sábado, abril 27, 2024

Antifaxistas de hospício




 

 «O Estado é o mais frio dos monstros frios. É frio mesmo quando mente; e eis a mentira que escapa da sua boca: "Eu, o Estado, sou o Povo".

Mentira! Esses que formaram os povos e acima das suas cabeças abriram uma fé e um amor, eram criadores; fazendo-o, serviram a vida.
Mas vieram destruidores estendendo armadilhas à multidão, e a isso chamaram Estado; por cima das suas cabeças suspenderam eles um gládio e cem apetites. (...)
A confusão de todas as línguas do bem e do mal, eis o sinal que vos dou; essa é a marca do Estado. Em verdade, é um sintoma da vontade de morrer. Em verdade, é um convite aos pregadores da morte.
Nascem demasiados homens. O estado foi inventado para aqueles que são supérfluos.
Vede como ele os atrai, a esses supérfluos! Como ele os devora e os mastiga e os rumina!
O Estado é o lugar onde todos, bons e maus, estão intoxicados; onde todos, bons e maus, se perdem; onde o lento suicídio de todos se chama "a vida".
Vede esses supérfluos! Apoderaram-se das obras dos inventores e dos tesouros dos sábios; a tal rapina chamam eles "cultura", e neles tudo se muda em doença e desconforto.
Vede esses supérfluos! Sempre doentes, sempre vomitando bílis; a isso chamam eles jornais. Devoram-se entre si e não conseguem digerir-se.
Vede esses supérfluos! Adquirem riquezas e apenas conseguem ficar mais pobres. Querem o poder e, primeiro que tudo, a alavanca do poder, muito dinheiro - esses impotentes!
Vede como sobem esses ágeis macacos. Amarinham uns pelos outros e mutuamente se fazem tombar no lodo e no abismo.
Todos querem ascender ao trono; essa é a sua loucura; como se a felicidade estivesse sobre o trono. É muitas vezes a lama que está sobre o trono, e é muitas vezes o trono que está erigido na lama.
Digo-vos que são todos loucos, outros tantos macacos trepadores e febris. O seu ídolo cheira mal, esse monstro frio; e também eles cheiram mal, esses idólatras.
Quereis sufocar na exaltação das suas fauces e dos seus apetites, ó meus irmãos? Quebrai antes os vidros e saltai fora! Fugi a esse mofo odioso! evitai tombar na idolatria desses supérfluos!»
    - Nietzsche, "Assim Falava Zaratustra"


O forte motivo porque detesto o fascismo é o mesmo porque abomino estes "antifascistas do cuspo" de creche ideológica, mais o seu pau toino e saca plástica, na nova caça aos gambozinos faxos. O que os irmana é idêntica e cega idolatria ao Estado. E apesar dos intuitos diferentes e, de certo modo, até conflituantes, brotam todos de baixo de equivalentes pedras (ou pedradas, melhor dizendo), a fermentar peçonha, a destilar banha da cobra e a impingir novas mixórdias bentas com que aspergir o pagode. 

Os fascistas, todavia, já se foram pelo ralo da História, na liquidação geral europeia de 45. Mas os "antifascistas de hospício", esses, perpetuam-se pelo método solene de emprenhamento auricular. Ou à maneira das infecções respiratórias, por emissão e permuta de gafanhotos hiper-fecundos. Uma verdadeira praga moderna, neo-bíblica. Flagelo, não direi divino, apenas porque segregado pelo demo. O certo é que criam o sinistro e acodem com a mangueira. Ou melhor, inventam a angústia, e subministram a droga. Vivem dessa mistificação clínica. Os outros eram fascistas por receita médica; estes são-no por toxicodependência. Em injecção, comprimido ou, imagine-se, supositório, já não conseguem vegetar sem a dose diária (e sempre escassa) de fascismo alucinogénio, coca-fascismo, enfim, droguinha para janado convicto. Não há apenas salas de chuto de norte a sul: organizam-se até festivais, concertos e romarias.

No calendário, existem feriados civis e religiosos. A diarreia de (ante)ntem corre o sério risco de transformar o 25 de Abril numa espécie de dia sacrossanto numa realidade mágica e paralela do puxa-fábula. Sob pena de anátema e excomunhão para todo aquele que não rasteje em devota peregrinação às relíquias e coprólitos  no altar. Duas figurinhas deste novo presépio laico, em forma de circo itinerante, é justo salientá-lo, cintilam por sobre todas as demais: a Soror Mariana; e o Frei Ruca Tavariche, que ainda (ante)ontem, perorava, qual microlenine dos evangélicos'r'us, contra os hereges que "profanam o 25 de Abril".

Perante um tal quadro de imbecilidade infestante, e danosa, só me ocorre aquela frase poética do Pessoa: "varrer à metralha as ruas". Não resolvia, é certo. Mas sempre aliviava.

PS: estou a pensar, seriamente, em fundar um novo partido político. Se não os podes vencer, junta-te a eles. Até já tenho a sigla: PQP!


PS2: também me ocorreu uma ideia de negócio catita: para fazer concorrência, ou em tandem, com as roulotes das bifanas, criar uma rede de roulotes de chuto antifaxista, como antigamente aquelas barracas de feira com tiro às fitas de brindes. Neste caso, em vez de brinquedos, bebidas ou artigos domésticos, livrinhos da Irene Flunser Pimentel, coroas de cravos vermelhos para urna eleitoral, G3 de plástico autografadas pelo Asco Lourenço, Salazares de rapar terrina e, claro, seringas auto-esterilizantes. Sobretudo de qualquer espécie de espírito, escrúpulo ou inteligência.  


quinta-feira, abril 25, 2024

Acromiomancia Revisitada - XXVIII. A Incubadoura Antifascista (Rep.)



 

 «a) A guerra nasceu no campo: e o termo [em francês,  tanto desiga campo como campanha militar"] manteve-se até aos nossos dias. Mas a partir de 1914 assiste-se à sua urbanização. Para a grande parte das massas de camponeses, a primeira guerra mundial foi um primeiro contacto com a civilização técnica. Uma espécie de visita dirigida à exposição universal das indústrias e artes aplicadas da morte, com demonstrações quotidianas ao vivo.

b) essa colectivização dos meios destrutivos, mecanizados, teve como efeito neutralizar a paixão propriamente bélica dos combatentes. Não se tratava já de violência do sangue mas sim de brutalidade quantitativa, de massas lançadas umas contra as outras, já não pelos movimentos do delírio passional, mas sim pela inteligência calculadora de engenheiros. Agora o homem é apenas o servo do material: ele próprio passa ao estado material, tanto mais eficaz quanto menos humano for nos seus reflexos individuais.
(...)
A política de massas, tal como foi praticada a partir de 1917, mais não é do que a continuação da guerra total por outros meios (para retomar mais uma vez, invertendo-a, a célebre fórmula de Clausewitz). (...) E por outro lado, o Estado totalitário não é mais do que o estado de guerra prolongado ou permanentemente recriado e mantido na nação
-  Denis de Rougemont,  O Amor e o Ocidente 

Existem especificidades - algumas únicas, outras comuns -  nas duas Guerras mundias do século XX. Ambas constituem manifestações de algo que se inaugura no século XX: a massificação. Mas há uma coisa que é absolutamente original na Segunda: a guerra total, ou seja, o confronto  não apenas entre concepções totalitárias de Estado, mas igualmente entre concepções totalitárias de ideologia (que é como quem diz de "propriedade da verdade"). De tal modo, que o emprego de meios maciços de destruição - e destruição não apenas militar como também civil (os aliados inauguram a modalidade do massacre objectivo e estratégico sobre alvos não militares - melhor dizendo, os aliados estendem o conceito de "alvo militar" à própria população) -, é alargado aos meios de propaganda que se pretendem também de destruição maciça. Mais: a guerra total nasce primeiro na propaganda e materializa-se depois no terreno. Trata-se não apenas de destruir por completo o inimigo, em todas as suas estruturas físicas, militares e civis, mas também nas suas estruturas mentais. E o que o pós-guerra irá demonstrar é que essa devastação não termina com as próprias hostilidades bélicas no terreno: prossegue depois, abatendo-se sobre a própria história do conflito, que apagando quer adicionando, diminuindo ou ampliando, eventos de pura conveniência ideogramática. Quer dizer, na propaganda, a desvastação maciça e sistemática não termina com a guerra, porque a guerra continua naquilo a que podemos chamar "campanha de subversão global". E é e continua uma guerra porque persiste um confronto entre concepções não já essencialmente antagónicas (como era, por exemplo, o fascismo e o comunismo), mas concorrenciais, em disputa quase mercantil pela hegemonia à escala global. Trata-se duma guerra não já de intensidade militar aberta, mas, sobretudo, de competição geopolítica. E é até por isso, que, aquando do colapso soviético (que não é militar), o fenómeno surge enunciado e proclamado como um triunfo retumbante e definitivo duma "concepção económica" e respectivo modelo (que se pretende agora, único, definitivo e universal). Porque, na verdade, as duas super-potências da guerra fria traduziam não apenas um super-empório militar, mas, manifestavam-se, sobrexcitadamente,  megapolos de exportação ideológica. 
Voltando à Segunda Grande Guerra... Se atentarmos friamente nos blocos em confronto, constataremos dum lado as forças de  nacionalismos particularmente exacerbados e do outro uma aliança de formas de internacionalismo/imperialismo mais ou menos dissimulados, no seu ímpeto hegemónico e totalitártio. Aliás, em bom rigor, apenas o Império Britânico se batia pela manutenção da Ordem antiga: os outros, embora de formas diversas, pugnavam pela instauração do novos tipos de Ordem. Se analisarmos o resultado do conflito, lá se desvanecem as mitologias posteriormente cultivadas: a Europa auto-destruiu-se, o Império Britânico suicidou-se e os Americanos e os Soviéticos repartiram entre si os despojos e reinaram por cima dos escombros. Como é que o Império Britãnico conseguiu atirar-se para a irrelevância e o museu das antiguidades  em seis anos, é caso para estudo atento e deveras arqueológico. No dia em que esse estudo desapaixonado conseguir dessoterrar-se do lixo propagandístico acumulado, talvez o bipolar Churchill passe de bestial a besta. Para Portugal era do seu extremo interesse que duas coisas não acontecessem, ou pelo menos uma: que os britânicos não se imolassem; que a Alemanha saísse derrotada mas não esmagada (aquele primeiro ponto era crucial para os nossos interesses estratégicos ultramarinos; este para a contenção da subversão comunista na Europa). Infelizmente, aconteceram os dois.
Uma primeira nota: o que é que distinguia o regime nacionalista de Salazar de toda esta gente? Na essência, quase tudo. Começando pelo conceito global de nação: Portugal pretendia-se uma nação entre as outras, de pleno direito e recíproco respeito; e até por isso não se meteu naquele caldeirão do diabo, que foi a segunda guerra mundial (onde, reconheça-se, todos os beligerantes, em bom rigor, batalhavam pela imposição ou manutenção de alguma forma de supremacia internacional). Salazar escorava-se na moral e no direito, e sustentava que ambos, a moral e o direito, deviam constituir  critério não apenas interno mas internacional. Tinha mesmo plena consciência que uma "imoralidade" reinante no palco internacional acarretaria efeitos perversos e pervasivos no ambiente nacional. O que não apenas profetizou como experimentou posteriormente, com a guerra do Ultramar.
Por outro lado, e retomando agora os nacionalismos europeus, tanto o regime de Hitler quanto o de Mussolini apresentavam na génese algumas semelhanças com o de Salazar: todos eles emergiam como resposta a sociedades subvertidas e desestruturadas e todos eram anti-democratas, anti-paralamentares, anti-liberais e, sobretudo, anti-comunistas, porque,  exaustivamente, haviam reconhecido e experimentado nesses tipos de receitas importadas a origem insidiosa da subversão e desagregação nacionais. Naturalmente, as reacções ao mesmo tipo de fenómeno reflectiram, em cada caso, o carácter de cada povo, e tanto a brutalidade germânica como o aparato histriónico italiano são diferentes do modo português, que, na pessoa de Salazar, fruto em larga medida do tomismo ancestral,.demandava, acima de tudo, um equilíbrio e uma ordem tranquila. Afinal, o modelo inspirava-se na própria natureza.
Assim, depara-se-nos uma evidência desde logo gritante: quando emergiram, os nacionalismos europeus - do italiano ao português -, começaram por deparar-se com um conflito subversivo interno. Isto é, para que o país sobrevivesse e emergisse da sua própria dissolução, tinha que enfrentar uma espécie de cancro doméstico sob patrocínio externo. Dessarte, tiveram que encetar uma  acção contra-subversiva interna, de modo a libertarem as respectivas  nações de guerras civis permanentes. E aqui, mais uma vez, Salazar distinguiu-se: nunca deixando que o ambiente de guerra civil que o precedeu se perpetuasse num clima de guerra interna subsequente. Assim, reduziu o problema a um caso de polícia. Ao contrário, alemães e italianos, sediados num conceito de violência curadora e redentora, desenvolveram uma dinâmica de combate interno intensivo (e militarizado) que culminou com o alastramento desse conflito ao exterior, mais concretamente, e segundo uma logica fatal, aos centros, ou agências, emissoras dessa agitação desagregante. Se repararmos bem, a Segunda Guerra, é um conflito de magnas proporções entre importadores (ou junkies)  revoltados e exportadores ideológicos eminentes. Em suma, fascistas e nacional-socialistas entenderam que não bastava combater os consumidores da droga, tinham que ir desmantelar os centros de produção; caso contrário, a droga continuaria e infiltrar-se e e causar os seus malefícios. É evidente que um projecto dessa envergadura desmesurada prometia as maiores dificuldades e os mais previsíveis dissabores. E materializava decerto o lanço entre a prudência e a Hubris. tanto quanto cavava a diferença entre o projecto genuinamente cristão de Salazar e os neo-paganismos exaltados de Mussolini e Hitler.
Tudo isto que venho expondo, para que não restem dúvidas ou costumadas esguelhas, pode ser confrontado com as proprias palavras de Oliveira Salazar, em 1934 (ou seja, em plena ascensão dos nacionalismos europeus e não nas suas múltiplas exéquias oportunistas do pós-guerra):
«Como muito e quase só se tem falado da sua concordância com outros regimes, pretendo hoje não me ocupar do que é semelhante, mas do que é diferente, para que possa ressaltar a todos os olhos a sua bem marcada originalidade.
O nacionalismo do Estado Novo não é e não poderá ser nunca uma doutrina de isolamento agressivo - ideológico ou político - porque se integra como afinal toda a nossa história, na vida e na obra de cooperação amigável com os outros povos. Consideramo-lo tão afastado do liberalismo individualista, nascido no estrangeiro, e do internacionalismo da esquerda como de outros sistemas teóricos e práticos aparecidos lá fora como reacção contra eles. O EStado Novo não empreendeu apenas extinguir os antigos partidos juntamente com o individualismo e o paralamentarismo; oferece também resistência invencível a correntes deles derivadas por força da lógica revolucionária ou que de algum modo representem excesso de ordem pública ou jurídica na reacção que aquelas provocaram. Sem dúvida se encontram, por esse mundo, sistemas políticos com os quais tem semelhanças, pontos de contacto, o nacionalismo português - aliás quase só restritos à ideia corporativa. Mas no processo de realização e sobretudo na concepção do Estado e na organização do apoio político e civil do Governo são bem marcadas as diferenças. Um dia se reconhecerá ser Portugal dirigido por um sistema original, próprio da sua história e da sua geografia, que tão diversas são de todas as outras, e desejávamos se compreendesse bem não termos posto de lado os erros e vícios do falso liberalismo e da falsa democracia para abraçarmos outros que podem ser ainda maiores, mas antes para reorganizar e robustecer o País com princípios de autoridade, de ordem, de tradição nacional, conciliados com aquelas verdades eternas que são, felizmente, património da humanidade e apanágio da civilização. (...) É preciso adfastar de nós o impulso tendente à formação do que poderia chamar-se Estado Totalitário. O Estado que subordinasse tudo sem excepção à ideia de nação ou raça por ele representada, na moral, no direito, na política e na economia, apresentar-se-ia como ser omnipotente, princípio e fim de si mesmo, a que tinham de estar sujeitas todas as manifestações individuais e colectivas, e poderia envolver um absolutismo pior do que aquele que antecedera os regimes liberais, porque ao menos esse outro não se desligara do destino humano. Tal Estado seria essencialmente pagão, incompatível por natureza com o génio da nossa civilização cristã, e cedo ou trarde haveria de conduzir a revoluções semelhantes às que afrontaram os velhos regimes históricos e quem sabe se até a novas guerras religiosas, mais graves que as antigas.» (- A.O.Salazar, em 26 Maio de 1934
Ainda mais significativo é o facto deste discurso de Salazar surgir em resposta à formação à sua direita do nacional-sindicalismo de Rolão Preto, cujos militantes  envergam camisa azul e sinais exteriores próximos do nacional-socialismo alemão.  O uso desta espécie de uniforme é rapidamente proibido pelo Governo em manifestações públicas; e uma parte dos nacional-sindicalistas, incluindo o próprio Rolão Preto, tentam derrubar Salazar. Imaginando que Rolão Preto teria substituído Salazar, não custa conceber uma entrada do Portugal na Segunda Guerra, ao lado das forças do Eixo.
Por conseguinte, se o nacionalismo português e os seus congéneres europeus da época coincidiam no ponto de partida (no inimigo e nos problemas originários a combater), já divergiam radicalmente nas metodologias, nas fórmulas organizativas, nas finalidades e no ponto de chegada. O Estado-Novo traduzia uma resposta genuinamente portuguesa e uma situação unicamente portuguesa. Todavia, para a propaganda, a realidade não conta. Ou conta na medida em que lhe interesse, para ampliar, desfocar ou subverter, conforme a conveniência.
Assim, quando a Guerra terminou no terreno das operações militares, com a derrota total e arrasadora das forças nacionalistas, não terminou igualmente na propaganda. Pelo contrário, recrudesceu e intensificou-se. O fascismo e o seu zénite nazi foram demonizados a um paroxismo desvairado e ininterrupto, sempre viçoso e sempre a reciclar.-se, que dura até aos dias de hoje. A coisa atingiu tais níveis de requinte que até investigações ou debates de índole histórica, uma vez que duvidem duma espécie de dogmas instituídos, foram criminalizados. Não pretendo com isto tomar posição nesses fenómenos, mas apenas anotá-los e referi-los como provas evidentes da perpetuação da "guerra aos nazis e fascistas" na propaganda e, mais concretamente, no mercado das ideologias totalitárias.
E para que serve esta "guerra inesgotável da propaganda"?
Essencialmente serve para bloquear uma parte inconveniente do espectro político. E camuflar uma livre alternativa eleitoral que, na realidade, não existe, mantendo sob ameaça e anátema qualquer esboço de genuína independência. Ou seja, qualquer forma de "nacionalismo" - entenda-se de  legítima defesa dum qualquer país, economia ou cultura contra o internacionalismo corrosivo e diluente da hegemonia (actualmente sintetizada numa plutocracia global) -, é imediatamente interdito a apostrofado de "fascista", "nazi", "ditatorial", etc. A não aceitação cega do modelo de exportação pseudo-democrata e teomercantileira conduz, inexoravelmente, a todo o tipo de sanções, arbitrariedades e, por fim, caso necessário, a uma cartaginização local. Assim, a guerra de propaganda, além de inesgotável, é preventiva. Exerce-se em permência de modo a evitar surtos indesejáveis. Funciona, pois, à escala global, na criação duma hipnosfera que absorva e determine toda a atmosfera geopolítica planetária. É nessa hipnosfera que se formam e desencadeiam as tais "deslocações de ar" históricas.
Quando em Portugal, no pós-25 de Abril , em nome duma higienização antifascista, se ilegaliza a direita, está-se no fundo, com o retardamento de 30 anos, a implementar o "pós-guerra" no derradeiro espaço europeu onde ele ainda não vigorava. Por pouco, aliás, o  rectângulo não se dividiu, à semelhança da Alemanha vencida, numa parte pró-ocidental e noutra pró-leste, o que, a verificar-se, mais não replicaria que  as duas modalidades vigentes de "antifascismo": Mas num aspecto, a receita dos Aliados para a Alemanha subjugada foi efectivamente repetida entre nós: a "desnazificação alemã" transpôs-se na "desfascismização portuguesa". A punição e terraplenagem retroactiva seguia o seu curso na campanha propagandística. Assim,  quando hoje se conclama, também por interesse de propaganda ou mera mentecaptice, que o antifascismo foi uma estrita criação comunista está-se a querer omitir boa parte do quadro. Os comunistas,  também por interesse próprio e de propaganda, eram os mais exacerbados na retórica apenas porque procuravam arvorar-se nos mais antifascistas de todos, com isso pretendendo uma superioridade moral que lhes pavimentasse e facilitasse o acesso ao aparelho de Estado entretanto devoluto. Mas todos os outros, criteriosamente autorizados, da extrema-esquerda ao CDS repetiam caninamente  o mantra e eram, com juras públicas diárias, antifascistas compenetrados e democratas puritanos da mais elevada extracção. Basta lembrar a recusa de PSD e CDS em participarem na manifestação da "maioria Silenciosa" (prontamente catalogada de fascista"), para orçar da alegre lavagem cerebral em curso. Lavagem que, de resto, permanece nos dias de hoje. Ainda agora, simplesmente por recapitular o Estado-Novo sem ser em tom asséptico e enojadinho, sou de pronto catalogado de "salazarista", "ultra-salazarista", "fascista" (e a descarga não vem exactamente do lado mais à esquerda, o que só espanta quem não conhece de ginjeira este tipo de faunas e tropagandas).
Por conseguinte, explicar um certo predomínio da esquerda apenas como resultado reiterado da agit/prop marxista-leninista é não querer ver o principal. Basta comparar os meios`de difusão e o acesso desses meios à generalidade da população lusitana (situemo-nos apenas nos anos 60 e 70, para facilitar) entre a propaganda anglo-saxónica e a propaganda soviética. E é confundir um mero expediente oportunistas (como foi o assalto da 5ª coluna soviética) com toda uma predisposição anteriormente cultivada, fomentada e induzida por filmes, folhetins, séries televisivas e até revistas de banda desenhada, como a lendária "Falcão", onde heróis  "aliados" como o Major Alvega, o agente Ene 3 ou a intrépida Mamselle X, convertiam as criancinhas desde tenra idade ao antifascismo precoce e à fobia pelas pérfidas suásticas. Para o luso petiz, a certa altura, matar alemães nazis era tão lógico e urgente quanto matar baratas. Além de ignóbeis e péssimos, os alemães (como os japoneses) eram um estúpidos, falhados e perdedores natos. Imagine-se agora o pimpolho, já em plena adolescência, quando um qualquer colega de liceu ou faculdade, devidamente insinuante, lhe segredava que o regime português era fascista, filonazi e mantinha um campo de concentração nas Berlengas... Obstar-me-ão, "credo, Dragão, que exagero! Coitado do Major Alvega..." Pois, e ainda por cima tinha costela lusitana, o antifascista voador. Mas o facto é que muito do despenteamento mental que se verte até hoje acerca de fornicoques antifascistas e anti-salazaristas está ao nível das revistinhas do Major Alvega e traduz apenas um estado perpetuamente cultivado de credulidade infantil e inteligência larvar.
Tudo isto para explicar uma coisa muito simples e elementar: sem a criação e fertilização do terreno com toda uma predisposição antifascista (da qual o regime não se sentia afectado nem ameaçado, porque não era de facto fascista, nem nunca tinha sido), o antifascismo peregrino e depois de choque na pós-golpada dos Cravos jamais teria vicejado com tão inusitada e desarvorada "espontaneidade". A rápida associação do Estado-Novo, quer ao léxico maldito quer a símbolos repugnantes como a suástica, ou figuras fardadas ao mais tenebroso estilo SS, trataram de converter rapidamente a imaginação pública à distorção confeccionada.
Por outro lado, acreditar que as pessoas andavam sofregamente a ler Marx (e derivados) na clandestinidade, porque em sendo proibido, como toda a pornografia, tornava-se mais apetitoso é claramente delirante. A seita comunista nunca se caracterizou por estudar ou conhecer Marx ou Lenine, como os católicos não passam grande cartão à Bíblia Sagrada. Tirando o clero do comité e da nomenklatura pastorais, que lêem vagamente (e em boa parte nem entendem para lá da vulgata evangélica), as hordas militantes não precisam sequer de ser alfabetizadas (aliás, quanto mais analfabetas, melhor). Partilham a fé, cultivam o fanatismo, dispensam a gnose. Cumprem o que o camarada secretário-geral e o comité decretam; escutam os sermões e as prédicas e prestam-se ao martírio, se necessário for, com todas as suas forças. (Não é por acaso que o Partido Comunista sempre confiou mais nos operários do que nos intelectuais aburguesados: estes, com duas chapadas na Pide, borravam-se e abriam-se todos; aqueles enfrentavam monumentais sovas e martírios e resistiam com a devoção dos mártirtes compenetrados). A ideia que prevaleceu na revolucionite subsequente, e ao longo sobretudo do PREC, não teve muito que ver com pré-leituras ou requintes elaborados de propaganda previamente subministrada em saraus culturais na clandestinidade penumbral das catacumbas: foi um simples engodo pelo saque, pelo desforço, pelo amarinhamento social de ocasião. A conspiração nunca excedeu por aí além a patuscada. Nem antes nem depois do 25/74. O fáxista era o patrão, o senhorio, o rico, o proprietário de alguma coisa, o professor, o polícia,  o GNR, enfim, tudo o que de alguma forma representasse a ordem anterior e constituísse obstáculo ao saque e subsequente alpinismo dos candidatos desensofridos à exploração económica da nova (des)ordem. Ao nível da burguesa mais letrada ou dada aos quadradinhos, o panorama não variava muito: houve sobretudo arrivismo e reviralho premeditado, ou instantâneo, de quem, a partir de frequentes injecções de estrangeirina, estava mais do que de  prevenção para a mudança a qualquer momento. Mudaram rapidamente de casaca os pais, na grande maioria para garantia do património, e dispersaram em várias direcções os filhos, apontando, em bom ritmo e ruído, aos trampolins dos tachos do amanhã que, esses sim, sempre cantam.  (contabilizem-se todos aqueles que, oriundos da extrema-esquerda, treparam a posições de relevo no Centrão desgovernativo)... O fenómeno "adesivo" já referido em relação ao 5 de Outubro de 1910, foi ainda mais transbordante no 25 de Abril.. Adaptatóide nato, o vulgar português, percebeu num ápice que se virava uma página e cumpria aderir ou, no menos precipitado dos casos, aguardar para ver para que lado tombava a balança (para então correr a alistar-se, ou ajustar o léxico e o discurso). O que explica, calma e inequivocamente, como, numa noite de Abril, o país acordou de esquerda socialista, e noutra noite de Novembro, o mesmo país, acordou curado e prontíssimo para  o parlamentarismo liberal.
Entre nós, basta controlar os megafones, que o resto vai de arrasto. Ora, neste controlo dos bomba-brutos é que a porca torce o rabo. O que nos reenvia à  tal "guerra inesgotável da propaganda"... Um dos derivados dessa campanha perpétua é a "ditadura cultural das esquerdas"...


Como se processa, em moldes concretos, a guerra eterna da propaganda? Evidentemente, através dum controlo hermético dos mass-media mais influentes, ou pela saturação desinformativa naqueles cujo controlo não é tão viável (a internet, por exemplo). Mas também através de operações tão bizarras quanto o subsídio a partidos da chamada "extrema-direita", cuja função existencial é precisamente conferir sentido e embrulhar em verosimilhança a "guerra permanente" ao fascismo sempre à espreita e pronto a jugular a humanidade democrática (entenda-se, num perfeito intercâmbio marxista, a "humanidade realmente humana", porque emancipada de todos e quaisquer valores verticais). O programa obsessivo é de tal forma repetitivo que qualquer ameaça que adquira, geralmente por investidura propagandística, carácter global é de pronto revestida sob o labéu fetiche - sendo o islamo-fascismo, a mais recente.
Ora, o islamismo terrorista já é suficientemete execrável por si. No entanto, ao adicionar-se-lhe o apêndice "fascismo" está a perpetuar-se, por um lado, a tal guerra antifascista e, por outro, a agravar e adensar os horrores do fascismo com novas eclosões ainda mais terríficas, repugnantes e desumanas. Quer dizer, o fascismo é conotado com atrocidade, degradando-se a algo que não conspira e porfia apenas contra uma determinada forma de regime imposto, mas, outrossim, algo que atenta contra a própria "humanidade", sendo esta, doravante, restringida àqueles que veneram, professam e cultivam a "democracia liberal". Donde resulta a geminação entre os adeptos da democracia popular com os adeptos da democracia liberal: ambos constituem quintas colunas num processo/projecto de submissão global. Ou melhor, constituíam. Porque agora os segundos, praticamente, exercem sem concorrência.
No entanto, persistem nas super-estruturas (dito gramskianamente) hordas de  abencerragens esquerdinolentas, herdadas em parte do granel antepassado, geradas no restante sabe-se lá porque superstição infecto-contagiosa. E continuam a debitar a mesma cassete antifascista, sempre que a ocasião o permite, tanto quanto a mesma sociopatia lexorreica escondida no cavalo de Tróia do "estado social". Como explicar esta persistência epidémica?
Se a memória não me falha, era Maurras que dizia «abrindo a maior parte das folhas socialistas ou anarquistas e informando-nos do nome dos seus suportes económicos, verificamos que as mais violentas tiradas contra os ricos são pagas pela plutocracia dos dois hemisférios». Bem, sem querer por agora abarcar o mundo, atenhamo-nos ao rectângulo da península. Não consta que o Partido Comunista seja proprietário de nenhuma das televisões, jornais de maior tiragem ou revistas semanais. Sabemos aliás que todos eles vivem às sopas de grandes grupos económicos cuja finalidade nesta vida não é exactamente instaurar a democracia popular. E à época de Marcello, nos anos 70, nas vésperas do 25, era o Partido Comunista que mandava nos jornais e na televisão? Podemos até elencar os grupos proprietários das principais folhas de couve (de Lisboa): o "Diário da Manhã" era propriedadde da Companhia Nacional Editora e órgão da União Nacional); a Voz era um diário católico e monárquico;  Novidades era o órgão oficioso do Patriarcado de Lisboa; o Diário de Notícias, propriedade da Empresa Nacional de Publicidade (principais accionistas: Caixa Geral de Depósitos e a "Moagem")  e era um órgão oficioso da Situação; o Século pertencia à família Pereira da Rosa; o Diário Popular tinha como maior accionista Francisco Balsemão; o Diário de Lisboa, tendo como maiores accionistas a família Ruella Ramos, BNU e o grupo Champalimaud, atrvés do Banco Pinto e Sotto Mayor; o República, que poucos compravam... E por aí fora. A haver uma "ditadura cultural da esquerda" (e há, só que não no sentido restrito em que querem camuflar), sabemos, pois, quem a exerce. E sabemos também quem a paga. Vão-me dizer que quem paga e, cada vez mais, não manda? Ou que o Mercado é masoquista?
Então para que serve e a quem serve a "ditadura cultural da esquerda"?
Fica a resposta para um próximo postal, que este já vai mais que longo. E fica também um facto indesmentível, que lhe servirá de enquadramento:

Desde o Estado-Novo até ao Estado-em-que-isto-está o que é que efectivamente aconteceu? Passámos duma ditadura política portuguesa, suavizada, para uma ditadura económica internacional, duríssima. Para que serviu a "ditadura cultural da esquerda"? Para desagregar e dissolver as estruturas de poder nacionais e terraplenar a área para os implantes externos. Depois de entregarmos as colónias, tornámo-nos  algo entre a colónia e o protectorado. Como de resto tem sido regra nesta piolheira, desde a Revolução Francesa, com um único intervalo: o período de tempo do Estado-Novo. Pois, é chato, nada bem, pouco fino, desculpem lá, mas foi a única altura em que os credores não mandaram nisto: Salazar correu com eles.
Não sei, pois, dito com franqueza, qual será mais repugnante, se a sabujice e a cobardia entranhada das nossas elites, pseudo-elites e nelites, se a sua recusa em ver a realidade, cobrindo-a de mitos de ocasião e, mais que tudo, de importação. Continuam à cata dos piolhos dos miúdos do Portugal da infância, como se isso fosse o cúmulo das  salazarentices e nem percebem que eles próprios são os piolhos que infestam e presidem à testa dum Portugal com os pés para a cova e a cabeça para o lixo.


Nota: No título do postal "incubadoura" subentende um híbrido entre incubadeira e manjedoura. 

Da acefalopédia abrilampante ao Efeito de Tocqueville

 



Ao fim de meio século bem contado, seria de esperar que, ao menos, já tivessem adquirido um pingo de vergonha na cara. O problema é que não conseguiram ainda desenvolver uma cabeça, mirrada que fosse, onde ostentar a cara. O facto de serem voluntariamente destituídos de coluna onde armar um pescoço também não ajuda ao prodígio. A acontecer, estou certo, já não será no meu tempo.  De resto, aquilo que desfilam, como rosto postiço, não se distingue minimamente da cauda, já que deslizam, soltando uma baba viscosa, ao mesmo nível do chão. Obstar-me-ão com os corninhos retrácteis. Fraca consolação!...

De seguida, uma reposição extremamente adequada. A que se seguirão algumas outras, para me poupar a repetições. 

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«Mencionei um dia ao Xá o nome daqueles que, nos Estados Unidos,, estavam encarregados de tratar da sua saída e da sua substituição. Estive até presente numa reunião em que um dos assuntos apreciados foi: "Como é que vamos actuar para obrigar o Xá a partir e por quem o vamos substituir?" O Xá não me quis acreditar. Disse-me: "Acredito em tudo o que me diz, menos nesse ponto.

 ~Mas Alteza, porque é que não me acredita também quanto a esse ponto? - Porque seria tão estúpido substituir-me! Eu sou o melhor defendor do Ocidente nesta região do mundo. Possuo o melhor exército. Sou eu quem detém o maior Poder." Acrescentou: "Seria tão absurdo que não posso acreditar!" Após algum silêncio em que reflecti sobre o que lhe ia responder, disse-lhe: "E se os americanos estão enganados?" Foi o que se passou. Os americanos tomaram a sua decidão. Como sempre, tinham uma visão do país correspondente à dos iranianos com quem conviviam: os que saíam de Harvard, de Stanford ou da Sorbonne e que representavam menos de um por cento da população. (...) A percepção ocidental do regime do Xá passava com demasiada frequência pelo espelho deformado da S.A.V.A.K, que, para muitos, era uma espécie de super-Gestapo mais a KGB, multiplicado por dez! - o que era falso. A prova foi a sua incapacidade de prever os acontecimentos e, depois, de os enfrentar.»

-  A. Marenches, in "No Segredo dos Deuses"

Existe um visível paralelismo entre a queda do regime do Xá da Pérsia e a do Estado Novo. O mesmo enquadramento que Marenches refere a propósito da Pérsia podia ser dito a respeito de Portugal. A começar pelo "redutio ad oppressio" . O Xá é reduzido à SAVAK, o Estado Novo é reduzido à PIDE/DGS. Depois realça o facto de não serem, ambos, regimes anti-ocidentais, comunistas, ou similares. Bem pelo contrário, são regimes pró-ocidentais, anti-comunistas, claramente aliados da Europa e dos americanos. Todavia, são regimes que não praticam o "credo democrático".   E esse devém o pretexto da ordem para accionar a "primavera". O resultado desta na Pérsia, como em Portugal, como em todos os outros locais onde tem desarvorado, é o caos. E logo a seguir a ascensão ao Poder de forças fundamentalistas, sejam da religião muçulmana ou comunista. Ainda recentemente, no Egipto, outro aliado americano, o presidente Mubarak, foi tratado segundo os mesmos preceitos. A subsequente elevação da Irmandade Islâmica ao Poder reproduz fielmente tanto o caso Persa quanto o Português. 
Ora, é patente que estamos perante uma linha de fenómenos equivalentes. A diferença entre eles não reside nem na metodologia nem na ordem da causa/efeito mas, simplesmente, na panóplia de meios empregues (que vai aumentando consoante o tempo e as evoluções tecnológicas). Na Lisboa de 74, como na Teerão de 79 a internet ainda não actuava. A CIA ainda não estava tão consideravelmente reforçada por NEDs , OSFs e propagadores da peste quejandos. Mas é significativo que, numa primeira fase, quer Lisboa, quer Teerão são induzidos e pressionados a "aberturas". Ao mesmo tempo, os "pressionadores democratas"  investem dólares às camionetes em liberais, dissidentes e, sobretudo, na minagem do exército). Depois, o curso lógico e a dinâmica dos acontecimentos, isto é, da epidemia, sobrepõe-se.
Paul Veyne explica o bizarro fenómeno  nos seguintes termos:
«A elasticidade natural, ou vontade de poder, explica um paradoxo conhecido pelo nome de efeito de Tocqueville: as revoluções rebentam quando um regime opressor começa a liberalizar-se. De facto, as sublevações não são semelhantes a uma marmita que, à força de ferver, faz saltar a tampa; é, pelo contrário, um ligeiro levantamento da tampa, devido a qualquer causa estranha, que faz a marmita entrar em ebulição, o que acaba por derrubar a tampa.»(in "Acreditavam os Gregos nos seus Mitos")
Inúmeras e recorrentes réplicas depois, qual é ainda a dificuldade em perceber a "primavera Portuguesa" de Abril de 1974?

Não fez Marcello como o Xá da Pérsia - não tentaram ambos liberalizar e suavizar o regime (não porque isso obedecesse a uma qualquer premência natural interna, mas por cedência a causas estranhas, como seja a insídia velhaca e premeditada de supostos aliados, tanto por indução/ameaça directa, como por manobra indirecta, sob a máscara da "Comunidade Internacional"?... O que mais não ocasionou senão o descontrolo do surto interno na tentativa ingénua (e suicida) de aplacar o externo.

O "efeito de Tocqueville" tem sido uma constante nas actuais revoluções/sublevações confeccionadas pelas bestas do costume. O movimento é duplo: por um lado aumenta-se a temperatura dentro da marmita; por outro, engoda-se a tampa para que se se levante ligeiramente. A partir do momento que o regime cede à "liberalização" já sabemos qual vai ser o resultado final. Mesmo na Paris de 1789, ou na Moscovo de 1917, foi assim. O que acontece agora é que o efeito é, externa e artificialmente, provocado e empolado. Como, em parte, nessas outras datas também o foi.  

sexta-feira, abril 19, 2024

A Justiça a Sério

 



O mais recente alarido merdiático da paróquia: a Justiça está desacreditada. Por via de mais um dos processos típicos da confraria. A Influencer não sei quantos (mais parece nome de vacina do que de investigaçoa, mas enfim, é  o que há). 

Bem, não quero ser desmancha-lazeres, mas deixem que pergunte: Desacreditada em relação a quê? À Política? À Administração Pública? À Comunicação Social? À Economia? À Ética (republicana ou outra qualquer)? Às Artes? Às Instituições Europeias? Às Forças Armadas?  Ao nobre e valente Povo? Sim, meus amigos, se vamos estar com classificações (ou desclassificações), convém arranjar um ponto de referência, uma escala,  um critério, que diabo!

Ora, pegando na bitola do crédito da Política ou da Comunicação Social, só para citar as mais relevantes para comparação (até por ordem de vizinhança), a Justiça, apesar dos denodados esforços de chafurdanço e atascamento em que se refina, ainda está longe de alcançar o desnível de qualquer uma delas. Estou seguro que tudo porfiará para lá chegar; não descansará noite e dia, domingos, feriados e horas extraordinárias. Mas ainda vai ter que pedalar um bocado. Tudo seria até mais fácil, e de certo modo exequível, se as duas bandalheiras avançadas permanecessem, por um instante que fosse, estáticas. O problema é que, bem pelo contrário, nunca freiam nem abrandam, e escavam levadas de seiscentos diabos e outros tantos assessores e secretários, como se não houvesse amanhã. E tudo indica que não há mesmo. Pelo que, se é certo que a Justiça se esfalfa, temo que se esfalfe em vão. Quando alcançar o descrédito completo, já as outras desceram ao enxovalho profundo, na vertiginosa rampa  do descalabro abissal. Mas isto sou eu a ser só optimista, para não dizer idílico.

Porque, na realidade, o caso é mais complexo. E germina dum problema assaz cabeludo: é que, ao contrário de qualquer competição ou certame condignos e abalizados, no presente torneio, não se distinguem nem as pistas separadas, nem, tão pouco, os atletas ou misses a concurso. Fala-se em "separação de poderes", mas isso é só para inglês ver e otário besuntar. Separação, do que quer que seja, é que não se avista em parte alguma. Nem de modelos, nem de pistas, nem de camisolas. Na verdade, apenas se avista um reboliço, uma amálgama, uma mixórdia sôfrega e ambulante. Onde os limites entre a Justiça e a Política (ou a Comunicação Social, ou de qualquer uma delas com qualquer uma das outras, do Circo Chapitô às Forças Armadas, à Academia ou ao nobre e valente povo, passe a redundância geral funambular), oscilam entre o indistinto, o inexistente e o inescrutável. Assim, em bom rigor, não é possível atribuir pódio, medalhas ou taça a qualquer uma delas: é todo um ex aequo permanente. Não há concurso, e muito menos regime: apenas uma zaragata em peregrinação tumultuosa pelo estádio. É um todo que é nada, já que as partes que deviam conferir-lhe forma, organismo e sentido apenas se digladiam e barafustam entre si, à boa maneira dos esquizofrénicos.

Faltam apenas duas ressalvas. Lá atrás, quando referi "Nobre e valente povo" estava a ser irónico, como é óbvio. Uma gente que embarca e atura (durante meio século bem contado) uma chungaria chinfrim destas, de nobre e valente tem nada. E bem merece, juntamente com toda a esterqueira em que se derriça e espelha, uma plêiada de génios  como aqueles que pirilampejaram em farol dos franco-afundadores... Só que agora o título de enciclopedistas é exíguo: há toda uma asnopédia, uma onagrosseia, uma gambusíada para cantar!...

E onde aponto que não há separação em lado nenhum, minto. Há, sim senhor! Uma que, até para mais, não é nada pequena. Orça mesmo, tudo o indica, um  novo adamastor: a separação, o divórcio completo e litigioso, de todo este Faz-de-Contra com a sua história - com o passado e o futuro - e, sobremaneira, e a reboque de sabe o Demo o quê, com a realidade. Mas nada de retrogradâncias ou negacionismos! Não temos tempo a perder: há todo um Ralo à nossa espera. E quando lá chegarem, prestem bem atenção: vão, finalmente, ver a Justiça. A Justiça a sério!

quinta-feira, abril 18, 2024

Panaceia veterinária

 


«"Vacina universal”? Cientistas podem ter descoberto fármaco contra todo o tipo de vírus»


Por falar em Pinóquios profissionais... Antigamente, eram mais pitorescos e bastante menos perigosos. Deambulavam pela vilas e lugarejos, proclamando o milagre ao alcance de todas as bolsas. Arvoravam títulos e nomes comerciais entre o sugestivo e o deslumbrante. A criançada, piamente crente, esbugalhava o olhos e ajudava ao séquito. O maravilhoso produto que disponibilizavam ao otário aflito ficou para a história como "banha da cobra". Geralmente, tinha a forma de xarope, ou unguento. Para a gonorreia e a cegueira não havia melhor!...


99.9%, ou Da única Pinoquiarquia do Médio oriente

 Ao melhor estilo do Bagdad Bob e do Carraça do Oxidente, aka Anão Zalento, os Faz-de-Judeus assanhados não pretendem deixar os seus descréditos por mãos alheias.  Já não é apenas de opróbrio que se cobrem: é, ainda mais, de ridículo.




terça-feira, abril 16, 2024

Estratégia versus histerotégia


 

Adenda

1. Fanfarroneiam, os tampinhas, que abateram 99%. Só? Mas agora viciaram-se na modéstia? Quando os ucraniões, em cada vinte mísseis do Urso, abatem 25 e maltratam quase outros tantos, estes agora dá-lhes para a humildade!... 250%, que raio. No mínimo! Os que foram lançados e outros tantos que eles foram aniquilar ainda nos silos de lançamento. Já não falando do sistema de defesa anti-míssil de ponta - aliás, de penca - por voodu.

2. Vão retaliar? Claro que vão. É mais forte do que eles. No mínimo, vai ser coisa para 300.000 palestinianos. Só no primeiro mês. E mais uns actos de terrorismo avulso, que é a droga a que estão agarrados desde o início.

3. Podem retaliar com armas nucleares? Do que dependesse deles era já prá semana. O problema é que o Irão é demasiado grande; e eles são demasiado pequenos. E também olimpicamente cobardes. Muito provavelmente, recorrem a uma bomba suja, que tratam de plantar em Teerão, ou coisa que o valha, e depois, com atávica chutzpah e a Bênção oxidental, ainda acusam os persas de terem causado a catástrofe por negligência no manuseio de materiais radioactivos com intuitos furtivos de fabricarem uma arma nuclear. Condenação internacional garantida.

4. O novo lema do Estado de Israel: "Agarrem-me senão eu desgraço-me!!

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domingo, abril 14, 2024

quinta-feira, abril 11, 2024

Bizarrias no palramento

 Frases fortes do mais recente último-ministro do rectângulo:

1. "Vamos cumprir Abril!"

- Só? Contávamos que ficassem pelo menos até Junho...

2.  "Nós não somos uma aventura!"

-  Pois não. O caso, por enquanto, é mais da ordem da auto-estimulação solitária.

3. "Como escreveu Saramago..."

- Citar Saramago gera sempre uma (legítima e candente) angústia operativa ao aficionado: De caras? Ou de cernelha? 



segunda-feira, abril 08, 2024

Colonoscopia cultural, ou A Zappar desde 1984

 Por falar em wokismo e cancelamentos...

Ainda falta muito para cancelarem este gajo nos States (e respectivos satélites de trazer por trela)?... Andam distraídos, os purritanos!...

Prestem bem atenção às letras: duma actualidade chispante. Mais politicamente incorrecto seria difícil. Thing Fish, um triplo lançado em 1984, pasme-se. Ou então não.

                                                







Etnopatia paranóide

 Hubris, a receita universal para o desastre.


Uma ladainha milenar de pacotilha, regurgitada ad nausea por judeus postiços. É como a tanga do antixemita de alguidar. Para engodar acéfalos e amedrontar parolos.

domingo, abril 07, 2024

A Minha Odisseia - I. O primeiro dia



«Não é apenas, ocasionalmente, que atrás dum grande homem está uma grande mulher. É sempre: atrás de qualquer homem está uma mulher: aquela que o pôs no mundo. Maior exemplo de amor, valor e coragem não se conhece."               



A minha digníssima mãe, Deus a tenha e recompense, como já aqui referi, transportou-me dentro dela 9 meses e, mal eu saí cá para fora, tomou a minha educação a seu cargo. Aliás, em vez duma mãe mimadora e apaparicante, graças a Deus, a mim calhou-me em sorte uma mãe instrutora, cuja ocupação sagrada e principal era fazer de mim um homem. E desde pequenino!... De tal ordem que, quando, pelos meus seis anos, me foi depositar à escola, eu já ia educado. E não apenas educado: instruído em boa medida. Os rudimentos de ler, escrever, contar, assinatura, rubrica, caligrafia, tudo isso, já ela me ministrara. Mas isso era apenas a ponta do icebergue: um aparato nada despiciendo da História de Portugal  também já me equipava as tenras meninges. Desde a devoção a Nuno Álvares Pereira, à espada pesadíssima do Fundador, aos dentes do Decepado, até aos domadores do Cabo das Tormentas e ao vencedor do Gungunhana, passando pelos milagres da Rainha Isabel e os expedientes da padeira de Aljubarrota, com um pincelada alógena à epopeia de Joana d'Arc, constituíam já a minha armadura mental no dia, dum Outubro qualquer, em que penetrei, pela primeira vez, os umbrais do estabelecimento público de ensino - uma daquelas escolas primárias monumentais e típicas do Estado Novo, meninos dum lado, meninas do outro. Na véspera, fora mesmo armado cavaleiro, com o seguinte e solene imperativo categórico: "não te metes com ninguém, respeitas toda a gente, mas se alguém se meter contigo, defendes-te, ouviste?! Livra-te de voltares para casa com queixinhas que te bateram: apanhas ainda mais!" A minha mãe, convém assinalar, era transmontana. Mas isso não era o mais terrível: o pior é que a mãe dela também era. E munida dum vocabulário camiliano que muito me fascinava, bem como de um feitio de antes quebrar que torcer -  viúva, criara cinco filhos, em batalha vitoriosa contra toda uma aldeia de semi-ciclopes. Para reforço da filha e por via das dúvidas, também ela, de visita à barbárie da capital, me crismou, em missa Te Deum, com o seguinte preceito civico": "Se algum bandalho te quiser bater, não prometes: dás-lhe logo; mas não é com a mão, pegas num pau e dás-lhe com ele pelos cornos abaixo!" Importa ainda referir que boa parte da  minha educação religiosa, praguejante  e nobiliárquica (os pergaminhos da família), fora ela a transmitir-mos.

Armado, então, destes belos princípios (que guardo e mantenho religiosamente até aos dias de hoje e, estou determinado a manter até à hora da minha morte), lá segui, pois, a minha mãe até à escola. Naquele tempo obscuro, as mães, pelo menos a minha, pilotavam-nos no primeiro dia, de modo a ensinar a rota, mas depois era connosco: passávamos a arrostar sozinhos (ou em bandos) todos os perigos da travessia (que ainda eram alguns). Além da não chorar, um homem, por muito minúsculo que fosse, não tinha medo. Era gente rude e muito pouco delicada, a daquela época. Enquanto seguia nessa viagem inaugural, meditava, intrigado, sobre uma questão operativa deveras perturbante: se ia para uma iminente refrega, para que raio me servia aquela bata branca - ia ingressar no corpo médico? Que vergonha, que descrédito, que desinteresse! A glória está em causar hemorragias, não em contê-las. De bem melhor dignidade (e vantagem) seria uma armadura e capacete, com espada ou maça de armas a condizer. Ainda tentei levar o arco, mas  a severa progenitora impôs-me, em descompensação,  a caneta de tinta permanente (era-me de todo inútil na primeira classe, mas ela devia achar que as armas não se portam por utilidade ou interesse, mas por princípio).  Enfim, não sei o que os outros fedelhos iam fazer à escola, provavelmente aprender a ler e a escrever. Eu, em contrapartida, lembro-me bem, ia para me bater em defesa da honra da Pátria e da minha família. Só depois de bem salvaguardada estas, estaria a minha própria reputação garantida. Firmemente disposto, assim, a não me desonrar e, comigo, a família e a Pátria, despedi-me da minha mãe e acometi os portões daquele Adamastor. De relance, fitei o céu, semi-encoberto, donde Nuno Álvares, Afonso Henriques,  Vasco da Gama, Ulisses e a padeira de Aljubarrota me vigiavam, solenes e perscrutantes. 

Só depois de todos estes cuidados soberanos, dirigi os olhos para os meus futuros colegas. Estavam também todos vestidos com bata idêntica, o que me transportou a sombrias confabulações e desencantos. Ameaçava-me um tugúrio de enfermagem, quando o que eu aspirava era uma escola  militar!... Só então, provavelmente enviada pelos meus mentores e tutores celestes, me ocorreu uma ideia redentora: lembrei-me que também os homens do talho e açougueiros em geral trajavam uma bata semelhante. Animou-se-me o espírito e desassombrou-se-me o futuro... Entendia agora da utilidade e funcionalidade da bata: era para não sujarmos a roupa com o sangue do inimigo. Muito poupadas e previdentes, as mães do antigamente!...

Querem que vos conte a lúcida dedução que retirei do meu estudo daquela fauna durante a semana seguinte? Fica para o próximo capítulo. Mas posso ir já adiantando o essencial: falavam um dialecto abstruso, onde a estridência e a asneira colidiam em caótica competição; corriam sem sentido e manifestavam-se sem quaisquer noções da missão sagrada dum português no mundo. Apenas num ponto - melhor dizendo, num objecto - não me eram totalmente estranhos: a bola. Mas essa era, naturalmente, a excepção à regra. Pelo que, após aturada, discreta e distante observação, extraí o seguinte dogma empírico: eu estava confinado, durante o horário escolar, e sobretudo durante o recreio, a uma caverna de mini-ciclopes. Foi então que, por um qualquer processo misterioso, senti que Ulisses já não estava no céu, com os Outros, a vigiar-me: estava dentro de mim. A dar-me força...e argúcia subtil. Claro que nunca o contei a ninguém, muito menos à minha avó. Duvido muito que Odisseus apreciasse ser despromovido a Anjo da Guarda.



sexta-feira, abril 05, 2024

Metamorfose ou transfiguração?

 DISTO:


PARAISTO:

          



Do Titteringotango para o Micro-Tolifemo Cabeçudo, a ucranisteia é a mesma. Este, aliás,  promete ser ainda mais ululário, roncante e mãos largas.  Em resumo: o trogloditismo mascarado de "estado de não sei quê" prossegue a bom galope. 





quarta-feira, abril 03, 2024

As Lágrimas de Ulisses



«Ali, pois, estava deitado o Argo, todo comido de piolhos. Como reconhecesse Ulisses, agitou a cauda e baixou as orelhas; mas já não tinha forças para se aproximar do seu senhor. Ulisses notou isto; e, voltando a cabeça, enxugou uma lágrima (...) Nesse momento, a morte apoderou-se de Argo, que tinha visto, há pouco, Ulisses.»
               - Homero, "Odisseia, Rapsódia XVII

 

A história que Homero contou aos gregos, contou-ma a mim a minha mãe, pelos meus cinco anos. Fascinou-me desde esse dia. Mesmo sem todos os detalhes e peripécias, como as que pude ler anos adiante, foi esse relato oral que a mais profunda impressão me causou. Quase ao mesmo tempo que ela ma contou, ouvíamo-la, em conjunto, numa espécie de teatro radiofónico (ou radionovela) que havia nesse tempo mágico da minha infância. Não havia televisão, nem telemóveis, nem play-stations,  nem nenhum desses venenos com que actualmente se prossegue em vida a interrupção voluntária da gravidez. Havia, isso sim, um rádio, como esse em epígrafe, do qual o meu pai era grande entusiasta. Como eram tempos obscuros e arcaicos, transmitia coisas prodigiosas, para os meus ouvidos minorcas, como a Odisseia, de Homero e, numa outra altura, se bem me lembro, com não menos espanto para mim, a própria viagem do Vasco da Gama. A ideia que, por comparação ao Portugal da minha meninice, faço deste onde ora anoiteço, é a de que caminho, alternadamente, entre um patíbulo e um cemitério. A ideia da morte perante esta qualidade de vida colectiva, é-me, por isso, cada vez menos penosa. Nunca tive medo da morte. Todavia, agora, suscita-me já, não apenas curiosidade, mas alívio. Graças a Deus que ela existe e nos abrevia as penas.
Mas falemos da eternidade. Dos heróis que não morrem. Começo pela peripécia que, na Odisseia, constituía para mim a mais  formidável de todas: a gruta de Polifemo. Nada a suplantava em assombro. O diálogo radiofónico, encenado pelos nossos grandes actores da época, transportava-me milénios atrás e eu assistia ao confronto entre o herói e o gigante ogresco, simultaneamente horrorizado e maravilhado, como se lá estivesse ao vivo, numa espécie de transe onírico onde o tempo e a própria existência banal se viam ultrapassados. Indignava-me até com a história (e a momentânea impotência de Ulisses) quando Polifemo devorava os infelizes companheiros do navegador. Mirolho, desmedido e ainda por cima canibal, a imensa besta atentava em cheio contra o meu sentido de harmonia e justiça no mundo (mania que ma azucrina desde pequenino, sabe lá Deus porquê, porque só me tem acarretado problemas). Anos adiante, a minha espeleologia enriqueceu-se: desci  à caverna de Platão e li relatos de Ésquilo acerca de seres mirmitónicos que habitavam em cavernas, antes de Prometeu os transformar em homens. Estes, portanto, tinham sido troglwdythes antes de se tornarem anthropos. Quase em simultâneo, do lado de fora da janela, constatei também uma grande algazarra e tumulto: estavam a transformar a minha própria Ítaca numa caverna. Em forma de rectângulo. Não só era toda a Grécia que reverberava em nós desde Camões que se impunham liquidar: era a própria condição vertical de Anthropos que urdiam banir. Importava remeter os habitantes, meus conterrâneos, ao estado mental de "trogloditas".  Andam nisso há cinquenta anos. E não se pode dizer que tenham sido totalmente ineficazes.
Não obstante, o que significa, exacta e amplamente, "troglodita" tem o seu interesse. Cavernícola ou "homem das cavernas" ainda hoje se mantém actual. Troglos, como antron, pode significar caverna, buraco. Mas o "viver na caverna" remete também para um estado pré-civilizacional, pré-histórico, de rude selvajaria e brutal ferocidade meramente animalesca. Os trogloditas a que Prometeu concede a "humanidade" não passam de bestas, ou pior, insectos. "Viviam em cavernas, nas eternas trevas dos profundos antros, como formigueiros fervilhando. Faziam tudo sem entendimento, até eu lhes ensinar o nascimento e o acaso das estrelas mais difíceis de avistar"... Assim, logo à partida, o que o Filantrópico Titã produz não é uma criatura ad nihil (como certos demiurgos criacionistas), mas uma forma de ser superior. De certa forma, Prometeu protagoniza o proto-educador ou proto-pedagogo (aqui, educação e pedagogia no seu sentido originário, nobre), e, desse modo, promove o troglodita a um ser capaz de civilização. Mas esta não enquanto verniz ou cobertura meramente confeita, mas como sentido, como arte de orientação através das letras, das estrelas e das virtudes. E com isso alcança dois portentos: por um lado desagrilhoa da matéria bruta um ser pensante (e por isso tem que pagar, de modo a reequilibrar o cosmos, com o seu próprio agrilhoamento); por outro, liberta um - como evoca o coro da Antígona, que ainda reverberará no século XX num dos últimos grandes textos da Filosofia, a "Introdução à Metafísica", de Martin Heidegger) - "deynos", ou seja, o mais terrível dos prodígios do mundo - um ser, que Sófocles descreve logo de contínuo como "aquele que faz o seu caminho pelo meio dos abismos" (o ser que navega, enfim). O homem, em suma, potencia-se como um ser perigoso, porque doravante, armado da múltiplos expedientes, capaz do bem e do mal.  Que nasce, e cresce desde esse berço mítico, sob a vigília perpétua de duas esfinges à cabeceira: a Sabedoria; e a Hubris. A sabedoria que o eleva, ampara e guia através o abissal caminho; a Hubris que o embosca,  atrai, vertiginosa, e o arrasta à perdição e ao naufrágio. E eis o paradoxo vivo, o paradoxo humano: o passageiro da Bênção e da Maldição, do espírito subtil e da matéria bruta, do cosmos e do labirinto. O Antropos, no fundo, aquele que transporta em si a contradição - a antro onde retrocede e a criança que do antro se evade e para fora do antro conduz. A arte  de Prometeu tem um nome: antro-paideia.
Ora, o aviso da Antígona é solene e perdura: «Embora invente sábios e úteis expedientes para além de toda a esperança, caminha necessariamente para o mal ou para o bem. Quando ele respeita as leis da pátria e dos númenes, engrandece a cidade; mas torna-se a sua ruína quando a soberba o empurra para o mal. Não esteja a meu lado, não fale mais comigo quem actua de tal forma.»
Da mesma forma, tornando agora a Polifemo, este representa, em monumento avantajado, esse trogloditismo a que o Antropos, tomado da Hubris, retrocede e reflui, denegando e desprezando toda a dádiva benévola que originalmente o acendeu, melhor dizendo, o animou. Trata-se, em bom rigor, duma desalmação ou desinspiração exorbitada; um completo, desmedido e arrogante embrutecimento. Polifemo afirma-o sem rodeios: "Os Ciclopes não temem nem Zeus (...) nem os outros deuses bem-aventurados! A todos eles somos superiores!" E antes, já Homero descrevera: "Cíclopes, homens soberbos e sem lei, mas tudo lhes nasce espontaneamente, sem ser preciso semear nem lavrar..." *
Digamos então que o Ciclope representa o "troglodita", o primitivo antropóide no seu estado de pura "natureza", absolutamente silvestre e asselvajado. Por um lado, faz corar Rousseau; por outro, anuncia toda a vasta turba de utopistas ateus do nosso tempo. A subsistência cai-lhes do céu e a sua soberba superioridade em relação aos deuses nem se discute. Bem como a antropofagia mental e económica, encetada num labiríntico antro chamado Mercado ou Estado Socialista, em que invariavelmente descambam. De resto,  da mesma raiz que "trwglhe" (cova, buraco), trwgw significa, muito alusivamente, "devorar", "comer cru". O que assinala muito bem um dos vícios psico-alarvajantes desta troglo-gentalha, sempre disposta a ingurgitar toda a espécie de porcarias ou mixórdias sem qualquer tipo de preparo, asseio ou tempero.
E tanto assim, que é muito sugestivo e emblemático, o diálogo entre o herói e o megabruto, falando aquele pela Sabedoria e este pela Hubris: o primeiro declara-se, humildemente, "ninguém"; o segundo proclama-se, jactantemente, como sobranceiro aos próprios deuses. É claro que o destino da monocularidade ímpia é a cegueira fatal, tanto quanto a ciclopeia (que é como se intitula a Rapsódia IX da Odisseia), tem vários refluxos menstruais (ou recorrências fétidas) ao longo da História. Um bastante conhecido e particularmente cavernosos ficou conhecido como "en-ciclope-distas". Nunca enganaram ninguém. Só mesmo quem adora encafuar-se em buracos. Tudo indica que é ciclico. E polifemico... Eu traduzo: Poly-fhemos significa, no grego, muito sábia e lucidamente, "abundante em vozes", "muito propalado", "muito louvado", "de múltiplos rumores". Há alguma relação entre o poly-fhemi e o pro-fhemi? A mesma que entre o polifemo e o profeta. Aliás, acontece até, como está bem documentado, na variada "ciclopeia moderna", quando Polifemo e Profeta se acumulam na mesma pessoa. Exemplos: Locke, Rousseau, Marx, Malthus, Darwin, Husserl, Freud, Lenine, Jabotinsky e um mais recente, singularmente rafeiro: Leo Strauss. Enfim, a lista está longe de ser exaustiva. Actualmente, há mesmo uma tribo que os produz em série. 

Falta falar dos dois outros episódios da Odisseia que muito me sensibilizavam: quando Ulisses arma o arco; e quando o cão de Ulissses, Argos, o reconhece e morre logo de seguida. No primeiro caso, era o regozijo mais completo com a vitória e a justa vingança do bem. O herói saía do labirinto, e saía em glória. Aquilo enchia-me de felicidade. Inflava-me também duma força, coragem e razão inauditas. Estava explicado o mundo. Mas o segundo caso, esse, era mais complicado. Muito complicado, mesmo. A ver se consigo explicar isto...
A minha mãe, além de me transportar na barriga, ensinou-me muitas coisas (foi o meu Prometeu, de certa forma): ensinou-me as letras, os números, as estrelas e ensinou-me um outro preceito típico daquelas épocas obscuras: um homem não chora. Muito menos um aprendiz de herói. Portanto, não me restava alternativa. Posto perante aquela tragédia do cão do herói, eu tinha que ir rapidamente esconder-me num sítio secreto e, esse sim, muito obscuro, deveras... para poder cobrir-me de vergonha e... chorar. E chorei.

Só mais tarde, quando li a Odisseia inteira, comprovei que afinal o Herói, o maior de todos, também chorava (enfim, não era português, temos que compreender). E chorava tanto que o mar de Ulisses, como o mar de Jesus, ou o mar dos portugueses, mais que um mar de façanhas, prodígios e glórias, é, abissalmente, um Mar de Lágrimas. 




segunda-feira, abril 01, 2024

Esperança e Nostalgia (através do Labirinto)

 



A Viagem mais famosa do Cosmos, paradigma cultural de todas as subsequentes peregrinações poéticas, fê-la Ulisses no seu regresso a casa, após a Guerra de Tróia. Homero contou-a aos gregos; os gregos legaram-na à humanidade, e dela emergiu uma civilização. O itinerário dessa viagem faz-se entre terras, ilhas e portos, mas através do mar: é, pois, uma viagem essencialmente marítima. Nesse sentido, é uma digressão sobre uma superfície perigosa e instável, feita de abismos, vertigens, monstros, falsos paraísos e forças sobrenaturais que, de certa forma, encontra o seu clímax, na descida ao Hades, o lugar dos mortos. É, por conseguinte, uma aventura entre mundos  -  o estrangeiro e o de casa, o ignoto e o familiar, o dos antepassados e o dos vindouros (ou os mortos e os vivos). Por isso, além de profana, é uma demanda religiosa: reúne, religa, confere sentido, entre a origem e o fim - o destino da viagem é reencontrar o seu ponto de partida. Ulisses percorre o labirinto, só que não se trata do dédalo inventado, mas daquilo que ele simula: o caos enquanto não mapeado com o fio do sentido. Como todos os grandes heróis civilizacionais, Ulisses desvela e descobre o cosmos. Percorre o labirinto, mas fá-lo ao leme dum navio. No que inspirará os gregos tanto quanto um outro povo meridional muitos séculos adiante: os portugueses. Eu próprio, pelos meus oito anos, deslumbrei a minha professora primária quando, a propósito duma redacção sobre a nossa terra natal, rompi nos seguintes termos: "A minha terra foi fundada por Ulisses, o Navegador..." e por aí adiante. Consegui, desde essa data, conforme bem me lembro, acumular três cargos:  o de melhor aluno e de maior arruaceiro dos recreios (que já era antes) com o de favorito da professora (que passei a ser). O facto de conciliar na mesma pessoa o melhor aluno e o maior bruto, de resto, já manifestava a minha tendência precoce para o paradoxo. Conseguia estar horas a ler cartapácios sobre a Grécia antiga (no que, dizem, entrava num estado de alheamento total), e conseguia, com não menor dedicação, andar horas à porrada, sobretudo com o Moreira, o tipo mais corajoso que conheci, pois perdia sempre e nunca desistia. Um verdadeiro Heitor, Deus o guarde!... Contudo, se repararem bem, há uma lógica contundente nisto tudo: era Ulisses, na sua dupla natureza que me inspirava - por uma banda, o Ulisses sagaz da Odisseia; por outro, o Ulisses beligerante e pugnaz da Ilíada. Ora, as emulações, por mais precoces e minorcas que sejam, devem ser sérias, devem ser completas. 

Mas a viagem de Ulisses é sobretudo simbólica: a odisseia significa e profetiza todas as odisseias (desde a vida humana às aventuras cósmicas de cada povo). Funciona como uma espécie de metacartografia íntima da existência. O próprio cristianismo, na figura do seu Fundador, cumpre a odisseia: oriundos de Deus, a Ele devemos regressar. É o próprio Deus que abre o caminho, dando o exemplo. A Fé, que Jesus nos revela e disponibiliza, é a confiança num regresso a casa - é o fio (o con-fiar) do sentido que nos permite vencer o labirinto. Só que este, doravante, como mar da alma humana, tão inçado de abismos, monstros e perigos quanto o mar de Ulisses. A saída, não obstante, coincide com a entrada: a morte e o nascimento apenas prenunciam a perfeição do círculo... A eternidade, onde tempo e espaço se geminam e perpetuam. 

O fio da Fé é também o fio de Penélope e da Moira que tece: Penélope que aguarda, o Destino que concede e a Fé que conduz. A partida, a viagem, o regresso. Os gregos chamavam "nostos" à volta, ao caminho de regresso; e "algos" à dor. A Fé de Ulisses é a de todos nós: a saudade de casa. A Fé é uma nostalgia, como a nostalgia é o anseio excruciante, doloroso de voltar à pátria. Não se explica: sente-se. Bem entendido, a Ítaca de Cristo é o Céu.

Entretanto, também o ponto de partida anseia pelo regresso daquele que partiu: move-o por atracção, quer dizer, move-o à distância, ao longe, pelo coração - como o Deus de Aristóteles faz mover o cosmos. A suprema felicidade coincide assim com a extrema gravidade. É a mais séria das seriedades. Jesus chama-lhe amor, como já Aristóteles tinha chamado. O mesmo amor que compele Ulisses: amor à mulher, aos filhos, aos pais, à Ítaca onde reinou e voltará a reinar. Antigamente, isto tinha um nome síntese: amor à Pátria. Por outro lado, Ítaca não é Ítaca sem Ulisses; Ulisses não é completamente Ulisses sem Ítaca. A Esperança e a Nostalgia espelham-se no fazer e desfazer das noites e dias, como no tecer e destecer do tapete de Penélope. Falta Ulisses a Ítaca, tomada pela ilegitimidade e a delapidação dos pretendentes - o falsos candidatos à pretensa eleição duma Penélope desamparada. Penélope que, ao contrário de Clitemnestra, se mantém fiel - nunca perde a fidelitas nem o fio. No fundo, pressente-se a ponta desse mesmo novelo que conduzirá, nalgum dia, Ulisses até ao desenlace final - onde a Esperança e a Nostalgia se reencontram e se curam mutuamente. Ulisses também significa o portador da cicatriz e o que cicatriza; ele, o herói, que, para lá da aparência, se identifica através da cicatriz. Como Cristo mostrará as cicatrizes a Tomé. .

Mas se Penélope tem o fio, Ulisses opera um outro instrumento essencial à viagem, à náutica: o leme da nau. Ulisses é o chefe e o piloto da expedição. Cybernos, diz-seno grego clássico. A direcção e orientação da nave é o seu mister e a sua excelência. Na realidade primeira e original, um cybernautes - o cybernos da naos. Através de Cyla e Caribdis, do Canto das Sereias, da suinicultura de Circe, do matadouro de Polifemo, de praias e naufrágios, e até da Olissipo dum miúdo excêntrico de milénios adiante, Ulisses terá alguma vez perdido o rumo, mas nunca perdeu o fio nem o fito. E num dia perfeito como só as histórias reais alcançam, desembarcou mendigo no mesmo lugar donde outrora partira rei. Todavia, sob a máscara do tempo e da viagem, trazia consigo, intacta, a força da autenticidade e o cybernos que a Ítaca faltava. Uma Ítaca que, finalmente, recuperado o seu chefe e piloto, podia levantar âncora e zarpar pela Eternidade. Onde eu, pelos meus oito anos, juro, a vi passar.

Agora a chave: Sabem qual é a palavra que no português, na língua que nos resta, traduz e materializa, ainda hoje,  integralmente, e apenas aí, cybernos

- Governo.



PS: O que distingue o Mito da História é que aquele nunca perde a actualidade nem a autenticidade. A História trata da encadernação de versões de relatos; o Mito trata da verdade eterna. E tanto assim é que ainda hoje, nós, portugueses derradeiros, experimentamos uma "Ítaca" tomada pela ruína e devassidão de pretendentes, por via da ausência do Cybernos autêntico. Lá está, porque também, ao contrário da História, que passa, o Mito permanece. E permanece vivo. Quanto ao essencial, aprendi com o Moreira: nunca desistir, nunca perder a fé. E nisso, proclamo ao mundo, venceu-me: era mais valente do que eu. Eu era apenas mais forte. 



sábado, março 30, 2024

A Passagem da vida







 

« (...) a prática cristã, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, apenas isso é cristão... Uma tal vida é, hoje ainda, possível, e para alguns necessária: o cristianismo autêntico, o cristianismo primitivo, será possível em não importa qual época... Não uma crença, mas um fazer, acima de tudo muitas coisas a não fazer, um modo diferente de ser. (...)

A vida do redentor nada mais foi que essa prática - a sua morte nada mais foi também que ela... Não necessitava já de qualquer fórmula ou qualquer rito nas suas relações com Deus - nem sequer a oração. Liquidou as contas de toda a doutrina judaica da penitência e da reconciliação; reconhece que é unicamente a prática da vida que permite o sentir-se "divino", "bem aventurado", "evangélico", sentir-se a cada instante "filho de Deus". Nem a penitência, nem a "prece pela remissão" constituem caminhos para Deus: só a prática evangélica conduz a Deus; ela, justamente, é "Deus"! - O que já não estava em circulação depois do Evangelho era o judaísmo das noções de "pecado", "remissão dos pecados", "fé" - toda a totalidade dos ensinamentos da igreja judaica era negada na "boa nova".
O profundo instinto do modo como se deve viver para o homem se sentir "no céu", para se sentir "eterno", enquanto que qualquer outro comportamento o impede de se sentir "no céu": é essa a única realidade psicológica da "redenção". - Uma conduta nova, não uma nova crença...»

                 - Fredrisch Nietzsche


À maneira dele, muito pouco linear, nem sempre sensata, Nietzsche também, lá bem no fundo e na essência, era religiosamente aristotélico. Quer dizer, entendia o Bem, no caso humano, como um agir, uma forma de ser na vida. Não uma estrita crença, mas uma ética plena. Aristóteles vislumbrava na contemplação - a acção pura, "divina" - a forma mais nobre da felicidade humana; Nietzsche, na senda de Shopenhauer, equiparou essa mesma felicidade contemplativa à Arte. Talvez porque esta demandasse, por assim dizer, um nível excelente da própria beleza: o sublime. Convém, para o caso, ponderar o seguinte: o entendimento (mai-la sua excrescência, a razão) impedem-nos de apreciar a aceder a esse mesmo grau magnífico da Filosofia ou da Arte. Que, a limite, tem um nome: Deus. Atinge-se apenas enquanto antes do entendimento, na sensibilidade (e aí, a Arte), ou para lá do entendimento, na inteligência (e aí, a Filosofia). 

Quando entramos numa catedral ou escutamos a música de J.S.Bach sentimos - pelo menos aqueles dotados de sensibilidade para isso - Deus. Uma emoção ou comoção profundas, pungentes, inexplicáveis. Sendo certo e evidente, todavia, uma coisa: foi por uma acção humana, de arquitectura e música, que se abriu essa passagem, essa ponte. Um ser capaz desse prodígio não está só; nem temos o direito de nele perder  a Esperança.

Por um instante, em certas passagens sublimes desta vida, é como se Deus nos emprestasse o Seu coração, os Seus ouvidos e os Seus olhos. Com lágrimas e tudo

Uma Feliz e Santa Páscoa para todos, com uma dedicatória especial à minha leitora Fernanda.




quinta-feira, março 28, 2024

Entre a Inércia e a Mentira




 Segundo vou escutando, em repetidos alarmes radiofónicos, o país resvala do desgovernado para o ingovernável. Não sei se me aflija, se me marimbe. Confesso que não vislumbro com clareza a gravidade do caso. Tratar-se-á duma degradação ou dum avanço? Dizia o Frederico Nietzsche que "vale mais um mau sentido do que sentido nenhum". Bem, isto, assim a frio, além de não constituir dogma, também suscita algumas dúvidas. Desçamos a casos concretos... Por exemplo, eu, ou um dos caros leitores (quando eu digo "leitores" enuncio à maneira antiga, vertebrada, significando leitoras e leitores - as senhoras primeiro, sempre e soberanamente, claro está) entre estarmos parados ou corrermos a atirar-nos a um poço, ninguém decerto nos convencerá que a segunda opção é preferível à primeira. Ou estarmos quietos e andarmos a rabiar que nem baratas tontas, também julgo ser indiscutível ficarmos sossegadinhos. É claro que ficarmos quietos para sempre, a limite, também não é uma opção viável: significaria que estávamos mortos ou tetraplégicos. Portanto, o Frederico que me desculpe, mas este seu aforismo, embora até soe bem como poesia, carece, ele próprio, de algum sentido. Como alternativa séria (dito à moda de Aristóteles) não funciona lá muito bem, ou funciona tanto quanto aquela capciosa fórmula do "a democracia é o pior dos regimes excepto todos os outros". Se tanto, pertence mais à índole histriónica. A questão, de resto, é de fundo e essência: nenhum mal pode ser convertido retoricamente num bem. Se é um mal, não presta. O contentar-me com um mal menor é o primeiro passo para convocar um mal maior. Não posso entender como uma opção deliberativa o "ser esquartejado e frito" ou "ser apenas frito por inteiro". Não me está a ser concedida uma possibilidade de escolha: apenas sou coagido sob ameaça. Assusta-me mais, muito provavelmente, o ser esquartejado. Por outro lado, tornando ao mau ser preferível ao nenhum, também não é ontologicamente aceitável: o mal e o nada são indistintos - o mal traduz precisamente uma ausência: a ausência de bem. Um mau sentido é um sentido que conduz ao nada, por conseguinte, nem sequer é um sentido, apenas a sua falsificação. "Mau sentido" é uma contradição em termos (pois, um oximoro). Assim como um mau regime não pode ser melhor que regime nenhum: ele próprio é regime nenhum. Sendo mau, é nada. Em que é que um nada é pior ou melhor que outro? Além disso, um mau regime tão pouco pode ser comparado como um "regime qualquer" - dizer um "qualquer regime" ou "nenhum regime" é idêntica, na medida, em que de nenhum regime específico se trata. De resto, a Democracia onde? Quando? De que modo? Para quem? Com que fim? Não existe "democracia em abstracto" (excepto, eventualmente, na república angélica). Se falamos num regime com aplicabilidade para pessoas é de realizações concretas neste mundo, entre determinadas pessoas, gentes, povos que importa saber. Que é necessário investigar e aferir. Por conseguinte,  se alguém fala em democracia, um conceito estritamente político, em termos metafísicos e, pior, neo-religiosos, então esse troca-tintas desautoriza-se, empaspalha-se e cobre-se de ridículo. Se são aos milhares, estes papagaios, então pior não apenas um pouco.  São tantos que viraram praga? Todas as pragas passam. Todavia, nem são os ruídos que movem o mundo, nem, tão pouco, o ruído apaga a verdade das coisas: a democracia não é um dogma. Não temos que acreditar ou deixar de acreditar nela. Nem os exibicionistas crentes são beatos automáticos prometidos à canonização; nem os descrentes podem ser degradados a hereges e ímpios que urge excomungar do demo-evangelho.

Mas voltando à fórmula...

Podemos substituir o sentido pelo governo? Um mau governo é melhor que governo nenhum? É melhor sermos desgovernados ou ficarmos ingovernáveis? - dito noutras palavras mais radicais: é melhor sermos desgovernados ou não nos deixarmos desgovernar? Reparem: um país desgovernado é um país sem governo. Porque um governo que não realiza enquanto curador do bem comum é um não-governo (um desgoverno, enfim). Vou aqui atirar-me à miséria, ao descalabro moral e à dependência múltipla, compulsiva e variada. Alguém me dirá que estou a governar mal a minha vida?  Todos antes certificarão é que não tenho  governo nem tino nenhum nela. Talvez uma meia dúzia, mais amigos das polémicas ou dos jornais, obstarão em contrapartida que sim, que tenho um governo legítimo, embora péssimo, procurador não do meu bem, mas do meu completo mal e ruína. E isso, a limite, até é bom, porque atesta da minha santa liberdade e do meu pleno direito electivo. Um terceiro elemento, inclinado a bizarrias ainda mais avantajadas, argumentará mesmo, em prol do descarrilamento geral, que isso é até racionalmente justificável porque, segundo um delirómetro de sua invenção, tal me granjeou grande prazer sexual e voluptuosa gratificação nalgumas partes. A questão é que eu não preciso da liberdade para me atirar duma falésia para nada. Um projecto de morte não é um projecto de vida. 'Bora lá rebentar com Portugal para demonstrar ao mundo como somos um povo livre. Num belo dia, acordamos e identificamo-nos não como homens, mas como gaivotas. E toca de nos atirarmos pela janela. A pretexto de que vamos voar e maravilhar o mundo com tal perícia inaudita. Navegadores do antanho, pasmai e sumi de vez: eis que os voadores do futuro descolam!  Já não somos orgulhosamente sós, que maravilha, que esplendor! Pois não; virámos orgulhosamente doidos! Militantemente malucos! Alarvemente suicidas! Não se tratou, nem trata, de uma manifestação de virtudes, cívicas, morais ou o que seja, mas apenas do oposto, da ausência de tudo isso. O que não resulta numa pessoa, muito menos resulta num povo, a não ser que este se resuma e nadifique a uma resma de mentecaptos, um arraial de chanfrados e uma quadrilha de bandidos.

Eis-nos, pois, chegados à presente nacinha rectangular. Julgo não exagerar nem faltar à realidade se disser que se divide em duas porções: uma, silenciada, que aguarda, há cinquenta anos, por alguma espécie de governo; e outra, ruidosa, arrotante, que rabia, frenética e tontamente, ensaiando as mais variadas fórmulas de desgoverno. A primeira está a ficar impaciente; a segunda está a ficar gasta. Sinais evidentes de que nada aqui dura para sempre: nem a Inércia, nem a Mentira.