, alma sensível e facilmente sugestionável, mergulhou nesse lastimável estado de choque, deveras consumptivo e calamitoso, pobrezinha!... Aquilo prostrou-a. Mergulhou-a num transe entre balhelhas e esperneabundo. E o caso não era para menos, uma obscenidade blasfema de tal ordem é de arrasar com os nervos e transtornar o juízo a qualquer um. Mesmo um estivador das docas experimentaria, no mínimo, vertigens; fará agora uma intelectual superior da sua categoria, um baluarte vivo da moral e dos costumes modernos! Dos delírios subsequentes, das alucinações e pesadelos que a atormentaram nem quero falar - a consciência pesada, um sentimento avassalador de culpa não mo permite.
O que lhe posso garantir, à guisa de indemnização, se bem que nenhuma reparação será bastante, é que, no que depender de mim, não passará por tolinha ou desaparafusada. Entrego-me já a estudos e catequeses rápidas nessas manias em que me fantasia, de modo a poder corresponder, plena e condignamente, às suas expectativas, tanto quanto às suas profecias. Hão-de felicitá-la e premiá-la pela sua aruspiciência, vai ver. Clamarão embevecidos: “Ah, a Helena, a nova pitonisa de Delfos?...Que vidente, que vidente!...”
Assim, com toda a abnegação e temeridade de que sou capaz, encomendei já os “Protocolos dos Sábios de Sião” a um alfarrabista esotérico meu conhecido; o “Mein Kampf”, dum tal Adolfo Hitler, e o “Manual dos Inquisidores” já os tenho ali prontinhos para, em jeito de sobremesa, com eles calafetar o espírito; e, neste instante, com uma volúpia que nunca suspeitei, entrego-me avidamente ao repasto da Bíblia Sagrada. Faço questão de me industriar, esmerada e proficientemente, nestes mistérios. Nestas coisas, de resto, sou um metódico, um meticuloso. Diante dum edifício novo, estimo sempre de cognoscê-lo a partir dos alicerces. Agora mesmo, refastelo-me nesta passagem deslumbrante:
«Pilatos, vendo que nada conseguia e que o tumulto aumentava cada vez mais, mandou vir água e lavou as mãos na presença da multidão dizendo: “Estou inocente deste sangue. Isso é convosco”. E todo o povo respondeu: “Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos!” Então soltou-lhes Barrabás. Quanto a Jesus, depois de o mandar flagelar, entregou-o para ser crucificado.»
Isto sim, isto é estimulante, didáctico, educativo. Já sinto o ódio a essa gente a impregnar-me os ossos, a tetanizar-me os músculos, a espadanar-se, em perfeito crol, pelas veias. A custo, larguei o Antigo Testamento, sobretudo o Pentateuco. Era capaz de acampar ali pela eternidade. Que ginásio para a alma! O próprio Yahvé, o Deus deles, passa o tempo a urdir planos para lhes dar cabo do canastro. Um mimo! Uma delícia!... Se quem os criou os detesta e destrata daquela maneira, como não havemos nós, simples mortais, de armar pogrooms e churrascoss?!...
E nada tolerantes, ao contrário do que apregoam e exigem aos outros, os tais. Repare só neste salmo (o 137), a letra deste fado judeu intitulado “junto aos rios da Babilónia”:
«Cidade da babilónia devastadora
Feliz de quem te retribuir
Com o mesmo mal que nos fizeste!
Feliz de quem agarrar nas tuas crianças
E a esmagar contra as rochas!»
Não rima, mas é duma grande força evocativa, não acha?
Portanto, pode Vossa Senhoria ficar descansada: a este ritmo, em menos de uma semana, estou um racista, um anti-semita e, espero bem, um nazi diplomado. Não há-de ser por minha causa, que não há-de fazer um figuraço junto dos seus amigos.
Até porque isto não parece nada difícil. Estes cursos por correspondência são canja.
Mais fácil mesmo só os de democratas talibãs e virtuosos exibicionistas on-line. Isto, segundo consta, porque, ao contrário da justiça ou da verdade, a hipocrisia há-de estar sempre na moda.

segunda-feira, março 27, 2006

Idiossincrasias

«Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma, por boa que seja - e eu não creio que a disciplina seja boa - por força que há-de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.
Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco. Como os Alemães, nós esperamos sempre pela voz de comando. Como eles, sofremos da doença da Autoridade - acatar criaturas que ninguém sabe porque são acatadas, citar nomes que nenhuma valorização objectiva autentica como citáveis, seguir chefes que nenhum gesto de competência nomeou para as responsabilidades da acção. Como os Alemães, nós compensamos a nossa rígida disciplina fundamental por uma indisciplina superficial, de crianças que brincam à vida. Refilamos só de palavras. Dizemos mal só às escondidas. E somos invejosos, grosseiros e bárbaros, de nosso verdadeiro feitio, porque tais são as qualidades de toda a criatura que a disciplina moeu, em quem a individualidade se atrofiou.
Diferimos dos Alemães, é certo, em certos pontos evidentes das realizações da vida. Mas a diferença é apenas aparente. Eles elevaram a disciplina social, temperamento neles como em nós, a um sistema de estado e de governo; ao passo que nós, mais rigidamente disciplinados e coerentes, nunca infligimos a nossa rude disciplina social, especializando-a para um estado ou uma administração. Deixamo-la coerentemente entregue ao próprio vulto íntegro da sociedade. Daí a nossa decadência!
Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma "revolução" foi para implantar uma cousa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências. Ficámos miserandamente os mesmos disciplinados que éramos. Foi um gesto infantil, de superfície e fingimento.
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira cousa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral.»

- Fernando Pessoa, trecho de um artigo - "O Jornal", 8 de Abril de 1915

domingo, março 26, 2006

Uma questão de humanidade

Um pouco tardiamente, espero que não demasiado, apercebo-me deste apelo do Altino.
Duas palavras: Divulguem e ajudem!...
Nós, humanos, não somos grandes espingardas, mas, bem vistas as coisas, só nos temos uns aos outros.

PS: Vá lá, não custa assim tanto. Se até um pulha como eu consegue, imaginem os prodígios que umas excelentes pessoas (como todos vós) serão capazes.

PPS: Mas não me agradeças, ó lampião desgraçado! Ai de ti. Gosto pouco de publicidade. Além de que não tem nada que agradecer.

Não compliquem



Não elaborem muito. O Bloco de Esquerda não é uma maneira de pensar: é uma maneira de vestir.

sábado, março 25, 2006

À beira do clister



«William Kristol of The Weekly Standard now demands the firing of Donald Rumsfeld. William F. Buckley, whose National Review branded the antiwar Right "unpatriotic conservatives" who "hate" America, now calls upon Bush for an "acknowledgement of defeat."»

«Written by Weekly Standard Executive Editor Fred Barnes, the piece urges Bush to begin the "rejuvenation of his presidency by shocking the media and political community with a sweeping overhaul of his administration."
The purge Barnes recommends would have caused Stalin to recoil. »


Os Neoconas em debandada?... Ou nada que uma valente purga, em tributo aos bons velhos tempos, não resolva?...
Bem vistas as coisas, penso que a mensagem é mais ou menos esta: "Senhor Presidente, já está para lá de meras reformas ou cosméticas: o que a sua Administração precisa é de um bom clister!..."
Já se pensarmos nos idólatras dela por esse mundo fora, sobretudo em Portugal, o aparelho de clisteres será exíguo. Para dar conta do recado, com um mínimo de eficácia, só mesmo uma cisterna chupadora de fossas sépticas. Das grandes.

sexta-feira, março 24, 2006

O Lobby dos Proeminentes Nasais - Chapter 2

Acerca do Lobby dos Proeminentes Nasais, instalou-se mais abaixo uma discussão diversificada. A Helena falou em ruído racista, que eu, diga-se, em abono da minha proverbial estupidez, fiquei sem perceber muito bem se se referia ao tal documento produzido pelos académicos norte-americanos, ou ao meu singelo (e, a certa altura, sussurrado) postal. Outros falaram de outras coisas, o Nelson debulhou-se na retórica filopinóquia do costume, mas o que me ficou aqui a pairar na mente foi o tal ruído racista. Em calhando, se por aqui passar, agradecia muito à Helena que me iluminasse um pouco mais sobre tão tenebroso conceito.

Entretanto, para juntar gasolina ao lume e petróleo à fogueira, fiquem-se com este suculento extracto dum artigo cuja leitura integral, desde já, vivamente recomendo. No meu modesto entender, uma peça de análise fascinante. Do melhor que tenho lido por aí.
Aqui deixo o aperitivo:


Agora, digam lá se não é um belo pitéu!... Aposto que até o Buiça está banzado. Capaz mesmo de, ofuscado por súbito clarão, cair da montada abaixo e abraçar o apostolado. A Estrada para Damasco irrompe, milagrosa, onde menos se espera. Fariseu um minuto antes, santo peregrino o resto da vida depois.

Outra forma de colocar a questão anterior


A China vai ser o bombo da festa?...

quinta-feira, março 23, 2006

Uma breve questão de geopolítica



A China vai ser a Alemanha do século XXI?...

Vão lendo isto, depois isto, mais isto, e vão pensando sobre o assunto.

Fiquem atentos à retórica, cada vez mais estridente e lastimosa, sobre os "direitos humanos" para lá da Grande Muralha. (Estilo coisas destas...)
De caminho, registem no caderninho: O Irão é uma das principais fontes energéticas da China. Escrevam vinte vezes para não esquecer.


À semelhança da globalização, a industrialização frenética e maquinejante do século passado também prometia o melhor dos mundos. Até que a Alemanha começou a dar muito nas vistas... Tudo é excelente enquanto corre de feição à anglo-seita. Releva, essa peculiaridade, duma lei ancestral cuja origem se perde na noite dos tempos: os deuses são, por natureza, invejosos. Os semideuses também. Minto: os semideuses são-no ainda mais.

O Cristo de Grünewald



«Tinha sido na Alemanha, à frente de uma crucificação de Mathaeus Grünewald.
E teve um arrepio ma sua poltrona, e fechou os olhos quase com dor. Agora, que evocava o quadro, voltava a vê-lo com uma extraordinária lucidez à sua frente, e enquato o Cristo ali se erguia no seu quarto, formidável na cruz de tronco atravessada por um ramo de árvore mal descascado a fazer de braço, e se curvava sob o peso do corpo como um arco, ele voltava mentalmente ao grito de admiração que tinha dado ao entrar na pequena sala do museu de Cassel.
Esse ramo parecia prestes a reerguer-se e a atirar condoidamente a pobre carne para longe deste terreiro de ultrages e crimes, a pobre carne que os enormes pregos, trespassando os pés, mantinham presa ao solo.
Deslocados, quase arrancados dos ombros, os braços do Cristo pareciam garrotar-se a todo o comprimento pelas correias enroladas dos músculos. A axila fracturada estalava; as mãos completamente abertas brandiam dedos bravios mas que assim mesmo benziam com um gesto confuso de preces e recriminações; os peitorais tremiam, untados por suores; a marca da caixa das costelas raiava o torso com círculos de aduela; as carnes inchavam, salitradas e pisadas, com salpicos de mordedelas de pulga, como que mosqueadas pelas picadelas de agulha da ponta das vergastas que, por terem sido partidas debaixo da pele, ainda a lardeavam aqui e além com as suas lascas.
Tinha chegado a hora das sanies; a chaga fluvial do flanco escorria mais espessa, inundava a anca com um sangue parecido com o sumo escuro das amoras; serosidades rosadas, leites pouco abundantes, águas que lembravam pardos vinhos de Moselle corriam do peito, encharcavam o ventre que tina a bandeira enfolhada de um pano a ondular por baixo; depois, os joelhos undos à força faziam as rótulas chocar-se, e as pernas torcidas encurvavam-se até aos pés que se alongavam e sobrepunham, cresciam em plena putrefacção, esverdeavam em jorros de sangue. Estes pés esponjosos e cogulados eram horríveis; a sua carne dava rebentos, subia à cabeça do prego, e os dedos crispados contradiziam o gesto implorativo das mãos, amaldiçoavam, quase arranhavam com o chifre azul das unhas o ocre do chão carregado de ferro, parecido com as terras púrpureas da Turíngia.
Por cima deste cadáver em erupção aparecia a cabeça tumultuosa e enorme. Cercada por uma corroa de espinhos em desordem pendia, muito fatigada, mal entreabrindo um olho pálido onde um olhar de dor e assombro ainda estremecia; o rosto era montanhoso, a testa desmantelada, a face estava exangue; todas as feições desfiguradas choravam enquanto a boca desselada ria, com o maxilar contraído por espasmos tetânicos, atrozes.
O suplício tinha sido horrível, a agonia aterrorizava a jovialidade dos carrascos em fuga.
Agora, no céu de um azul nocturno a cruz parecia achatar-se, muito baixa, quase ao rés do solo, velada por duas figuras que se mantinham de cada lado do Cristo: uma delas a Virgem com capuz de um rosado de sangue seroso, que caía em ondas planas sobre um vestido azul celeste de longas pregas, a Virgem rígida e pálida, inchada de lágrimas e que soluçava, com o olhar fixo, cravando unhas nos dedos das mãos; a outra São João, uma espécie de vagabundo, de campónio bronzeado da Suábia, alto de estatura e com a barba frisada em pequenos caracóis, vestido com tecidos de panos largos e como talhados em em casca de árvore, um trajo escarlate, capa de um amarelo-camelo cujo forro, dobrado junto às mangas, se transformava no verde febril dos limões por amadurecer. Esgotado pelas lágrimas mas assim mesmo de pé porque mais resistente do que Maria quebrada e rejeitada, juntava com fervor as mãos, alteava-se virado para o cadáver que contemplava com olhos vermelhos de fumo, e sufocava e gritava em silêncio no tumulto da sua garganta surda.
Ah! perante este Calvário esborratado de sangue e enturvado de lágrimas, ficávamos longe dos Gólgotas bondosos que a Igreja adoptava desde o Renascimento! Este Cristo com tétano não era o Cristo dos Ricos, o Adónis da Galileia, o galã de bomaspecto, o rapaz bonito com madeixas ruivas e barba dividida, com feições cavalinas e insulsas que desde há quatrocentos anos os fiéis adoradoram. Era o Cristo de São Justino, de São Basílio, de São Cirilo, de Tertuliano, o Cristo dos primeiros séculos da Igreja, o Cristo rasteiro, feio porque tinha assumido toda a soma dos pecados, e por humildade a vestia nas suas formas mais abjectas.
Era o Cristo dos Pobres, O que se identificava com os mais miseráveis que vinha redimir, os isentos de sorte e os mendigos, todos os que têm a cobardia do homem acirrada sobre a sua fealdade ou a sua indigência; e também era o mais humano dos Cristos, um Cristo de carne triste e fraca, abandonado pelo Pai que só tinha intervindo quando nenhuma nova dor era possível, o Cristo só assistido por aquela Mãe que ele provavelmente chamava com gritos de criança, como todos os que sofrem a tortura, pela sua Mãe agora impotente e inútil.
(...) nunca um pintor abarcara assim o ossário divino, e tão brutalmente molhara o pincel nas placas dos humores e nos cadinhos sanguinolentos das feridas. Era excessivo e era terrível. Grünewald era o mais arrebatado dos realistas; mas quando olhávamos para este Redentor de vadiagens, este Deus de morgue, era outra coisa diferente. Da cabeça exulcerada filtravam-se clarões; uma expressão sobre-humana iluminava a efervescência das carnes, a eclampsia das feições. A carcaça de asas abertas era de um Deus, e sem auréola, sem nimbo. Com o adorno banal daquela coroa eriçada, semeada de grãos vermelhos pelas pontas de sangue, Jesus surgia na sua superessência celeste, entre a Virgem siderada, ébria de prantos, e o São João de olhos calcinados e já incapazes de fundir lágrimas.»

- J.-K. Huysmans, "Là-Bas" ("Além", na trad. portuguesa de Aníbal fernandes)

Mais palavras para quê? Isto, meus amigos, é raro: chama-se literatura. Visita-nos muito esporadicamente.

Este postal é especialmente dedicado à minha apóstola Zazie.

terça-feira, março 21, 2006

Em tese nunca fede


Então, para comemorar os três anos de guerra no Iraque, com uma dedicatória especial a todos os think-tanks a soldo cá do burgo, mais respectivos patsies e wannabes, aqui fica esta breve e singela notícia, deveras sugestiva:

«A BRITISH SAS soldier has refused to fight in Iraq and has left the army over the "illegal" tactics of US troops and the policies of coalition forces.
After three months in Baghdad, Ben Griffin told his commander that he was no longer prepared to fight alongside American forces.
He said he had witnessed "dozens of illegal acts" by US troops, claiming they viewed all Iraqis as "untermenschen" - the Nazi term for races regarded as sub-human.»

É preciso estômago para o açougue. Há uma diferença abissal entre um soldado e um carniceiro. Tanto no campo de batalha dos exércitos, quanto no das ideias. Pormenor nada despiciendo, mas quase impossível de explicar num subúrbio como o nosso, onde pululam e vicejam, em regime de engorda e toinopólio, seitas de magarefes intelectuais. Podem parecer grandes pensadores, peregrinos inefáveis, às cabeleireiras, sopeiros e contabilistas que os idolatram, os JPPês, Helenas Matos, Ratos e seus supervisores atlânticos, mas, de facto, sob o verniz da fábula, não passam de ajudantes de talho. Daqueles sebosos e anafados que carregam carcaças às costas. Sempre prontos para acudir com gáudio alarve às piadas obscenas do patrão.
E a esquerda tartufa, ai jesus, não me toques que me desafinas, com a trunfa oxigenada, um perfume que tresanda e beiças besuntadas a vermelho?... Bem, essa, velha puta de boulevard, faz bicha à entrada do estabelecimento. E obsta, com voz coquete, ao boçal talhante: "Ai, senhor Leôncio, que só me está a dar gordura!...Olhe o meu colesterol...e a linha da minha filha que, se deus quiser, há-de ser modelo!..." De virtudes, digo eu.

As galinhas loucas de novo



Uma questão para o nosso especialista residente -o sempre inexorável Lowlander-, dirimir e autopsiar:

«According to University of Ottawa flu virologist Earl Brown, lethal bird flu is entirely man-made, first evolving in commercially produced poultry in Italy in 1978. The highly pathogenic H5N1 is descended from a strain that first appeared in Scotland in 1959.»

Mais uma frankenstoinice? Será possível?... Aguardemos o veredicto.

The Master of all slaves



Outro artigo muito interessante sobre «The Role of the Federal Reserve In Artificial Economics».

Alguns aperitivos:
1. «In a world where all currencies are fiat, where none are backed by gold or silver, the nation whose currency is blessed to be the world's reserve currency -- the currency that is accepted for all international and domestic transactions -- has the uncanny privilege to be able to print all the currency it wants to out of thin air and not have to worry too much about it dropping in value.»

2. «The key international commodity that stabilizes the Dollar -- today's world reserve currency -- is oil.»

3. «under this incredible artificial economic scheme, in order for the U.S. to maintain some semblance of autonomy, from time to time the U.S. needs the price of oil to go up.»




Agora já sabem quem matou o Bambi. E porquê.

segunda-feira, março 20, 2006

O Sacrossanto Lobby dos pencudos



«Two of America's top scholars have published a searing attack on the role and power of Washington's pro-Israel lobby in a British journal.»

Os interessados, podem lê-lo integralmente aqui:
«THE ISRAEL LOBBY AND U.S. FOREIGN POLICY»

Principia assim, duma forma assaz inquietante:


Anti-semitas! Anti-semitas! Nazis! Fascistas -aliás, islamofassistas!! Buh! Abaixo! Mata!Mata!!...
Como ousam?!...

Pois é. O fenómeno começa a ganhar contornos de escândalo. Quem anda com fedelhos ao colo, ainda por cima narigudos, acaba sempre borrado. (Isto tem que ser dito muito baixinho, senão arruinam-me a bela carreira nas artes e já não me convidam para a Casa Fernado Pessoa. E eu que gosto tanto de fados!...)

(PS: Aquele "como ousam" é especialmente dedicado ao Nelson.)

O Diário de Adão


«Segunda feira

«Este novo ser de cabelo longo é um valente empecilho. Anda sempre à minha volta e segue-me para todo o lado. Não gosto disto: não estou habituado a ter companhia. Preferia que ficasse com os outros animais. (...) Está enevoado hoje, vento de Este; acho que nós ainda vamos ter chuva. [...] NÓS? Onde apanhei esta palavra? - o novo ser usa-a amiúde.


«Terça-Feira


«Estive a examinar a cascata. É o melhor do parque, penso. O novo ser chama-lhe "catarata de Niagara" - porquê?, não compreendo. Diz que parece a Catarata do Niagara. Isso não é razão. É um mero devaneio de imbecilidade. Não posso nunca dar nome a nada. O novo ser dá nome a tudo o que aparece antes de eu poder esboçar um protesto. E o pretexto é sempre o mesmo: parece ser aquilo. Por exemplo um dodo, diz que, logo que se avista um, percebe-se que "parece um dodo". Vai ter de passar a chamar-se assim, sem dúvida. Desgasta-me tentar discutir sobre isso e nem vale a pena, de qualquer maneira. Dodo! parece-se tanto com um dodo como eu!

«Quarta- feira


«Construí um abrigo contra a chuva para mim, mas não pude sequer gozá-lo em paz. O novo ser intrometeu-se. Quando tentei empurrá-lo para fora deitou água pelos buracos por onde vê e limpou-se com as costas da pata, e fez um barulho como o que fazem alguns dos outros animais quando estão aflitos. Eu preferia que não falasse. Está sempre a falar! Isto pode parecer um golpe baixo contra o pobre coitado, uma injúria; mas não é nada disso. Eu nunca ouvi a voz humana antes e qualquer som estranho e novo irrompendo aqui, na solene pacatez destas solidões de sonho, ofende os meus ouvidos e soa como uma nota artificial. E este novo som irrompe sempre tão perto de mim, vem sempre detrás do meu ombro, direito ao meu ouvido. primeiro de um lado, depois do outro... e eu estou habituado a sons que estão sempre mais ou menos distantes de mim.»
- Mark Twain, "Excertos dos diários de Adão e Eva"


É assim que começa uma das mais polémicas (ainda hoje, como constataremos já de seguida nas caixas de comentários) e geniais obras de Twain. Banida na época em vários estados americanos, encontra-se, cem anos depois, tão actual como dantes, e devia constituir obra de cabeceira das nossas feministas do arco-da-velha, sobretudo a Inês Pedregosa e a Fernanda Cancro, digo Conho, aliás Côncio.
A tradução portuguesa está aí, na "Cavalo de Ferro", e recomenda-se.

Adenda





Um factor de risco de impotência, ou disfunção erectiva - sem dúvida dos mais fatídicos-, que me esqueci de referir no inventário anterior: também não sou ateísta -essa forma particularmente virulenta de neobeatice.
Um esquecimento, convenhamos, imperdoável.

domingo, março 19, 2006

Albertina au barbecue...

Há "pérolas" que não podem passar sem o devido prémio.
A comentadora Albertina, aí no WC abaixo, no rescaldo do postal anterior (que, recordo, tive o cuidado de avisar as pessoas mais sensíveis para não lerem) saiu-se com a seguinte lamúria: “Eu acho que o Dragão é que é impotente", e "que utiliza o blogue para descarregar a frustração sexual", e outras remelas que tais.

Cara senhora,
Primeiro que tudo, agradeço-lhe a tentativa de injúria. No próprio postal eu recomendava que, caso me topassem na rua, me vaiassem e vituperassem sem dó nem piedade. Ora, zelosa e prestável, a Albertina - Vanessa, suponho - não se conteve e desembestou logo na caixa de comentários. Só foi pena que o serviço, além de exíguo, saísse disparatado, inverosímil, estapafúrdio. A ideia, penso eu, seria Vª Excª insultar-me e não cobrir-se de ridículo. Tanto e belo adjectivo, menoscabo, suculento impropério que a Língua Portuguesa tem –sem dúvida, a Língua mais rica do mundo nesse excelso departamento -, e a madame sai-se com uma alegação frouxa, choramingas e patetinha dessas!... Impotente, minha senhora? Tenha lá paciência! Faltam-me de todo os factores etiológicos, os traumas profundos e os estágios curriculares que geralmente antecedem e promovem tão deplorável patologia, ou doutoramento (como prefira). Veja bem: não sou neoliberal, não sou progressista, não sou modernaço, não sou pato bravo, não sou fariseu, não sou anglofilo (nem alguma vez refocilei em qualquer outro tipo de antropofagia ou pedofilia), não sou bestialmente sensível, não sou do Benfica e, acima de tudo, pormenor essencial, não sou seu marido.
Em contrapartida, não me enganarei muito, estou certo, se alvitrar que o único pau que lhe assenta bem entre pernas -e adora, com certeza, galopar fogozamente - é um de vassoura. Esse mesmo onde tem por hábito voar, não já às escondidas, mas devidamente emancipada - quer dizer, não mais para o sabat, mas para o Brasil ou Caraíbas. A crédito, bem entendido.

PS: Uma alternativa de resposta menos perifrástica ao seu lamento, seria qualquer coisa do estilo: "Albertina, meu amor... Não desesperes. Se enfiares uma rolha na boca e um saco na cabeça, eu juro que consigo!..."

Escolha a que mais lhe aprouver e unte-se com ela.

sexta-feira, março 17, 2006

Alienígenas e xenopóides


Os leitores mais antigos sabem que este blogue tem censura. Liberdadices não são comigo. Se eu não censurasse metade das coisas que escrevo, a esta hora já estaria preso. E tal não seria injusto, reconheço. Mesmo assim, surpreende-me como é que o Pacheco Pereira ainda não me mandou prender. Se calhar vai lançar-me uma praga mórbida sobre o primogénito; ou então, um dia destes, chovem-me rãs no quintal. Fico à espera. Mas vamos ao que interessa...
Ocasionalmente, sabem-no também os masoquistas que aqui desperdiçam algum tempo da sua vida infelizmente a prazo, resgato aos arquivos da censura alguns desses textos interditos. Porque sim. Este, aviso desde já as almas mais sensíveis e virtuosas, é um desses. O melhor é não lerem.


Confesso: Eu sou xenófobo. Um filho da mãe dum xenófobo furioso, encartado, impenitente, se querem saber. Incorrigível também. Impenitente, deveras. Podeis ameaçar-me com os tribunais, com as masmorras, com a deportação ou a cicuta, que eu não abdico, não recuo nem um mílimetro, nem um cagagésimo de polegada sequer: Sou xenófobo dos quatro costados! Xenofobíssimo! Mais xenófobo que eu não encontrareis, garanto-vos! Sou devotado à xenofobia! Fundamentalista! Profeta vociferante! Dou urros e esmurro a peitaça, só de matutar nisto!
Pretos? Ciganos? Ucranianos? Marroquinos? Alentejanos ?... –Quem são esses? Uns desgraçados que não têm onde cair mortos, certamente. Não sei porquê (ou então até sei) lembram-me esta nova vaga de portugueses pós-Restauração. Uns tristes à cata de Eldorados, mendigos de aluguer, arrumadores de sonhos alheios em parque de hipermercado global. Exceptuando o Moita Flores e meia dúzia de outras amibas congéneres, que mal me fizeram? Zanzam para aí, com vampiros na garupa, ainda mais frustrados e infelizes que os que pr’àqui se arrastam. Autênticos burros atrás da cenoura, coitados.
Quando muito gostaria que a minha filha não se embeiçasse por nenhum deles. Educo-a nesses louváveis princípios. Anátema extensível, de resto, a americanos, espanhóis, ingleses e outras tribos ranhosas. Considero-os a todos excelentes pessoas, mas vão ser pais dos netos de outro- já que inútil seria recomendar-lhes o retrocesso urgente à cloaca imunda e comunitária que os despejou neste mundo. Sim, insisto: que vão ser família de outro, de preferência, bem longe! Serei xenófobo, mas não sou hipócrita.
Não, nada de confusões: quando digo xenófobo não é apenas asseado, é xenófobo mesmo. Xenófobo a sério, com todas as letras. O que eu não suporto realmente são alienígenas, marcianos, aberrações oriundas de outro planeta, constelação ou galáxia. E isto está a ficar infestado deles, caralho! Proliferam à desfilada! É a profetizada invasão das abóboras mutantes! Os outros –os tais pretos, ucranianos et al (que os pseudo-xenófobos, os xenófobos de pacotilha, de meia-tigela, embicam, perseguem, azucrinam) -, só lhes constróem as casas; só lhes erigem –a esses, aos verdadeiros, aos puros alienígenas, aos xenopóides e xenúnculos – os condóminos fechados, os bairros pin&pon, as casotas barbie, as coelheiras estandardizadas para hamster novo-rico. Experimentem vosselências, meus estimados e geniais leitores, passar uma temporada num atoleiro transgaláctico desses e vinde depois contar-me que tal foi. Garanto-vos, é uma experiência inesquecível! Um suplício cinco estrelas!... Subitamente, despertamos mergulhados num pesadelo lovecraftiano. Por breves instantes, até o Marx e o Lenine nos parecem uns santos. Por escassos momentos, até a Revolução Cultural chinesa nos transparece coberta de sentido e damos connosco a suspirar por ela! Vou mais longe e arrisco mesmo o pão dos meus filhos e toda uma carreira meteórica nas artes: Por uma fracção de segundo, até o holocausto a granel nos surge como prioridade benemérita. Como é que eu sei?
Nem imaginam...Tenho algo de abominável a confessar-vos. Um mergulho de cabeça na infâmia. É verdade, pesem inúmeros atenuantes, eu habitei uma escumalhopolis dessas. Uma favela de patos-bravos. Fui assunto de comentário entre uma vizinhança de criaturinhas esverdeadas com gelatina gordurosa em vez de alma. Aliões antropomórficos com a distinta singularidade de terem o sistema digestivo trocado com o sanguíneo, com sangue a fermentar-lhes nas vísceras e fezes a correrem-lhes pelas veias. Participei num reality-show dos autênticos, nada de pechisbeque televisivo. The real stuff! É certo que nunca lhes falei, ignorava-os olimpicamente, desprezava-os com militância. Mas isso não é desculpa. Morei entre essa escória cósmica, entre essa ciganada interestelar, no meio dessa corja. Não muito tempo, é certo, apenas o necessário a vender a casa, mas mesmo assim, o suficiente para me sentir emporcalhado para o resto da vida. Ainda que fossem cinco minutos, já seria uma eternidade. Já mereceria tortura retorcida e pena capital.
E com que hostilidade velhaca me alvejavam aquelas trombas patibulares, grunhomórficas, extraterráqueas (e infra também). Primeiro, porque não participava nos seus arraiais populares, por altura dos santos e manjericos, onde se encharcavam em comezaina e chinfrim pimba em altos berros, mais o foguetório da ordem. Depois, porque não lhes imitava os tiques de pato bravo, a merda dos cães de importação, os barbecues de jardim, os gramados a imitar relva tosquiados a preceito (com que gozo celebrei o capim, o pomar, a horta de feijões; cheguei a plantar couves). Finalmente, horror dos horrores, porque tinha livros em casa - uma biblioteca, imagine-se! - em vez de televisão em todas as divisões, mesas de bilhar na cave, piscinas de aviário no jardim (com o mar a dois quilómetros).
Elas claramente mal fodidas, eles tipicamente semi-impotentes, com que afã se desunhavam para sustentar a vaidadezinha de pseudúrbio ajardinado e esbracejavam para se manter à tona! Com que selvajaria vampiresca a Autarquia, as finanças, as águas, os telefones e parasitas de todas as castas e proveniências os sugavam sem perdão e montavam à canzana! E eles delirantes, ufanos, sísifos!... Minto: elas sobretudo. E com que argúcia se espreitavam e controlavam uns aos outros, de plantão aos teres e haveres de cada qual – com que volúpia e espírito de missão se entregavam à osmose aquisitiva, ao concurso de açambarcamento de quinquilharias; e com que astúcia se insinuavam, a tentar meter o bedelho, o fedelho, o chavelho! E iam prá neve, os filhos da puta, imagine-se! E as crias no ballet, no karate, na prostituiçãozinha mental desde tenra idade. À coca do Big-brother, das novelas chungas e de toda a toinice desbragada deste mundo! De todo o lixo de que aqueles verdadeiros aterros sanitários mentais eram capazes! E que capacidade absorvente, Deus meu!...Que hiper-ausonia deglutidora do mênstruo social! Que super-arrastadeiras compulsivas!...
Por isso, por tudo isso e muito mais, que o vómito me tresmalha a pena, nada de piedade, meus amigos! Nada de perdões, compreensõezinhas ou piedades balofas.
Se me topardes na rua, apontai-me a dedo, aos gritos, aos tiros! Enxovalhai-me os ancestrais! Cuspi-me, apedrejai-me, atiçai-me cães, jornalistas, sogras! Eu mereço. É justo!
E é verdade. Descabelemo-nos! Eles vivem. E não haver um Shelltox, um Raid, um Ratak, um 605 Ultra Forte que nos livre de tal praga!...
Já não são apenas alienados: são alienígenas!...

quinta-feira, março 16, 2006

Lógica da batata(da)

No sentido de sensibilizar os palestinianos mais radicais a abandonarem a luta armada, os Israelitas foram com os seus blindados e bulldozeres até Jericó, cidade de bíblicas nostalgias, e tomaram de assalto a penitenciária local. Dois ou três mortos, inúmeros prisioneiros e vários escombros depois, retiraram-se em triunfo, brandindo, além de múltiplos troféus, o regozijo inerente ao dever cumprido. Uma tal embaixada apaziguadora não podia surtir melhores efeitos...
Também com o intuito de convencer os Iranianos a desistirem dos seus projectos armamentistas, os Estados Unidos, pela voz do Alucinado-Chefe, apregoaram, mais uma vez, o direito inalienável de bombardearem quem muito bem lhes dê na real gana, nos horários e locais da sua soberana conveniência (sobretudo em se tratando, para já, da zona geográfica preenchida pela actual República Islâmica).
Por um lado, são mais dois insignes contributos para a recriação ad nauseam da fábula do "Cordeiro e do Lobo". Por outro, confirmam uma lei tão antiga quanto inoxidável: Ao contrário do poder, o pudor diminui na proporção inversa do armamento.

terça-feira, março 14, 2006

Marketing ou Censura?...

Daniel Estulin, um jornalista espanhol, escreveu um livro intitulado “Clube Bilderberg – Os Senhores do Mundo”. O que é curioso é ter vindo agora denunciar que o mesmo está a ser banido em Portugal.
Segundo ele, «alguém ligado à Temas e Debates, a editora que tinha planeado editar o livro, afirmou que o governo português está a pressionar para que este não seja colocado à venda».

«“The government and my publisher in Portugal are trying to suffocate this book because they are afraid it will create a groundswell that could turn into a populist movement in Portugal as it already has in Venezuela, Colombia and Mexico where the first edition of the book sold out in less than four hours and caused riots in front of the embassies,” Estulin said. “Due to the mainstream media blockade, you have not seen or heard [of this] on national television or in the press."»

Para ser sincero, não sei com que revelações bombásticas o digno senhor jornalista, ainda por cima espanhol, terá bordado a sua obra. A fazer fé no seu alerta, tratar-se-á duma espécie de Harry Potter da "teoria da Conspiração", capaz de gerar bichas (sim, bichas, e quero que as filas e demais brasileirismos se fodam!), engarrafamentos e tumultos. Seja como for, e mesmo que a coisa irradie de verdades cristalinas capazes de se enfiarem pelos olhos a dentro duma toupeira e causarem espasmos de indignação numa estátua, o gajo menospreza o Jardim Zoológico Zombie que aqui existe, ou melhor dizendo, a imensa e superlotada Sala-de-Chuto em que todo este país se tornou. Com seis milhões de agarrados ao Benfica, mais nove milhões de agarrados ao Crédito e os restantes agarrados às jugulares dos precedentes, não estou a ver como raio vai ele atear qualquer rastilho, ou bulir, um pintelhésimo que seja, com a fogoza catalepsia dos aborígenes.
Lavrado o meu cepticismo, aqui deixo, não obstante, a participação. Para que conste. Porque se isto é mais do que uma operação de marketing e há ponta de verdade no enredo, então...

segunda-feira, março 13, 2006

Xenofobia é que não!...(Fica mal numa puta).

Andava eu a perambular pelos arquivos desta espelunca, a recordar os tempos em que me dignava escrever por aqui, quando deparo com esta peça sempre actual:

A xenofobia é um vício muito desagradável. E não obstante, a nossa história, durante largos períodos dum passado infamante, é um cardápio completo de energúmenos afectados por essa alucinante mania. Uma vergonha! E o pior é que esses figurões, autênticos ferrabrazes trogloditas, não se ficavam pelos rosnidos, pelas bocas ao transeunte ou as cuspidelas da janela ao incauto. Não; em arruaças e batefundos que só visto, cismavam de implicar violentamente com as boas almas que nos visitavam, espancando-os não raras vezes até à morte.
Um D.Nuno Álvares Pereira, por exemplo, quereis exemplo mais gritante e escandaloso de xenofobia? Aquilo eram maneiras de receber turistas? Francamente!...E aquela padeira louca, desvairada, um estafermo boçal que em vez de servir almoçaradas e regueifas ao viandante, inventava de assestar com o utensílio de serviço nas trombas, certamente estupefactas, dos peregrinos?!...Irra, assim, com pergaminhos destes, não admira que enfileiremos na cauda das europas e do mundo. A tratar assim a putativa clientela, não há economia nem défice que resistam!
O Viriato, lembram-se dele? Nada menos que outro xenófobo exaltado... Com tão bom queijinho que podia vender aos estranjas, teimava, ao invés, de lhes despejar calhaus e pedregulhos pelos costados; de lhes largar avalanches em cima. Em vez de boas tendas e feiras, como o sensato marketing aconselhava, obcecava-se era de lhes armar emboscadas e mortificantes recepções pelos desfiladeiros. Um rústico! Ainda por cima, movendo guerra aos romanos, gente sofisticada, bem falante, evoluída, enfim: os americanos daquelas épocas. O baguinho que não se delapidou com tais peraltices. As heranças e os proveitos de vindouros que não se esbanjaram assim. Ainda hoje penamos de tanga, por causa de madraços que teimaram de não arriar a dita.
Não, a mim ninguém me convence do contrário: Estas taras nacionalistas é que têm dado cabo de nós. Estas extravagâncias dispendiosas com a independência, os valores patrióticos, a língua mãe, os ilustres antepassados... Ilustres?! Broncos, isso sim. Dissipadores! Mentalizai-vos: Celebrar essa malta arruaceira, hostil ao desenvolvimento e ao paraíso global, é comemorar o atraso, a parolice, o obscurantismo. O sacana do Estado Novo, entre outros, essa pandilha castrante, andou cinquenta anos a intoxicar-nos, a induzir-nos em tremendo erro. A enxertar-nos de ilusões malfazejas. Cretinos!...Felizmente que nos últimos anos todo um trabalho de descontaminação e lavagem tem sido levado a cabo por esta excelsa gente progressista -esta boa elite benemérita que faz o favor de nos guiar à redenção humanista e comercial. Graças à sua supervisão sempre benigna, por obra e graça duma indústria pedagógica desinfectante (verdadeira creolina do espírito, Deus os abençoe!), esses presumidos heróis que outrora nos impingiam (malditos sejam!) transparecem agora na sua verdadeira aura de traidores à pátria, retardadores maléficos do augusto mercado e do ufano nível de vida catita. Continuamos pobrezinhos mas já não somos estúpidos, já não enfardamos gato por lebre. Libertaram-nos dos antolhos, carago! Aprendemos a ter maneiras, maravilha! Assim, nem que seja a conta gotas, ao ralenti, como convém a gastrópodes, lá chegaremos!... É garantido. Pedalamos à retaguarda, mas vamos no bom caminho - e o importante, que diabo, é competir, é participar nesta fórmula 1 da ciganice.
Ardemos já não em xenofobia, essa peste, mas em xenofilia, esse enlevo. E clamamos deste rincão -a redimir-se, a saldar-se - doravante franco e sôfrego de alienígenas: Vinde, ó salvadores!, nada temeis: já não atiramos pedras nem azeite a ferver a ninguém!...Nem espetamos lanças nem piques nos excursionistas. Se dúvidas tendes, perguntai aos brasileiros, aos que nos embalam do alto das novelas e nos vistoriam por alturas de carnavais: eles atestar-vos-ão, em júbilo, o quão simpáticos e hospitabundos somos. Melhor não há. Até enjoa.
Ah, mas, graças a Deus, não tem sido em vão todo este esforço... Com que alacridade eles nos visitam e acodem de todas as bandas. E com que ainda maior alacridade, em formidável êxtase, nós, babosos, os recebemos: de sorriso alvar desfraldado nas ventas e a bisnaga de vaselina sempre pronta na mão.

domingo, março 12, 2006

Repressão e irresponsabilização

(...)a repressão só faz sentido e encontra razão de ser quando se sustenta no algo que é reprimido: se esse algo desaparecer é também a repressão que se desvanece. Até porque dizer “a repressão” como se esta existisse per si, num estado puro e separado de quaisquer relações, tipo “primeiro motor imóvel”, não faria qualquer sentido. A repressão, de facto, existe enquanto desempenho. Pressupõe, tanto quanto algo ou alguém que é reprimido, também algo ou alguém que é repressor. Ora, sendo a sua posição (dela, repressão) essencialmente parasitária, pode engrandecer-se, desmesurar-se, mas não autonomizar-se através da eliminação ou absorção total do hospedeiro. Aliás, não só isso comprovadamente não acontece, como se processa até um singular intercâmbio: na medida em que recrudesce, o parasita estimula o hospedeiro a que não esmoreça. Quer dizer, a repressão estatal fortalece-se e perpetua-se pela bestialização compulsiva e reincidente dos cidadãos. É preciso que eles sejam cada vez mais “livres”, “licenciados” e “desculpáveis” –ou seja: "selvagens" – para que, também ela, a repressão, se desenvolva, burile e engorde. Como na permuta entre a águia de Zeus e o fígado de Prometeu. O chicote do domador mede-se pela bravura da fera. Neste ponto, convenha-se, irrompe a nossa divergência frontal com Freud: a civilização ocidental, menos ainda no seu estágio actual, não progride segundo um aprofundar do sentimento de culpa, mas, ao contrário, pela desobstrução do seu sentimento de irresponsabilidade. Para isso se desembaraçou do Cosmos, da Natureza sacra, de Deus e de tudo o que lhe causasse entraves. De cada vez que se viu livre dum desses empecilhos, a aceleração no progresso foi nítida. Estivesse certa a tese freudiana, e teria sido, necessariamente, o contrário. De resto, o desavagamento principal na história da civilização tem sido precisamente o dos factores de culpa, enquanto, como já anteriormente deixámos bem exposto, factores de ligação a um fundamento exo-material. O que nos transporta a outra consideração útil: é que aquilo que se chama progresso, no Ocidente, corresponde a uma forma específica e exclusiva de progresso – o progresso material. E basta lembrarmos a civilização grega, essa idade de ouro da cultura, para constatarmos, amargamente, que esse progresso material, invariavelmente, se fez acompanhar dum retrocesso –parte incultivo, parte corrupção–, espiritual. Assim, mais que nítidos, tornam-se compreensíveis certos contornos aberrantes do nosso tempo: tecnologia de ponta nas unhas de Cro-Magnons. Um homem, por fora, epidermicamente, cada vez mais limpo, perfumado, sofisticado e equipado; mas por dentro, mentalmente, cada vez mais imundo, selvagem, embrutecido e incivilizado. Um homem que, dir-se-ia, na medida em que mais humaniza o mundo, mais se desumaniza a si próprio. Cite-se, a título de exemplo, o seguinte episódio anedótico: Quando, em pleno idílio hippie, se arvora o manifesto duma contra-cultura está apenas a levar-se uma farsa a píncaros inauditos – é que a cultura contra a qual a juventude - enfastiada e dispéptica - do flower power se erguia era já de si uma forma industrial de contra-cultura. Não tardaram a entender-se e abraçar-se. Afinal, os jovens só pediam uma aceleração no processo. E tiveram-no. Dez, vinte anos depois, são já eles, ao volante do bólide neo-liberal quem conduz a infâmia e galopa a selvajaria, com requintes e desprezos de fazer corar pais e avós.

Aforismo primaveril



«O amor é uma flor deliciosa, mas é preciso ter a coragem de a ir colher à beira dum precipício horrível. »
- Stendhal, "Do amor"

sexta-feira, março 10, 2006

A Genealogia do Matadouro -V. Assírios e paradigmas (1ªParte)

«Nada é mais estranho à mentalidade do oriente Antigo do que o amor pela paz, afirmado ruidosamente, ao longo de toda a História, desde os romanos até á época actual. Porque, para os reis de Assur e alguns outros, como os da Babilónia, do Urartu, ou os soberanos hititas ou kassistas, a guerra não é uma calamidade, mas um culto prestado aos deuses. A dignidade da guerra está no seu carácter religioso; o inimigo não só é um criminoso, como é um sacrílego e nenhum castigo será demasiado cruel. É claro que um bom despojo, em homens, em animais, em ouro ou em objectos preciosos, constitui um ganho não negligenciável, mas a economia não explica tudo. Muitas guerras, na verdade, só servem para afirmar um poder, um apetite de domínio, a vontade de hegemonia que são os móbiles determinantes das expedições que resultaram na constituição desses imensos impérios heteróclitos fundados por assírios, hititas ou babilónios.
Esta ânsia de poder traduz-se muito cruamente na condução da guerra e no tratamento dado aos países e aos povos vencidos. Não se contentam em pilhar, devastam; incendeiam as aldeias; arrasam as cidades e destroem as colheitas. Amontoam pirâmides de cabeças à entrada das cidades; degolam vivos os chefes inimigos; empalam prisioneiros e só deixam ruínas atrás de si. Adad-Nirazi II reivindica o título de aniquilador e a glória de Sargão é a de espalhar lágrimas para todo o sempre.
Os inimigos são sub-homens para os quais não pode haver piedade.»
- Guy Richard, "A História Inumana"


«Depois de tomar uma cidade, Assurbaníbal gabava-se: “Corto-lhes a cabeça. Asso-os no fogo, uma pilha de homens vivos e de cabeças contra a porta da cidade hei-se pôr. Os homens empalarei com estacas. A cidade eu destruí, devastei. Fiz dela um montão de ruínas, os jovens e donzelas na fogueira queimei”.
Esta espécie de chacina ritual é particularmente endémica na guerra de cerco, embora ocorra a seguir a acções de campanha. Claramente disrtinta do confronto táctico propriamente dito, parece mais estreitamente aparentada com experiências relativas à caça. Bastante literalmente, o vencedor põe de parte quaisquer sentimentos de vulgar humanidade e entrega-se à matança pela matança. Se era por faltarem ao homem os mecanismos inibitórios de um predador natural ou simplesmente por ajustamento cultural, é impossível dizer de momento. Mas a espécie humana, e particularmente os Assírios, pôs uma terrível capacidade ao serviço da causa da guerra e da política, uma capacidade que um dia levaria aos campos da morte de Auschwitz e à colocação de armas nucleares com populações urbanas por alvo.
Mas, como sempre, por detrás da sangueira andava o dedo calculista e o interesse egoísta. Mal parava a matança, começava o roubo e a exploração económica.»
- Robert L. O’Connell, “História da Guerra”

«Terminado o massacre dos habitantes de Ai tanto no campo como no deserto, para onde haviam saído em perseguição dos israelitas, depois de todos terem sido passados ao fio de espada, todo o Israel voltou à cidade, matando toda a população. O número dos que morreram naquele dia, entre homens e mulheres, foi de doze mil, todos da cidade de Ai. (...) Os israelitas tomaram para si os rebanhos e o espólio da cidade, conforme o Senhor havia ordenado a Josué. Josué incendiou a cidade de Ai, reduzindo-a para sempre a um montão de ruínas, como ainda hoje está.»
- Antigo Testamento, Josué, 24-27

quinta-feira, março 09, 2006

Instintos suicidas


«Norwegian Bourse Director wants oil bourse - priced in euros».
«Bourse Director Sven Arild Andersen is fed up with Norwegian oil having to be traded in London and wants to have a commodities and energy bourse in Norway.»

Decididamente, os escandinavos têm instintos suicidas!... Mais que de epidemia, aquilo está a ganhar contornos de cultura.
Não tarda nada, a Condolências Rice, com aquela x-ray vision que só os super-heróis possuem, aparece a revelar a todo um planeta estupefacto que este senhor Sven Anderson é nada mais nada menos que "Sven, o Terrível", o medonho e demoníaco inimigo do Vickie, o Pequeno Vicking e, concomitantemente, da Civilização Ocidental.

Chapéus há muitos!...(E barretes ainda mais).



«Suécia: polícias passam a poder usar turbantes e outros símbolos religiosos
Ou toucados de penas... Ou barretes de pai Natal... Ou gorros e cachecóis do Benfica... Ou bonés mais os respectivos penteados rasta... ou máscaras e carrapitos vudu... ou chapéus mormon... ou ossinhos de canibal... ou tonsuras monásticas... ou barretes de hooligan... ou capuzes do Klu-klux-klan... ou... enfim, há toda uma panóplia de modelos.
Congratulo-me. Afinal, não estamos sós. Não é só aqui, na lusa paróquia, como diz o outro, que é "carnaval todos os dias".
Falta-lhes agora legislar, presumo, sobre a roupa interior. Hoje em dia, nestes "países evoluídos", tão importante como policiar e formatar o que um gajo pensa é controlar que cuecas um gajo veste.
Mas, bem vistas as coisas, não surpreende que a Suécia, com todas as suas maravilhas sociais, seja o país da Europa com maior taxa de suicídio. Este, o dos barretes, é só mais um capítulo nessa mórbida senda. Em rigor, um sintoma evidente de que a epidemia já começa a alastrar dos cidadãos ao próprio Estado.
Ou então, que sei eu, estavam tão entediados, chateados com tanta perfeição social, que decidiram importar sarilhos. Não sei porquê, mas já imagino polícias suecos de turbante aos tiros a polícias suecos de "kippa"; e vice-versa.

Desentupir o cujo a meninos

Ao que julgo saber, depois dos históricos acordos com o governo português, a Microsoft, em Portugal, passa a ter uma denominação comercial exclusiva para o nosso país: Microlax.

quarta-feira, março 08, 2006

Grosseiro menosprezo



«Não há uma única mulher na lista publicada pela Fortune em Junho de 2005 dos 25 CEO (presidentes executivos) mais bem pagos da Europa».

Apesar de vir publicado num jornal, estou em crer que isto é verdade. E, segundo o emérito articulista, serve como prova acabada de um fenómeno deplorável que, apesar dos modernos avanços e louváveis reformas, ainda inquina a sociedade do nosso tempo: Continuam a dificultar -senão mesmo a vedar - o acesso das mulheres aos ministérios mais elevados da prostituição.
Teimam em considerá-las naturalmente adestradas para a prostituição física, mas inaptas e desajeitadas para a prostituição mental.
Um grosseiro preconceito e uma escandalosa falta de atenção, entre muitos outros palcos benditos, às colunas e redacções dos jornais, se querem a minha opinião. Subestimam, sim, menosprezam vilmente todos aqueles abnegados e ecléticos coirões.

Corcundilos e marrequinhos



«This was supposed to have been the big "gay" year at the Oscars, with "Brokeback," "Capote" and "Transamerica" all vying for major awards. »
(...)«"I think that's an absolute horror," said Brad Bruner, who is a leader in the Golden State Gay Rodeo Association. "It's an outright sign of homophobia in our country. ('Crash') won no awards before this. It makes me sick."»

Para quem acha que Hollywood não cumpre "agendas"...
Mas chamo a atenção para a hilariante "Gay Rodeo Association". Isto até me leva a suspeitar que nos States já exista também a "Gay Rambo Association". Aliás, diabos me levem se todo aquele ambiente sado-masô dos cárceres democráticos, aqueles filmes necroporno de Abu-Ghraib e outros campos de concentração que tais, não são já uma clara manifestação disso mesmo. Tremam, homofóbicos: o Pink-Empire vem aí!...

terça-feira, março 07, 2006

A Genealogia do Matadouro - IV. Arménia

«Em 1887, surgiu [na Arménia] um Partido Revolucionário Hintchakista, multiplicando as manifestações que tiveram por resposta uma terrível repressão. Além disso, tinha-se constituído na parte russa da Arménia uma federação revolucionária arménia de carácter nihilista, a Daschnakzuthiun. Guerrilhas, emboscadas, repressões, massacres tornaram-se o clima normal de uma boa parte da Arménia. O verdadeiro levantamento acabou por eclodir em 1874 e as potências enviaram delegados para verificarem os massacres de que eram vítimas os arménios refugiados nas montanhas de Sassun. A comissão internacional concluiu, após inquérito, em 28 de Julho de 1895, pela ferocidade dos turcos e dos curdos. Massacrados milhares de arménios sem distinção de idade ou de sexo, perseguidos como animais ferozes, o sultão ganhou tempo, prometendo reformas que não pensava cumprir, mas aplicou de facto o projecto que ele preparava há muito tempo: a liquidação dos arménios. (...) O massacre ia agora propagar-se de província em província. No validato de Trebizonda, a carnificina fez 600 mortos (na cidade), foram destruídas 34 aldeias em redor e 2100 arménios assassinados; em Erzerum o massacre fez mais de 1000 mortos; a lista dos validatos arménios de Bitlis, de Van, de Karput, de Diarbekir, de Sivas, de Alep, de Adana e de Angora é uma litania de massacres, de vítimas degoladas, queimadas vivas, massacres organizados, começando a horas fixas, desenrolando-se em toda aparte onde as potências exigiam reformas, e de modo algum fortuitos, porque muito bem organizados. (...) Mais de 200 000 pessoas pereceram nesses massacres, sem ter em linha de conta as conversões forçadas, as mulheres levadas para os haréns (cerca de 100 000), as 2 500 aldeias destruídas, os milhares de casas incendiadas. Junte-se a tudo isso as epidemias de peste e de cólera e o êxodo de perto de 200 000 arménios para a Transcaucásia, para a Europa e para a América.
As potências combinaram não intervir na Arménia porque, dados os seus interesses económicos no Império Otomano, já não reclamavam a execução das promessas de reformas.
(...) A Revolução dos Jovens Turcos, em 1908, levou ao poder um partido violentamente panturco que, depois de perder uma quarta parte do Império nas lutas com os cristãos dos Balcãs, de 1908 a 1914, foi levado pelo vento de demência que então soprava sobre a Turquia humilhada, e que não previa outra solução para as minorias, especialmente a arménia, que não fosse o genocídio.
Em 1909, a Cilícia foi devastada e mais de 20 000 pessoas assasssinadas. A reconquista da sua capital Adana desenrolou-se num horror sem nome (pessoas esfoladas vivas, fuziladas, esventradas, crucificadas, cortadas aos bocados...).
Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu em 1914, o laço voltou a apertar-se para os arménios (...). A tempestade foi desencadeada no mês de Abril de 1915 em três pontos diferentes: Zeitsun, Van e Constantinopla. O massacre foi geral e total, preludiando uma deportação das populações arménias para os quatro cantos do Império, onde a maioria nunca chegaria, massacrada ou morta de fome no deserto da Mesopotâmia ou da Síria. A placa giratória da deportação estava em Alep, de onde partiam as caravanas para os campos da morte. Em 1917 não restavam mais do que 45 000 deportados, os outros desapareceram nas montanhas ou nos desertos. 1 200 000 a 1 500 000 foram vítimasa do genocídio, numa população total de 1 800 000 a 2 100 000. (...(
Se o tumulto dos massacres perturbou os cônsules, mal chegou à porta das embaixadas e, de qualquer maneira, a emoção que provocou esfumou-se perante os interesses superiores dos governos. »

- Guy Richard, "A História Inumana"

Embora se tenha posteriormente naturalizado britânico, Calouste Gulbenkian era arménio de nascimento. Veio ao mundo em Istambul, em 1869, e morreu em Lisboa, no ano de 1955. Legou a Portugal a sua mais importante e meritória Fundação. Felizmente para nós, (e, sobretudo, para ele) não partilhou do destino de tantos dos seus patrícios.

segunda-feira, março 06, 2006

A Genealogia do Matadouro - III. América: O espeto e a Cruz



Relato de Hans Staden, um mercenário alemão ao serviço da coroa portuguesa, após um estágio de cativo entre uma tribo canibal (do qual, pelos vistos, escapou miraculosamente cru e não esquartejado):
«O executor volta a pegar na moca, aproxima-se do prisioneiro e diz-lhe: “Aqui estou! Venho para te matar; porque os teus mataram e devoraram um grande número dos meus.” O prisioneiro responde-lhe: “Quando eu morrer, os meus amigos vingar-me-ão.” No mesmo instante o executor vibra-lhe um golpe na cabeça, que faz saltar os miolos. As mulheres apoderam-se então do corpo, arrastam-no para o fogo, esfregam-lhe a pele para a lavar, e metem-lhe um pau no traseiro para que nada se perca. Quando a pele está bem esfregada, um homem corta os braços e as pernas acima do joelho. Quatro mulheres apoderam-se dos seus membros e começam a correr à volta das cabanas, soltando grandes gritos de alegria. A seguir abrem-no pelas costas, e dividem os bocados. As mulheres ficam com as entranhas a que chamam mingau, que dividem com as crianças; devoram também as entranhas, a carne da cabeça, os miolos e a língua; as crianças comem o resto. Assim que tudo acaba, cada um agarra no seu bocado e regressa a casa; o executor acrescenta um nome ao seu, e o chefe traça-lhe uma linha no braço com o dente de um animal selvagem. Quando a ferida sarar, a marca continuará a ver-se, e eles olham esta cicatriz como um sinal de honra...Vi todas estas cerimónias e assisti a elas.»
- J-.P. Duviols, “L'Ámerique espagnole vue et rêvée

«O canibalismo, como se vê, dá matéria para uma alegoria da América. Porque ele está em todo o lado: à medida que os conquistadores acentuam a sua penetração no continente, descobrem cada vez mais tribos antropófagas e a América, de efémero paraíso terrestre que tinha aos olhos de Colombo, torna-se, a despeito dos seus esplendores e por via da forte atracção que continua a exercer sobre os recém-chegadoas, uma espécie de inferno povoado por demónios sanguinários que só pensam em se entredevorar.
Foi esse incontestavelmente o sentimento de Cortez e dos seus companheiros quando abordaram as costas do império Azteca. Logo à sua passagem em Cozumel descobriram no alto das pirâmides maias os altares onde se praticavam os sacrifícios humanos e recolheram pouco depois, em Zempoalla, Tlaxcala, da própria boca das populações submetidas, os primeiros testemunhos sobre o terrível imposto de sangue. Ao capitão espanhol não foram oferecidos, entre os presentes que lhe mandou o imperador Moctezuma para o acolher (mas sobretudo para o pôr à prova) alguns nacos de carne humana? Não sentiu toda a tropa desagradáveis arrepios quando, fazendo a sua entrada solene em Tenochtilan no meio da multidão, viu ao longo das plataformas os alinhamentos de crânios espetados nos tzompantlis? Desde há alguns lustros, a “guerra florida” –cujo objectivo confessado era o de cobrar ao inimigo o sangue precioso destinado ao Sol – tornara-se o pilar do império Méxica. Cavaleiros-águias e cavaleiros-jaguares deviam entregar aos sacerdotes um número crescente de vítimas, porque os deuses tinham uma sede terrível. Os cronistas contam que, em 1487, aquando da inauguração do templo Mayor, houve sacrifícios ininterruptos durante quatro dias, do nascer ao pôr do sol. Teria havido, segundo Torquemada, 72 344 vítimas, mais de 80 000 segundo as estimativas de Durán e de Ixtilxochitil, só 20 000 para Acosta; número enorme, em qualquer caso, mas que dá uma fraca ideia das exigências reais de um ritual constantemente renovado, em nome do qual se sacrificava de verdade, sem fazer contas.
Desculpam-se tanto mais facilmente o medo dos espanhóis quando alguns deles, feitos prisioneiros, foram executados diante dos olhos dos seus companheiros de armas durante o cerco a México. Um medo sem paralelo com o terror que reinava entre as populações submetidas, porque os aztecas tinham elevado a morte-espectáculo à condição de sistema de governo.»
- Bernard Fouques, “História Inumana”

Por um lado, estes “bons selvagens” deixam a fantasia de Rousseau um tanto ou quanto maltratada. E é pena, porque não deixa de ser uma tese enternecedora que ainda hoje em dia comove muitas almas sensíveis da paróquia. Mas, mesmo para estômagos tão tolerantes e indulgentes quanto os nossos, uma antropofagocracia é um bocado intragável. Por outro, a sua selvajaria - sobretudo glutona- não deixava de ser providencial, especialmente para os galhardos espanhóis que, bons crentes no amor ao próximo, ardorosos paladinos da verdadeira fé, trataram de desembaraçar-se o quanto antes de quaisquer escrúpulos ou humanitarismos, e desataram numa selvajaria ainda maior. É uma lei antiga e recorrente: para acabar com um Terror só um Super-terror. Las Casas, um pregador escandalizado com tão generosas violências dos seus compatriotas, deixou-nos um relatório famoso. «Preocupado em apresentar um catálogo completo, não hesita em repetir incansavelmente os mesmos abusos cometidos de uma expedição a outra: mulheres esventradas, recém-nascidos arrancados às suas mães, precipitados dos rochedos, afogados nos rios, homens espetados em grupos de treze e queimados vivos, em honra de Cristo e dos seus apóstolos, vítimas atrozmente mutiladas como exemplo, todas as cenas ilustradas por De Bry (...) Por vezes, parecendo aliviar o seu cerco, ele dedica-se a descrever o repouso do guerreiro: um, regressado de uma caçada de mãos a abanar, não encontra outro exutório senão saciar o apetite dos seus cães com a carne de uma criança que cortou aos bocados para o efeito; outro dedica-se a engravidar as índias que possui para obter um melhor preço no mercado de escravos. Presente em todas as páginas, o horror deixa subitamente de ser gratuito. Ele serve para denunciar a “tirania” dos espanhóis, ou seja os abusos de poder cometidos por eles contra toda a justiça, assim como a sua insaciável cupidez: dois vícios muito graves na época.»
- Bernard Fouques, idem
Para os apreciadores de números, no fim da "Conquista", estima-se entre 30 e 70 milhões o número de vítimas índias da mesma. Tratando-se de vítimas de segunda, senão terceira, categoria, o número, como é usual em assuntos históricos, está aberto a discussão e investigação.
Para a história fica o engenho e a arte com que nuestros hermanos praticamente varreram Aztecas, Incas e Maias da superfície do planeta.
Escusado será dizer que o relatório de Las Casas, em pouco amenizou as penas dos indígenas. Uma vez publicado, apenas serviu como munição e pretexto aos inimigos de Espanha, na época (Franceses, Ingleses, Holandeses et al) para, por seu turno, justificarem as suas pressurosas atrocidades contra os súbditos de Suas Católicas Majestades, bem como a bondade na urgência das mesmas. No seu lado negro, a civilização nunca deixou de ser uma corrida. Só que, nesse caso, à desumanização.