quarta-feira, março 29, 2006

Conversas com as paredes

Decorria o ano de 1755. Como é sabido, e há provas, as forças da Natureza acabavam de terraplenar Lisboa. Eu não vi, mas dizem que foi um grande espectáculo. Não sei se sensibilizado por isso, Voltaire, um tipo particularmente cínico, escrevia a Jean J. Rousseau, um indivíduo distintamente simplicio, o seguinte:
-"Nunca nos esforçamos tanto como quando nos queremos tornar bestas. Ficamos com vontade de andar nas quatro patas quando lemos a sua obra."
Nem Voltaire, nem Rousseau foram filósofos que mereçam grandes créditos ou encómios. O que não invalida que não tenham escrito coisas admiráveis. Como literatura, bem entendido. Isto não é uma depreciação: Se pensarmos que grande parte da Filosofia nem sequer boa literatura é, um conjunto de disparates estar bem escrito já é motivo para regozijo e foguetório.
Rousseau escreveu uma quantidade monumental de asneiras, sem dúvida, mas -ao contrário da maior parte dos badamecos de vasta trunfa que hoje -em coro pastoral - o menoscabam, escreveu-as com talento e fino recorte literário. Expôs-nos imensas burrices, mas sem ser aos zurros. Nos antípodas, ainda e sempre, destes jovens hodiernos, que nos debitam conhecimentos invariavelmente geniais, mas num tom, e sobretudo num dialecto, que nos dificulta o entendimento e a eles a clareza, pois em tudo revelam o asnoguês mais arreigado e tonitruante.
Não obstante, extravio-me. É de Voltaire e da sua resposta a Rousseau, em epígrafe, que queria falar.
Pois bem, estou absolutamente em desacordo. Acho mesmo que, para armar em engraçado, o Voltaire mandou o rigor e - embrulhado nele - a verdade às urtigas. É claro que os nossos jovens de capilaridade pujante levantam-se e riem. Acham muita graça e, à semelhança das focas do circo, desatam a bater palmas. Mas quem não tenha ficado refém desse idade da imbecilidade que é a adolescência, nem se deixe embarcar nesta enxurrada modernaça que porfia de transformar todos em adolescentes, não.
De facto, o querer tornar-se besta - na generalidade da raça humana - não requer qualquer esforço. Eu diria mesmo que é um instinto natural e atávico. Uma tendência semi-compulsiva. Tendo a natureza na parcimónia uma das suas leis fundamentais, tem também no homem um dos seus alunos mais aplicados. Só que, neste, a parcimónia degenera em preguiça, lei do menor esforço, ser com a manada, ir na correnteza, convergir para a sargeta. Por isso, não admira que não requeira qualquer esforço. Esforço, e um esforço cada vez mais titânico, requer a essa tradicional besta, que as religiões, políticas e até grande parte das filosofias não se cansam de celebrar enquanto tal, o tornar-se humana. O levantar as patas anteriores do chão, os olhos da lama e apontar a coluna ao céu e os olhos a um horizonte mais elevado.
Gosto muito de falar com as paredes.

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