sexta-feira, maio 30, 2008

O Enviado Especial

«U.S. Sen. Joseph I. Lieberman will speak to a pro-Israel group this summer whose leader, the Rev. John C. Hagee, has said Hitler was sent by God to force European Jews to move to Israel.»
(...)
«Hagee and his group, Christians United for Israel, are fierce supporters of the Jewish homeland and opponents of anti-Semitism.»


A lógica dos psicopatas evangélicos, com o seu Jesus portátil reforçado agora dum Deus de Loja de conveniência, apresenta-se tão coxa quanto o seu real patrocinador. Pois, se, como sustenta a alimária, Deus enviou Hitler com a missão de enxotar os judeus europeus para a Palestina, então o enviado falhou em larga escala. Só uma minoria lá chegou. A grande maioria, ou não chegou a sair da Europa (os menos afortunados e abastecidos), ou transviou-se (a peso de ouro) em direcção aos Estados Unidos. Provavelmente, o pastor Hagee deve andar a rezar, todas as noites, para que "Deus" mande outro enviado especial para persuadir e recambiar, duma vez por todas, estes relapsos tresmalhados. Admira-me que, sendo os judeus tão inteligentes e geniais, ainda não tenham percebido o alcance das taras desta besta.
Se bem que quanto ao facto do sionismo ter sido, desde sempre, turvo e perverso cúmplice do nazismo, é uma evidência que alguns judeus amplamente reconhecem e denunciam. Como, por exemplo, estes. Ou estes.

Em todo o caso, Hitler até concordava com o aberrante pastor. Também se considerava um enviado da Divina Providência e também tentou despachar os judeus em boa velocidade para a Palestina. E ainda para lá enviou uns quantos. Até que os queridos ingleses barraram o acesso. Foi só a partir daí, segundo reza a lenda, que o "enviado especial" se viu na contingência de prescindir de estações intermédias e começou a enviá-los directamente para o Céu. Ou para os inferno. Conforme -há quem diga - seguiam para os Estados Unidos ou para junto do seu Criador.

Épocas de ilusionismo

«Uma agressão contra a inviolabilidade, digamos, mesmo a santidade da habitação teria sido impossível por exemplo na velha Islândia nas formas que assumiu em Berlim de 1933, como pura medida administrativa no meio de uma população de um milhão de pessoas. Como excepção louvável, merece menção um jovem social-democrata, que fuzilou à entrada do seu andar uma meia dúzia dos chamados "polícias auxiliares". Esse homem continuava a participar ainda da liberdade substancial, na antiga liberdade germânica que os seus adversários precisamente festejavam. Naturalmente, ele também não tinha aprendido isso no seu programa partidário. Em qualquer dos casos, não pertencia àqueles de quem Léon Bloy disse, que correm para o advogado enquanto a mãe deles está a ser violada.
Se, além disso supuséssemos que em cada rua de Berlim pudéssemos contar nem que fosse com um único destes casos, então as coisas teriam tido uma feição diferente. Épocas em que a tranquilidade perdura favorecem certas ilusões de óptica. A elas pertence a admissão de que a inviolabilidade da habitação se funda na Constituição e é assegurada por ela. Na realidade, aquela funda-se no pai de família, que, acompanhado pelos seus filhos, aparece à porta com o machado. Só que esta verdade nem sempre se torna visível e também não deve proporcionar uma objecção contra a Constituição. É válida a antiga palavra "É o homem que defende o juramento, não o juramento que defende o homem". Reside aqui um dos motivos pelos quais a nova legislatura depara com uma simpatia tão escassa da parte do povo. O que se diz na Constituição sobre o domicílio é agradável de ler, mas vivemos em tempos em que um funcionário está sempre a passar a outro o batente da nossa porta.»

- Ernst Jünger, "Tratado do rebelde"

quinta-feira, maio 29, 2008

Ai dos pobres!

Em 1699, no relatório para a Comissão do Comércio, Locke prescrevia: "Os vagabundos válidos de catorze a cinquenta anos, apanhados a pedir, deveriam ser condenados a servir três anos na Frota, para os que vivem nos condados junto ao mar, ou a trabalhar três anos na workhouse, para os restantes. Os pedintes com menos de catorze anos deveriam ser chicoteados e colocados numa escola de trabalho."»

A democracia liberal, na figura do seu pai fundador, mai-lo seu tótem mercantileiro, consagra aqui toda uma receita matricial e imarcescível.
Toda a riqueza deve ser louvada; e toda a pobreza deve ser punida.
Do bárbaro "ai dos vencidos" chega-se, assim, ao burguês "ai dos pobres!"

Holocoiso patenteado

Defronte ao memorial do holocausto, em Berlin, foi agora inaugurado um memorial às vítimas gays do Terceiro Reich. O monumento - um caixote gigante com uma escotilha, através da qual o passante pode espreitar um filme de dois mariconços a beijarem-se - está já a gerar controvérsia e protestos. Por parte das lésbicas, que se proclamam discriminadas no filme; e por parte dos exclusivistas pesporrentes do costume que "argumentam que a comemoração das vítimas gays diminui a memória dos judeus massacrados".
Tudo indica que este acesso de ciúme tribal necrómano se vai agravar consideravelmente lá para o fim do ano, quando for erigido o memorial aos ciganos. E ainda ficam a faltar os deficientes mentais.
A este ritmo, não me espantará se depois de pagar pelas vítimas do holocoiso, a Alemanha ainda tiver que pagar pela afronta tripla e reiterada às vítimas do holocoiso. Por esta altura, se bem os conheço, o anti-semitismo está já a ser enriquecido com mais um conceito mimoso: a "comemoração de outras vítimas que não as judaicas".
Até porque, em matéria de "vítima", a embalagem está comercialmente patenteada. No mínimo, vão ter que pagar "franchising".

quarta-feira, maio 28, 2008

Choque tecnológico - 2. Burrex simplex

Futuro




«The world’s first commercial compressed air-powered vehicle is rolling towards the production line. The Air Car, developed by ex-Formula One engineer Guy Nègre, will be built by India’s largest automaker, Tata Motors. »

Contra os cabrões, pedalar, pedalar!



Deixem-se de lamúrias e comecem mas é a pedalar!...

Larguem a droga, pá.

Concepções antagónicas

1. «Polícia iraquiana deteve seis menores que se preparavam para ataque suicida».
2. «ONG e capacetes azuis abusam de menores»

Confrontando as duas notícias em epígrafe, não é difícil imaginar um diálogo do estilo:
- "Que selvagens desumanos! A armadilharem assim as crianças!..."
- "Está uma pessoa no felatio e o querubim aciona o cinto de explosivos, já viste a infâmia?!..."
- "É inadmissível!... Um tipo vai para lhes deflorar o rabinho e descobre o canal ocupado por um cartucho de dinamite, previamente artilhado com detonador de pressão... Meu deus, que cenário arrepiante!»
- "Só vejo um antídoto: vamos ter que desminá-los antes de enrabá-los. Uma chatice.»

O diálogo, naturalmente, podia ser interpretado por Capacetes Azuis, Ongoisos, diplomatas ou certos luso-bloguistas tão ufanos da nossa superioridade moral.

Tratamento para a dismenorreia


Eu já uma vez aqui expliquei que "interesses" têm os países (e as mafias que os telecomandam e neles se governam); os paisanos têm "apetites". Se bem que nos últimos tempos, e a um ritmo deveras alucinante, os interesses degenerem cada vez mais em avidezes e os apetites em caprichos ou birras.
Mas esta historieta medonha vem instaurar todo um admirável novo mundo de perspectivas mirabolantes. Cito apenas duas: se pode mudar de sexo com 12 anos não pode votar para mudar de governo? Se é do seu "interesse" mudar de sexo, não poderá ser do seu interesse prostituir-se ou contrair amante?...

terça-feira, maio 27, 2008

Ecumenismo radical



PS: Quando chegar a vez dos judeus, convém encurtar a corda em dez centímetros senão batem com a penca no chão. Com os muçulmanos não há problema: também a possuem protuberante (ou não fossem primos), mas têm-na devidamente calejada de picotar com ela todos os dias. Quanto aos ateístas, não esquecer apenas uma pequena adaptação: em vez de arnês, saltam de gravata.

A Síndrome de Jerusalém

Segundo o Dr. Abu Nasser, é um «estado psicótico que afecta os peregrinos de Jerusalém ou da Galileia. Induz um êxtase religioso que os avassala. Sentem-se eufóricos ao verem-se rodeados de tantos lugares santos. Caracteriza-se por megalomania e ilusões de grandiosidade. Os atingidos por esta bizarra mania acreditam frequentemente que são o Messias, Jesus ou o Mahdi, dependendo da sua religião ou seita. Tentam reconciliar Judeus e Palestinianos, falam com Deus e acreditam genuinamente que Ele lhes responde.»
Vem isto a propósito dum turista americano, devoto crente, que, após dez dias de incubação, entendeu saltar alucinadamente dum edifício. Era por certo um daqueles fervorosos evangelistas com linha directa ao Além. A voz hipnótica que o poderia mandar pegar num machado e chacinar -com frenesim desatado - o primogénito e/ou vários familiares avulsos, desta vez, quiçá em atenção à geografia, terá sido menos exigente, limitando-se a recapitular-lhe as escrituras:
«Se tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito: Darás a teu respeito ordens aos seus anjos; eles sustentar-te-ão nas suas mãos para que os teus pés não se firam nalguma pedra.» (Mateus, 4:6)
Ele não era mas pensava que era. Eventualmente, destilou das meninges uma outra extrapolação ainda mais audaz: "desta vez atiro-me e não acabo na cruz".
Não é por acaso que os maiores especialistas da lógica são os malucos.

Entretanto, se para este cristianismo portátil com auricular e controlo remoto é coisa trivialíssima escutar vozes, já para o comum dos mortais será sempre mais plausível falar com Deus do que reconciliar Judeus e Palestinianos. Mais plausível e, apesar de tudo, mais saudável. Porque para cismar naquela basta experimentar, por exemplo, um breve delírio ou alucinação; enquanto para teimar nesta é preciso estar mesmo doido varrido de todo!
Sem paliativo nem cura.

O liberalismo explicado aos otários - 2.

O aumento desenfreado dos combustíveis é um problema dos portugueses, seja a título de indivíduos ou empresas. O défice é o exclusivo problema do governo. Cada qual trata do seu.

segunda-feira, maio 26, 2008

O liberalismo explicado aos otários - I

É claro que o Governo não deve intervir artificialmente no preço dos combustíveis, que horror! Essa é uma competência exclusiva dos especuladores internacionais.

O Choque tecnológico

«Agricultores voltam a usar a força animal.»

Agora que a agricultura alcançou o nível da Administração Pública e do Parlamento, o país vai finalmente reentrar numa nova época de pujança e opulência.
Força, Portugal!, digo, força, animal!...

Narcisocracia

Somos uma nacinha em banho-maria. A derreter em lume brando. Mergulhados numa democracia a todos os títulos engenhosa e notável: temos governos que desgovernam e oposições que se desopõem. Que regime, afinal, será este? Se é democracia, escapa a todos os paradigmas conhecidos: não é popular, nem liberal. Muito menos grega. A chamar-lhe alguma coisa, fora o palavrão que geralmente merece, teremos, por simples amor à realidade, que chamar-lhe democracia autista ou narcisocracia. Um regime em que os governantes se governam e os opositores não se opõem ao governo porque estão muito ocupados a oporem-se uns aos outros. Quer dizer, o governo governa-se a si mesmo e as oposições opõem-se a si próprias.
E o mais espantoso é que em redor deste colossal vulcão de coisa nenhuma, alucinados com a mais diversa ordem de micro-roedores enfezados que a montanha, a cada minuto - pelos interstícios do vácuo - ameaça parir, zumbem e abivacam, todos os dias, sem pausa nem fastio, enxames de jornalistas, comentaristas e blogadeiros, cardumes de politólogos, sociólogos, psicanalhistas e outras excelsas tricotadeiras da palha, cada qual mais buliçosa e compenetrada, na análise convulsiva do Chico, do Manel (agora também Manela) e do Francisco, traduzidos directamente do angolinglês das respectivas eructações, babas e demais decantações, estalactites e alambicagens do momento. Mais que espantoso, é fantástico!
Dir-me-ão que gastar o dia de roda de futebóis é estúpido. Sem dúvida. Se bem que gastá-lo de volta deste circo de abortos, toucinhos e carcaças não é apenas estúpido: é macabro, imundo, necrófago... e grotesco.

domingo, maio 25, 2008

A Chimpansoa e o chimpansamento



«Activistas pelos direitos humanos em Viena, na Áustria, pediram ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos o reconhecimento do chimpanzé Matthew «Hiasl» Pan como pessoa».

Realmente, não vejo onde resida a dificuldade. Quando há cada vez mais pessoas a reconhecerem-se como chimpanzés, é justo que se outorgue reciprocidadania ao pequeno símio. Registem-no pois na Conservatória, ao Mathias «Hiasl» Pan, e a seguir ofereçam-lhe um computador portátil, que é vê-lo a blogar num abrir e fechar de olhos. Hesitará apenas um breve instante, no arranque, entre futebol e ciência, mas, rapidamente, podem apostar, atira-se à segunda que nem gato ao bofe. (Ou melhor dizendo, que nem macaco à banana!... )
E é vê-lo a trepar pela epistemologística e a catar argumâncias e silogices num abrir e fechar de olhos.
Em resumo, pessoa é pouco. Entreguem-lhe logo a cátedra. Ou um ministério. Tanto faz.

sábado, maio 24, 2008

O Mercado a disfuncionar

As I noted in my earlier article, (‘Perhaps 60% of today’s oil price is pure speculation’), ICE was focus of a recent congressional investigation. It was named both in the Senate's Permanent Subcommittee on Investigations' June 27, 2006, Staff Report and in the House Committee on Energy & Commerce's hearing in December 2007 which looked into unregulated trading in energy futures. Both studies concluded that energy prices' climb to $128 and perhaps beyond is driven by billions of dollars' worth of oil and natural gas futures contracts being placed on the ICE. Through a convenient regulation exception granted by the Bush Administration in January 2006, the ICE Futures trading of US energy futures is not regulated by the Commodities Futures Trading Commission, even though the ICE Futures US oil contracts are traded in ICE affiliates in the USA. And at Enron’s request, the CFTC exempted the Over-the-Counter oil futures trades in 2000.

Another added turbo-charger to present speculation in oil prices is the margin rule governing what percent of cash a buyer of a futures contract in oil has to put up to bet on a rising oil price (or falling for that matter). The current NYMEX regulation allows a speculator to put up only 6% of the total value of his oil futures contract. That means a risk-taking hedge fund or bank can buy oil futures with a leverage of 16 to 1.We are hit with an endless series of plausible arguments for the high price of oil: A "terrorism risk premium;" “blistering” rise in demand of China and India; unrest in the Nigerian oil region; oil pipelines' blown up in Iraq; possible war with Iran…And above all the hype about Peak Oil. Oil speculator T. Boone Pickens has reportedly raked in a huge profit on oil futures and argues, conveniently that the world is on the cusp of Peak Oil. So does the Houston investment banker and friend of Dick Cheney, Matt Simmons.

sexta-feira, maio 23, 2008

Holohunger

Um artigo a não perder...
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São os paralelismos entre o capitalismo de estado soviético e o capitalismo de donos do estado americano, ou, melhor dizendo, entre o democapitalismo e o hagiocapitalismo. A diferença não está nos morticínios, nem, ainda menos, na respectiva monumentalidade horripilante, ou sequer na época da colheita. Nada disso; está apenas na leitura e interpretação dos fenómenos: no primeiro caso, é claramente um genocídio; no segundo, é, sem sombra de dúvida (e ai de quem alvitre o contrário!) a consequência natural da evolução económica e das leis do mercado. A distância exacta que medeia entre a diabologia e a hagiografia.
Enfim, é a velha história: no armário dos outros são esqueletos; no nosso são cabides.

O Triunfo dos suínos, ou Salsicharia elitista


»WORKING-CLASS students have lower IQs than those from wealthier backgrounds and should not be expected to win places at top universities, an academic has claimed.»
Quem o diz é Bruce Charlton, um psiquiatra evolucionista, na Universidade de Newcastle. Escreveu mesmo um paper explicitando a razão porque um número reduzido de estudantes oriundos de famílias pobres são admitidos em Oxford e em Cambridge: não é preconceito social, assegura, mas estrita falta de habilitação. O facto é que, garante e jura a patas juntas, "poor people have lower average IQ than wealthier people".

Apetece dizer que este neo-bruxo evolucionista também não profere estas inanidades por preconceito social: é mesmo falta de inteligência.
Tanto mais que basta uma miradela à realidade para constatarmos o alto nível de baboseira que esta teoria - tipicamente inglesa e liberal - traduz. O critério de acesso ao ensino superior no mundo actual - da Inglaterra à Patagónia, passando por Portugal - está bem à vista, é cada vez mais opressivo e não exige, em essência, aptidões de índole económica, mas, outrossim, de cariz mental. Ou seja, que os candidatos sejam ricos, semi-ricos, semi-pobres, remediados ou pobres, é-lhes irrelevante. Muito pouco lhes importa. O fundamental, o imperioso, a condição cada vez mais basilar e rainha de acesso é que sejam o mais imbecis possível; o mais amorfos e acéfalos que imaginar se possa. O que é perfeitamente compreensível: Só uma carniça bem passevitada e inhenha à entrada pode garantir chouriços da envergadura deste Bruce Charlton à saída.

quarta-feira, maio 21, 2008

A Zurrapa

Quando se pisa a uva, em pleno lagar, não é ainda vinho aquilo que se extrai. É apenas sumo. Dum sabor um tanto ou quanto adocicado e enjoativo. Se sorvido sem mais preâmbulos, pode causar dispepsias eméticas ou mesmo, em caso de abuso flagrante, diarreias agudas. O vinho, não restam dúvidas, requer um tempo de maturação. E também recipiente adequado – madeira ou cuba que lhe refine o sabor. É claro que também existe o vinho a martelo, que não requer nenhuma dessas minúcias. Basta ter a fórmula química, juntar os ingredientes, misturar bem –homogeneizar, estabilizar - e eis pronta para comercialização uma zurrapa altamente lucrativa. Mascara-se, trafica-se, o público agradece e o mercado justifica. Quem diz o vinho, diz a literatura. Só que em vez de uvas são palavras. No resto, os processos de fabrico são semelhantes. E os resultados também. Se a zurrapa a martelo arruina a figadeira, envenena o sangue e corrói as tripas, a zurrapa literária, paga a metro, vendida a granel, trata com idêntico malefício a mioleira. É um crime contra a saúde pública? Pois é. Mas se o público gosta, se o comprador prefere... A coisa, por via de dogma mercantil, ganha contornos de decreto divino.
Ninguém se lembra de constatar que o público gosta daquilo que lhe vendem e compra aquilo que a publicidade lhe sugere ou que a emulação compulsiva com o filisteu do lado implica. Escolhe livremente dentro duma oferta pré-determinada que alguém, entretanto, fez por ele. O público, em boa verdade, faz lembrar uma vara de suínos em regime de internato rigoroso: não é propriamente apreciador de pérolas. Prefere substâncias mais aconchegantes: baldes de lavagem, de sobras e refugos amassados em farelo. Seja na forma de livro, de disco, de filme, ou até dessa frioleira que uns cognominam de blogue e outros mutilam à inglesa, a atracção fatal é sempre a mesma: o semelhante atrai o semelhante, a mixórdia encanta a turba.
De facto, não consta que haja falta de compradores para a heroína, nem para telemóveis que fritam os neurónios, já de si depauperados e semi-liquefeitos, dos utentes. Nem, tão pouco, consta que haja, por esse mundo fora, falta de compradores para toda a espécie de bodeguices, pinchavelhos e contrafacções. Basta um relance pelos tops de todas as latitutes e mercados, para que quaisquer ilusões quanto à racionalidade –ou sequer decência – dos consumidores se dissipem. Não falta também quem argumente que essas obras barbitúricas (dessa tal lixeratura-light e não só) são beneméritas pois instauram o hábito da leitura em pessoas que, doutro modo, permaneceriam imunes aos encantos e delícias da bibliofagia. É um argumento deslumbrante. Com a mesmíssima lógica contundente, poder-se-ia alvitrar que as pastilhas de ecstazy criam o saudável hábito de ingerir vitaminas ou que a frequência de discotecas constitui a iniciação básica de qualquer melómano que se preze. Parafraseando o povo: o que é que o cu tem a ver com as calças? Ou dizendo à moda dos eruditos: em que é que a lobotomia a conta-gotas favorece o pensamento?
Até o velho e sábio aforismo de Lichtenberg reclama por uma actualização. Dizia ele: «Um livro é um espelho: se um macaco nele se mira não é, evidentemente, a imagem dum apóstolo a que aparece.» Pois bem, se isso no século XVIII era, regra geral, válido, neste nosso tempo, em contrapartida, o fenómeno complicou-se, os macacos sofisticaram-se. Se outrora se remiravam nos livros, agora, com petulância inaudita, vão mais longe: escrevem-nos.
Que, por isso, em vez de chacota recebam prémios é outro sinal dos tempos e da sua perfeição. Um macaco escrever um livro não deixa de ser uma proeza considerável. Mas mais extraordinário ainda é que cada vez mais macacas também o façam. Julgo que dentro em breve até os macaquinhos... A Agustina, confessou ela, com 14 anos já sabia que ia ser uma grande escritora. Há gente assim.
Nas leis da Sobrevivência, disciplina que em tempos leccionei, uma das regras elementares da comestibilidade dos frutos é observar os macacos: se os macacos comem é porque não é venenoso para o ser humano. Na literatura é precisamente ao contrário: se os macacos devoram é porque não presta. Mas a regra mantém-se: convém observar os macacos. Nem sequer é difícil: estão por todo o lado, verdadeiramente infestantes, sobretudo de roda de tops e tabelas de vendas ou de audiências. Há livros e autores que, graças a esse providencial expediente, evito com o maior dos cuidados. Com a mesma precaução, aliás, com que contorno os dejectos largados pelos animaizinhos de trela no glauco empedrado dos passeios. Ao cidadão humano é-lhe tão útil ler os primeiros como pisar os segundos.

Restemos em Paz

Dizem que estamos em 7º lugar no Global Peace Index. É mesmo o próprio GPI que o afirma. Mais mosquinhas mortas que nós só mesmo os Islandeses, os Dinamarcões, os Noruegoisos, os Neozelantes, os Japónicos e os Irlandinos. Aos poucos, embora continuemos à beira-mar plantados, lá nos vamos convertendo de jardim em cemitério. Também é florido, só que é ainda mais tranquilo. Todavia, não significa que estamos mais felizes: significa apenas que já nem estrebuchamos. Como diz o outro: somos de boa boca. Resignados a governantes com caras de cu e cérebros em conformidade.

terça-feira, maio 20, 2008

A Educação do Povo (rep)


As revoluções, mesmo quando antecedidas do prefixo “pseudo” (quase todas, portanto), fazem-se invariavelmente acompanhar dum cardápio de ideias peregrinas. Todas elas urgentes, todas elas magníficas, todas elas prioritárias. Uma dessas, aquando da primavera Abrileira cá do burgo, era: “temos que educar o povo!”
Uma série de romeiros iluminados, regressados dos exílios dourados na estranja ou dos piqueniques selvagens nas colónias, acolitados por chusmas de marxistas-leninistas instantâneos, em patrocínio da Farinha Amparo, tomaram-se de brios e entusiasmos, e propuseram-se ir educar o povo, a massa ígnara, bruta e analfabeta. Como sempre nestas aventuras, tomaram por princípios e axiomas meros preconceitos. A saber, 1. Que o povo era educável; 2. Que o povo queria ser educado; 3. Que eles reuniam e congregavam sob o substracto córneo das suas sapientes trunfas o know-how bastante para educar o povo. Havia também um eufemismo muito usual por altura destas balbúrdias: confundia-se “educação” com “lavagem ao cérebro”. Ou melhor, dizia-se “educar”, mas, no fundo, queria dizer-se “lavar”. Eles, abençoados pela História, tinham que desencardir o povo, que escorria merda e surro de quase cinquenta anos.
Ora, sempre que uma caterva de luminárias se decide a educar quem quer que seja, e sobretudo o “povo”, a primeira coisa que faz é arranjar um modelo (de preferência de importação, são sempre os melhores). Em se tratando daquela região europeia situada a oeste de Espanha, pior um pouco. A discussão, de séculos, nunca é “quem somos ou quem devemos ser”, mas sim “quem copiamos ou quem devemos copiar”. Se na aparência poderão passar por homens ao observador menos atento, na essência não enganam: são verdadeiros macacos de imitação. Encontrareis excepções a esta regra, mas, certamente, não nas elites –políticas, culturais, sociais, industriais –, lá do sítio. Aí, a macaquice, jurada e jactante, é condição de acesso. Vivem à coca da casa do vizinho e do que o vizinho lá mete. O país inteiro, por osmose, como os seus átomos constituintes, espia o resto do bairro/mundo e roi-se de inveja das Franças, das Escandinávias, das Inglaterras ou das Américas. Que povos educados, a transbordar civismo e boas maneiras! Que maravilha de pessoas! Que inteligências amestradas, atestadas de higiene e sentido do dever fiscal! Que trabalhadores ordeiros e laboriosos! A unanimidade quanto à superioridade do que é estrangeiro não podia ser maior. As divergências, essas, animadoras de polémicas virulentas e vociferações descabeladas, germinam desse dogma básico e encarniçam-se à volta da tal questão fulcral e de importância transcendente, ou seja: Sendo certo que só existimos se copiarmos, quem vamos então imitar. Isto predetermina tudo.
Por alturas da grande convulsão primaveril, a diferença é que o leque de escolha era ainda maior do que é hoje. Não só os belos povos ocidentais podiam servir de paradigma, como também uma série de outros, da Albânia à Cochinchina, despertavam a cobiça e os ímpetos emuladores dos fogosos endoutrinadores da plebe. O difícil era a escolha. Quase todos os povos eram melhores que o nosso, mais limpos e imaculados. Bastava ir ao Atlas geográfico. Ao nosso, repito, emporcalhava-o, inquinava-o até aos ossos – e à medula dentro dos ossos – a longa noite fascista. Era fascista como podia ser outra coisa qualquer. A palavra caíu-lhes no goto; dignificava e canonizava a sedição, beatificava o tumulto, justificava toda a parafrenália de medidas drásticas e emergências médicas. Também o povo, há que reconhecê-lo, era pólvora seca, anelante, à espera de faísca. Aliás, essa, é sempre a sua postura predilecta: barril a clamar rastilho. Ainda para mais, xenómano a ressacar desde há mais de quarenta anos sem o chuto de estrangeirina no dígníssimo cu, agradeceu, merejado em êxtase, mal experimentou o valente coice dos novos mestres. Foi vê-lo a levantar voo, retropropulsionado, como se foguetões o catapultassem. Foi à lua e veio. De caminho deu uma espreitadela à União Soviética e descuidou-se todo pelas calças abaixo. Ainda hoje tresanda ao susto, ainda hoje expia o trauma. A ideia de copiar a União Soviética, claro está, era a mais peregrina de todas. Por isso mesmo, à época, triunfou no concurso e surgiu, resplandecente, meteórica, como a mais fascinante e sublime. O povo soviético, na perspectiva de então, emergia nimbado de fulgores e virtudes, açambarcava medalhas olímpicas e exportava bailarinos. Era, pois, de todo conveniente imitá-lo o quanto antes.
O que sucedeu depois já todos sabem. Para vermos até que ponto era brilhante essa tese, basta dar, hoje, uma volta pelo paraíso de trolhas em que se tornou a nação: os ex-virtuosos e fulgurantes licenciados soviéticos, supra-sumo da educação, cartam agora baldes de massa e formiguejam pelos andaimes acima e, de quando em vez, dos andaimes abaixo. Triste fim para um império tão luminoso. Mas uma ideia peregrina nunca anda só. Abortada a fotocópia soviética, enveredou-se pela imitação da gleba europeia e, ultimamente, lançam-se olhares de maravilha e cobiça à gleba americana. Entretanto, as funções elementares da escola –coisas como ensinar a ler, a escrever e a contar-, desvaneceram-se sob uma catadupa de novas pedagogias, avançadas psicofolias e mirabolantes reestruturações ou paixonetas, cada qual mais mentecapta e mentecaptizante que a anterior. Os níveis de analfabetismo da pátria não esmoreceram por aí além – continuamos os menos alfabetizados de todos. Em contrapartida, os de analfabrutismo dispararam, em todas as direcções, e colocam o país, senão no comando destacado do Primeiro Mundo, certamente muito próximo disso. Uma miríade de especialistas debruçam-se sobre coisa nenhuma e montam comissões de volta de cada palha. O resultado?
É manifesto: Aos poucos, em fornadas anuais e sucessivas, os licenciados da pátria, cobaias de sucessivas Sextas Divisões de dinamização cultural, vão fazer companhia aos ex-soviéticos, a cartar massa pelos andaimes acima e, ocasionalmente, em voo picado, dos andaimes abaixo. Não se trata duma injustiça: é, de facto, o nível da sua licenciatura, o alcance da sua educação. Num país que passa o tempo, numa compulsão obsessiva, a alcatroar terras, a erigir caixotes de betão e a terraplenar tudo o resto, outro destino não seria de esperar. Depois, é preciso não esquecer que desde que trolhas atávicos, por via do sortilégio de licenciatura à pressão, em patrocínio da farinha Amparo, tiveram acesso às cadeiras docentes e, nos últimos trinta anos, se refastelaram nelas a seu bel-prazer, produzir algo mais que trolhas, suas réplicas e decalque, seria impensável. A não ser por obra e graça do divino Espírito Santo.
Moral da história: Os políticos não educaram o povo, porque o povo não se auto-educa. E o Espírito Santo, de facto, obra, mas cobra juros.




segunda-feira, maio 19, 2008

Os otários que paguem a crise. É para isso que eles existem. (rep)



(Infelizmente, quanto mais tempo passa, mais actualizado emerge este postal...)

Estou de acordo: "Os ricos não devem pagar a crise".
Em primeiro lugar, porque os ricos são o esteio da sociedade e do mundo. Se acabássemos com os ricos, para que farol guia olhariam os pobres, bem como os remediados e os quase nababos? Ficariam às escuras, pois claro, sem saberem para onde se dirigir nem que paradigma imitar. Naufragariam irremediavelmente de encontro aos escolhos, traiçoeiros e pontiagudos, da existência.
Nenhuma sociedade funciona sem um regime, e nenhum regime se aguenta sem paradigmas orientadores. Depois de inúmeras peripécias que seria fastidioso enumerar, o mundo ocidental arfa sob os primores duma plutocracia vigorosa. Não adianta fazer grandes ginásticas mentais à procura de mundos alternativos; é assim. A História, à boa maneira hegeliana, porta-voz do "Espírito", determinou-o.
Por conseguinte, sendo uma plutocracia, tem nos ricos o vértice da pirâmide – tal qual como se fosse uma monarquia, teria no rei; ou, uma teocracia, encontraria em Deus. Ora, se retirarmos o rei à monarquia, ou o Deus à teocracia, lá ruem ambas, a monarquia e a teocracia, sem apelo nem agravo. O mesmo acontece se retirarmos os ricos à plutocracia. Resulta no caos, na anarquia, desatam-se todos a comer uns aos outros. Descamba o carrossel numa depredação intraespecífica sem regras, bestialmente destrutiva e causadora dos piores atropelos e sevícias à ordem pública e não só.
Assim, tal qual vamos, há uma ordem: os ricos comem todos os outros; os pobres são comidos por todos os outros; entre os ricos e os pobres existem uns terceiros que comem e são comidos. Se não é o melhor dos mundos, anda lá próximo. É como na selva: há um equilíbrio natural, racional, que visa a perpetuação do sistema ecológico. Têm que existir poucos ricos e muitos pobres, da mesma forma que devem existir poucos lobos para muitas ovelhas. Se existissem muitos lobos para poucas ovelhas, os lobos exterminariam as ovelhas e, depois, definhariam até à inanição por falta de alimento. A não ser, claro está, que os lobos mais fortes despromovessem os mais fracos a ovelhas e desatassem a pitar neles. Em todo o caso, isso não passaria duma solução de emergência e apenas adiaria o colapso inevitável do sistema.
Portanto, sendo os ricos o que de mais precioso tem o regime, convém preservá-los e protegê-los de todos e quaisquer percalços. Ora, um rico não é rico porque paga crises ou o que quer que seja. Pelo contrário, é rico porque lhe pagam inúmeras coisas: é rico porque recebe. Viaja isento, à borliu.
Também, ao contrário do que se pensa, o rico não é rico porque investe o que quer que seja: é rico porque acumula. Se o rico gastasse o seu precioso dinheiro –a sua essência, e substância inefável do sistema -, em negócios e fabriquetas, corria o risco de ficar pobre. Ora, esse é um risco que nenhum rico que se preze pode correr.
É claro que o pobre, e especialmente o pobre de espírito, cisma que assim é. Isso, porém, não nos deve surpreender: É conveniente ao sistema e ao rico que ele assim pense. Tratam até, ambos, de mimar-lhe essa imbecil convicção, de mantê-lo nessa ilusão mentecapta. Mas, na verdade, o rico apenas se dedica a multiplicar o seu dinheiro, velando, desse modo, pela própria saúde do regime e pelo equilíbrio do ecossistema.
Quer dizer, o rico nunca investe o "seu" dinheiro. Investe, isso sim, o dinheiro que o banco lhe confia para investir. O "seu" dinheiro significa apenas"crédito" junto da banca, funciona como uma espécie de brevet para "piloto de capitais". Porque o rico é essencialmente isso, um piloto de capitais, que se faz pagar a peso de ouro pela crematonáutica que exerce. O "seu" dinheiro é apenas aquilo que antes da operação a garante e que, terminada a mesma, resultará ampliado. A função do rico é tornar-se cada vez mais rico. O ser rico, bem mais que um estatuto, é uma dinâmica: cega, obsessiva, inexorável.
Então, com que dinheiro investe o rico? – Com o dinheiro dos outros, é evidente; precisamente aquele que a banca extrai à grande maioria.
E o que é uma "crise"? – É uma época de desequilíbrio financeiro, em que, por um lado o Estado através de impostos e taxas, e por outro a banca e seus associados, através de "empréstimos" (que mais não são que formas encapotadas de cobrar "taxas" e "impostos" muito acima dos do próprio Estado), deixaram ou ameaçam deixar a grande parte da população na penúria, senão mesmo à beira do colapso enquanto sociedade.
Se o dinheiro deixa de circular com a quantidade necessária a manter um fluxo de oxigenação saudável do sistema, isso só pode significar hemorragia algures.
Quando, em plena crise, a banca apresenta lucros fabulosos, isso significa que esse dinheiro foi sacado à população e entregue nas mãos dos tais "pilotos". O que estes fizeram, obedecendo à sua lógica intrínseca, foi ir investi-lo noutras paragens mais rentáveis. O objectivo do investimento não é criar postos de trabalho: esse é o simples meio. A finalidade é multiplicar o capital inicial. O resto é supérfluo e, em bom rigor, descartável, logo que a finalidade esteja alcançada.
Entretanto, o país de regresso à sua penúria tradicional, do ponto de vista dos ricos e seus acólitos, é positivo: quer dizer que o país, de volta ao terceiro mundo e à realidade, está a transformar-se num país mais competitivo, com mão de obra mais barata e menos esquisita. Para os pobres, os verdadeiros, também não faz grande diferença: abaixo de pobres não passam, e já estão habituados. Concentram-se no futebol, na pinga e lá vão. Os únicos que, de facto, têm motivos para se preocupar seriamente são aquela classe heteróclita e intermediária – daqueles que vivem digladiados entre a angústia de regredirem a pobres e a ilusão de, num golpe de asa, ou por qualquer súbita lotaria do destino, ascenderem a ricos. Esses, temo-o bem, vão ter que sacrificar-se, mais uma vez, pela competitividade do país. É, aliás, urgente que desçam do seu pedestal provisório e se compenetrem dos seus deveres atávicos. São para isso, de resto, que, ciclica e vaporosamente, são criados.
E dado que os pobres não pagam porque não têm com quê, e os ricos também não, por inerência de função e prerrogativa sistémica, resta-lhes a eles, os tais intermédios (ou otários, se preferirem), como lhes compete, chegarem-se à frente. Está na hora de devolverem a sua "riqueza emprestada", o seu "estatuto a prazo"; de se apearem do troleibus da ficção e retomarem o seu lugarzinho na horda chã, em fila de espera para o próximo transporte até à crise seguinte.
Não sei se campeia a justiça neste mundo. Duvido. Mas que reina uma certa ironia, disso não restam dúvidas.

domingo, maio 18, 2008

O Rasto e a Rota - 2. A Sociocracia vaticinada



«Sob a santa reacção da revolução feminina, a revolução proletária purificar-se-á espontaneamente das disposições subversivas que até aqui a têm neutralizado.»
- Auguste Comte, "Catecismo positivista"



Segundo Comte, a sociocracia é um processo cumulativo que resulta de quatro revoluções consecutivas: a "revolução filosófica" (do modernismo iluminista), a "revolução burguesa, a "revolução proletária" e a "revolução feminina". A burguesa é fruto da filosófica; a feminina completa a proletária.
Quanto à "ordem normal" dessa mesma sociocracia, é composta de quatro classes fundamentais: afectiva, especulativa, patrícia e plebeia. Que correspondem, respectivamente, às mulheres, aos sacerdotes, aos barões económicos e aos proletários. Neste projecto acelerado de paraíso terreal, a providência divina cede lugar à providência humana, da mesma forma que Deus se vê substituído pelo Grande Ser Humanidade. Para que este Grande Ser se conserve e aperfeiçoe, é fulcral uma convergência entre a "providência moral" das mulheres, a "providência intelectual" do sacerdócio, a "providência material" do patriciado e o "providência geral" do proletariado. É precisamente ao resultado desta quadrúpla convergência que Comte chama de "providência humana". Significa isto que é missão permanente e exclusiva da "providência humana" burilar e realizar o Grande Ser Humanidade.
Por outro lado, as quatro classes funcionam segundo o princípio da parelha (deveras apropriado, diga-se), congregando-se operativamente na forma de dois pares simpáticos e indissociáveis: as mulheres com os sacerdotes; os patrícios com os plebeus.
Entretanto, como sempre convém a estas engenhoquices sociais, no âmago da sociocracia vela e patrulha a classe sacerdotal. Bastião da pureza, dos fundamentos e da supervisão cultural, divide-se, por sua vez, em três subclasses: os aspirantes (admitidos aos 28 anos); os vigários ou suplentes (admitidos aos 35); e os padres propriamente ditos (elegíveis aos 42). Apenas as duas últimas categorias pertencem ao "poder espiritual". Toda esta boa gente ministra e adeja a partir de presbitérios. Cada presbitério é tripulado por três vigários e sete padres. No total do Ocidente, Comte estipula o número ideal de dois mil, ou seja, o "equivalente a um funcionário espiritual por cada seis mil habitantes". Ao grande padre da Humanidade (autêntico sumo-sacerdote positivista de que Comte constitui o espécime primordial) compete o poder supremo (espiritual, entenda-se). Para que a burocracia não estremeça, estão previstos salários bem definidos: o grande Padre ganha cinco vezes mais que os padres mais pequenos e o dobro dos chamados superiores nacionais, que pastoreiam as quatro classes de Igrejas positivistas -italiana, espanhola, germânica e britânica.
Sob este fagueiro e preclaro regime, o conceito de nação, tal qual tradicionalmente é entendido, deixa de ter cabimento. Uma vez a ordem positiva devidamente implantada, os grandes estados decompor-se-ão espontaneamente em pequenos estados cuja demografia ideal orçará num total aproximado de três milhões de habitantes, correspondendo a uma densidade de sessenta por quilómetro quadrado. A República ocidental regenerada, segundo os cálculos comteanos, abrigará, assim, cerca de sessenta mini-repúblicas independentes - numa Europa convertida e fragmentada numa pluralidade homogenizada de Bélgicas e Toscânias em série. Engenheiros e zeladores desta federação serão os padres positivistas. De todo este clero positivo e benfazejo dependerá a universalidade da moeda e dos padrões métricos, bem como a educação comum, os costumes uniformes e um programa de festividades único. Assim se promoverão as convergências progressistas, devidamente escoradas na ciência, na positividade, na estética moral (feminina) e na técnica, que colmatarão as eventuais divergências resultantes dum "vicioso nacionalismo".
Quanto ao "supremo poder temporal" de cada república positiva, Comte atribui-o a um triunvirato deveras sugestivo e agoirento: os três principais banqueiros da mesma. Não menos curiosamente, o número de templos positivistas, no Ocidente, será igual ao número de banqueiros, competindo a cada um destes o financiamento e a manutenção dos antros de culto.
Depois de regenerada a Europa ocidental, o clero positivo consagrar-se-á ao proselitismo no restante mundo, empreendimento que em três gerações, pelos cálculos do protopapa da Humanidade, estará viçosamente concluído. Nessa altura bendita, purificado e uniformizado todo o globo, «as distinções orgânicas (entre as três raças, branca, amarela e negra) tenderão a desaparecer, em virtude da sua própria origem natural, e sobretudo pela via de adequados casamentos. A sua combinação crescente proporcionar-nos-á, sob a direcção sistemática do sacerdócio universal, o mais precioso de todos os aperfeiçoamentos, aquele que diz respeito a toda a nossa constituição cerebral, assim tornada mais apta a pensar, agir e mesmo amar».
Desenlace épico e emocionante, esse, que permitirá, por fim, ao Grande Ser Humanidade assumir para todo o sempre o lugar de Deus. Ámen.


Ora, que certas semelhanças entre este receituário e alguns dos pratos típicos da culinária socio-política europeia dos últimos cem anos sejam pura coincidência, serei eu o último a pôr as mãos no lume por tão angélica e, por isso mesmo, tão arriscada ilação.
Tal qual não garanto que, na capela itinerante dos Bilderbergs, Comte não tenha, em permanência, um altarzinho.

sábado, maio 17, 2008

O rasto e a rota

«A lei é esta: que cada uma das nossas principais conceptualizações –, que cada ramo do nosso conhecimento -, passa, sucessivamente, por três condicionamentos teóricos diferentes: o Teológico, ou fictício; o Metafísico, ou abstracto; e o Científico, ou positivo. (...) O primeiro é o necessário ponto de partida do entendimento humano; e o terceiro é o estado acabado e definitivo de chegada. O segundo é, meramente, um estado de transição.»
- Auguste Comte, “A Filosofia Positiva”

Entre 1830 e 1842, Auguste Comte produz o Curso de Filosofia Positiva. São conhecidas as suas fulgurantes teses, entre as quais aquela primorosa teoria contida na citação em epígrafe. Acima de ficções e abstrações, proclama ele, deve reinar a positividade científica. Uma espécie de Primado do Funil que ainda hoje faz as delícias de qualquer escoiçofrénico universicário.
Dir-se-ia, assim, que Comte, instalado no topo científico da "evolução" do entendimento humano, estaria nas suas sete quintas e pronto a derivar a partir dele, como ainda hoje é usual nos seus epígonos desossados, todo um novo paraíso na terra. À força de máquinas e indústria, com a bênção da finança e da política, pois claro. Ou seja, tudo faria supor que religião nunca mais!... Vade retro obscuridade!...
No entanto, após uma paixão platónica por uma tal Clotilde que, tragicamente, falece em 1846, Comte experimenta uma transformação mística e escreve, em memória da finada, um “tratado de sociologia que intitui a religião da Humanidade”. Quer dizer, afinal, num ápice, o cientismo positivista coroava-se duma "nova religião" - a religião verdadejante do positivismo. O que se materializa dois anos depois, em 1848, quando Comte funda a “Associação livre para a instrução positiva do povo de todo o Ocidente europeu”, que, posteriormente, será rebaptizada de Sociedade positivista. No ano seguinte, “instaura a Igreja Universal da religião da Humanidade”, celebra o matrimónio de dois proletários (de sexo diferente) segundo o novo rito e manda fazer um selo pontifical. Finalmente, em 1852, publica o “Catecismo Positivista”. Neste, pode ler-se a determinada altura: “Toda a história da Humanidade se condensa necessariamente na da religião. A lei geral do movimento humano consiste, sob qualquer aspecto, em que o homem se torna cada vez mais religioso”.
Através do “Catéchisme”, Comte preconiza a construção duma autêntica religião universal. O principal objectivo é «libertar o Ocidente duma democracia anárquica e duma aristocracia retrógrada, para constituir, tanto quanto possível, uma sociocracia».
É desta sociocracia e do seu tótem a substituir Deus -o Grande Ser Humanidade - que falaremos nos postais seguintes.
Afianço, desde já, que vai ser uma viagem deveras educativa. A bosta, de qualquer cavalgadura, define-lhe, em simultâneo, o rasto e a rota. A ela, tanto quanto à carroça que leva atrás.

sexta-feira, maio 16, 2008

Já não há Big-Bang (rep)



É uma coisa que se sabe desde 2004, mas que, pelos vistos, como quase todas, escapou à lobotomia pinçante dos nossos talibus cienticoisos:

«Astronómos recriam «o choro do nascimento do universo»
Astrónomos norte-americanos recriaram os sons do início do Universo, demonstrando que este não nasceu em resultado de uma explosão, mas na sequência de um tranquilo sussurro, que se transformou num longo rugido.»

Hollywood está em pânico. Já tinham argumento, produtores, película, o filme ia avançar, e afinal não há explosão. Em vez do Big-bang, parece que houve um Litle-ssshhh. Com a explosão era fácil: enxertava-se a perseguição automóvel, os tiros de rajada, colisões em série à mistura com catástrofes naturais, uma conspiração externa, buracos negros demoníacos, anti-matéria terrorista, era um sucesso de bilheteira garantido. Do Big-Bang ao Bang-bang era um instante. A América estava em perigo logo à partida, no seu momento originário, prototípico. No fim Schwarzeneger vencia, tocava o hino. Assim, quem é que está interessado em vagidos? Está bem que depois sempre vem o rugido, e um rugido já é qualquer coisa, sugere algum tipo de bestialidade assustadora, podem introduzir-se uns monstros alienígenas, efeitos especiais, demónios ou fantasmagorias do Outro-Mundo, mas a grande explosão, o grande efeito inicial, a América Primordial já se perdeu. As perseguições entre cometas e fragmentos astrais a alta velocidade, as emboscadas da anti-matéria nos grand-canyons cósmicos, os raides de gases tóxicos, os cercos ululantes às caravanas de aminoácidos já não se conseguem. Perde-se a verosimilhança, o suspense, a surpresa. É fraca compensação. O mercado americano não vai nisso: adora, acima de tudo, ver explodir coisas. Contemplar cacos a voarem em todas as direcções.
Todavia, Mark Whittle, o astrónomo peregrino, deixa uma réstia de esperança. Diz ele: «Ao ouvir estes sons, posso dizer que o Universo é como um instrumento musical de má qualidade».
Portanto, ou eu me engano muito, ou vem aí mais um musicóle!...

Outros ou alguns?



Diz o astrónomo chefe do Vaticano: «Se os extraterrestres existem, podem ser uma diferente de forma de vida que não necessita da redenção por Cristo».
E mais adiante, é ainda mais sugestivo: "Deus tornou-se homem em Jesus de modo a salvar-nos. Portanto, se existem outros seres inteligentes, não é dado aquirido que precisem de redenção. Podem ter-se mantido em amizade plena com o seu Criador."

Para o Engenheiro Ildefonso Caguinchas, os extraterrestres - a que ele chama "aliões" - não só existem, como tomaram conta das administrações dos principais países, organizações e empresas. E andam extremamente atarefados não propriamente com a nossa redenção, mas com o nosso extermínio. Eu não vou, porém, tão longe. Admito apenas a possibilidade de existirem. Nunca vi nenhum, nem, que me lembre, fui abduzido por naves de outro planeta ou galáxia; mas concedo a hipotética eventualidade de, ao contrário dos judeus, não estarmos sozinhos no Universo.
Onde eu discordo com todas as minhas forças é na expressão, deveras inadequada, "outros seres inteligentes". Outros, senhor padre astrónomo? Alguns, diga antes. Porque se o que pretendia era acrescentar aos que aqui progridem e merdificam, a expressão correcta seria "outros seres bestialmente estúpidos e grotescos". Excepto, naturalmente, os eleitos de Sion. Mas esses, descobriu-se ainda há pouco, tomam doping.
E mal de nós se, em vez de alguns, são mesmo outros. Para essa tragédia, já chegam e sobram os que cá temos.

quinta-feira, maio 15, 2008

Ordenhar os campos



É tempo de colheitas no Afeganistão. O Mercado agradece. E quando convém a Mamon, o ópio também pode ser a religião do povo.

«Schoolchildren down pencils and migrant workers arrive to help gather opium paste from the poppy fields.»

Efeitos secundários

E se a vacina contra a pneumonia, afinal, desenvolver uma estirpe de pneumonia ainda mais perigosa, não se admire. São coisas que acontecem ao gado.

É o que está acontecer no Reino Unido, com «Prevnar, an anti-pneumonia vaccination: likely causes a significantly worse form of pneumonia to develop. This life-threatening lung disease, called Serotype 1, has become ten times more prevalent in ten years.»

Isto reflecte muito do que é a engrenagem tecnocientífica: sob o pretexto de combater um mal, cria um bem que, por sua vez, não raras vezes, tem como efeito secundário um mal ainda pior. É a velha história do aprendiz de feiticeiro. Ou glosando o povo: quando um gajo não sabe foder está sempre a entalar os tomates. E a enlatar também. O pior é que perdida a conta às entaladelas, a coisa atinge já contornos de auto-mutilação.

Postville ou Aaron's best

Em Postville, no Iowa, o maior matadouro/centro embalador de carne kosher dos Estados Unidos foi encerrado pelas autoridades federais. Albergava um laboratório ilegal de drogas (methamphetamine) e 80% dos empregados estavam ilegais - entre os quais, pasme-se, um número considerável de rabis supervisores. No total, eram cerca de 697 indivíduos a violar leis federais. Em consequência da rusga -levada a cabo pelo FBI, DEA e Departamentos do Trabalho e Agricultura-, foram presos 300 meliantes. Estranho mundo este, em que os até já rabis vemos passar na enxurrada migratória!...
Naturalmente, só estou a noticiar isto para denunciar mais este caso flagrante de anti-semitismo.
Entretanto, quem está inconsolável é Menachem Lubinsky, chefe executivo da Luicom Marketing e editor da Kosher Today. O encerramento da Agriprocessors em Postville terá um considerável impacto nas vendas de carne kosher em todo o mundo.
Mas o mais interessante é a "methamphetamine"... Em que consiste?
E para que queriam eles a "methamphetamina"?...
Parece-me óbvio, não? Dito à americana: enhancing the meat. Dito à portuguesa: tornar o produto mais estimulante, apetitoso e, a bem do negócio, viciante.
O que, no meio disto tudo, c0meça a vislumbrar-se é o segredo judaico para tanta densidade genial e para não menos psicopatia derivada: com doping, ainda por cima kosher, também eu.
Por outro lado, está à vista um incidente diplomático: as IDF correm o risco de ficar sem rações de combate. É quase certo que eram especialmente preparadas pela Aaron's Best. Em dose continuada e reforçada, a methamphetamina potencia e catalisa a paranóia, a alucinação e a agressividade. A Casa Branca vai ter que intervir. A esta hora, já os neo-coninhas de todo o mundo começam a ressacar. E a bolsar em conformidade.

quarta-feira, maio 14, 2008

Elitose

Pior que um país sem elites nenhumas é um país com elites postiças. Com pseudo-elites. Sendo ambas indesejáveis, é, ainda assim, mil vezes preferível uma sociedade entregue a brutos do que avassalada por frívolos. Mais daninho que o tosco é o pedante. Aquele é medíocre por carência; este é-o por vocação.
Nota-se quando um país anda a ingurgitar todo o tipo de lixos e porcarias: começa a padecer de elitose.

segunda-feira, maio 12, 2008

J.S. Bach - Avé Maria

E depois de banirmos os crucifixos e as igrejas, proibimos música como esta e mandamos incinerar grande parte da história da pintura europeia?...

domingo, maio 11, 2008

Palavras com Raiz -III. Crença



«Ainda mais importante, é ter em consideração de que existe em muita gente uma forte necessidade de formas de culto, que co-existe com a aversão simultânea pelas Igrejas. Sente-se uma falha na existência, e nisso assenta a corrente em volta dos gnósticos, dos fundadores de seitas e dos apóstolos, que com maior ou menor êxito assumiram o papel das Igrejas. Poderíamos dizer que existe sempre um certo grau de disposição para a crença, que foi satisfeita legitimamente pelas Igrejas. Mas, agora, libertada, esta força prende-se à primeira coisa que aparecer. Daí a credulidade do homem moderno no qual coabita ao mesmo tempo a descrença. Ele acredita no que está escrito nos jornais, mas não no que está escrito nas estrelas.»
- Ernst Jünger, "Tratado do Rebelde"

Na raiz latina "credo" tanto pode significar "confiar por empréstimo", "emprestar dinheiro", "emprestar", como "acreditar", "dar crédito", "confiar", "supor", "ter como certo", etc. Indo ainda mais fundo, à raiz grega "Craw", o leque aumenta: tanto pode traduzir "emprestar", "conceder", "vaticinar", "anunciar", como "ter necessidade de", "ser pobre", "pedir", "usar de", "tomar emprestado" ou "consultar um oráculo". Em "craw" entronca "crhema" - empresa, soma de dinheiro, finança, riqueza, massa (no sentido de multidão), paga, salário, etc. E ao Mercado, banca ou bolsa um grego chamaria "crhematisthérion" (crematistério).
O que disto ressalta desde logo é que existe uma ambiguidade ancestral no próprio significado das palavras. Uma ambiguidade que, no caso da crença (não foi por acaso que a escolhi) reflecte essa coabitação entre dois sentidos aparentemente díspares - o sagrado e o profano, o celestial e o rasteiro, a limite, o divino e o dinheiro. Serão as palavras monstros - quimeras onde se digladiam, em amálgama espantosa, formas e ideias contraditórias: cabras e leões, aves e répteis?
O facto é que a "crença", já enquanto mera palavra, tanto nos pode conduzir a Deus como ao dinheiro; tanto nos pode converter em devedores do Céu como da Banca; tanto pode traduzir uma pobreza nossa em espírito como em finanças. Mas, ao manifestar multiplicidade, incita-nos a uma ordenação. A uma hierarquização nos seus vários significados.
Por exemplo, eu, ao sopesar a frase "não servirás a Deus e ao dinheiro", interpreto, numa primeira instância, Deus como algo mais valioso que dinheiro; e, numa segunda, Deus como algo mais valioso do que eu e eu como algo mais valioso do que o dinheiro. Tudo junto, entendo o sentido da frase como "devo servir para algo superior a mim e não para servir aquilo que eu próprio criei para me servir". Portanto, há uma importância, um valor, que eu credito a Deus e uma importância que eu credito aos bancos. O que se tem verificado, ao longo dos séculos, no historial da nossa civilização, é que quanto maior é uma menor é a outra. Excepto, naturalmente, para aqueles Credos aberrantes em que Deus e Mamon se identificam.
Entretanto, quando eu digo Deus não é forçoso que eu signifique um Deus confinado a determinado ritual religioso; de facto, posso apenas dizer aquilo que, de certa forma, o conceito de Deus simboliza e consagra, ou seja, determinados princípios e fins - uma causa primeira e uma causa final. Quer dizer, a minha acção deve reger-se por princípios e fins; não quedar apenas refém, enclausurada e cativa dos meios. Pois, conforme estipula a matriz da nossa própria civilização, a acção humana não é um mero exercício de meios; como não é um mero exercício de fins. Nesse caso, nesse exercício desligado e cacofónico dos meios ou dos fins cair-se-á fatalmente no desequilíbrio, na desarmonia caótica. Porque, assim sendo, ou os fins justificarão os meios ou os meios determinarão os fins. Perdidos os princípios, tudo se torna, então, possível. O cosmos deixa de estar sujeito a uma necessidade –isto é, uma ordenação primordial, eterna e transcendente (e transcendente não é nenhum palavrão feio, apenas significa não estar sujeito a caprichos, acidentes e acasos do tempo) – e passa a estar ao pleno dispor da sorte e do acaso. E de quem lá impera. Desce-se, assim, do reinado do sentido, do simbólico, para a tirania do aleatório, mascarada, no melhor dos casos, duma democracia de alienados. Note-se, a esse respeito, como o nosso tempo manifesta uma hostilidade e um desprezo ostensivo pelo “primórdio” e, em contrapartida, celebra o “media” e a “finança” – decantações, respectivas, quer do “meio”, quer do “fim”.

Por outro lado, esta ordenação hierárquica das coisas fundada na criação (e entenda-se aqui “criação” não no seu significado apenas religioso, mas também artístico, não sòmente demiúrgico mas também poético – ou seja, não apenas bíblico, mas sobretudo helénico) é deveras interessante e terrível. Senão, reparemos: se aceitarmos a sua lógica teremos qualquer coisa como "o criado ou criatura deve servir o criador. Assim, devemos servir a Deus, tal qual o dinheiro nos deve servir a nós." Em contrapartida, se nos rebelarmos contra essa ordem, se entendermos que (por exemplo, porque não somos criados, porque somos meras moléculas sem qualquer vínculo ao sagrado) não devemos servir a Deus, pode, à primeira vista, parecer muito libertário, catita e altamente moderno, mas depois tem um reverso sinistro que nos atira, de escantilhão, para abaixo dos pré-históricos canibais: é que, na mesma medida, o dinheiro e tudo aquilo que nós criámos deixa de estar na obrigação de nos servir a nós. Tornamo-nos então, nós próprios, servos dos nossos criados, criados dos nossos produtos, prole e plasma dum qualquer Estado burocrático. Preciso de vos apontar a realidade actual à vossa volta? Porque nos rebelámos contra o superior, tornámo-nos escravos do inferior; porque enterrámos as asas do espírito, rastejamos agora no pântano da matéria; porque desertámos do princípio, estamos agora confinados à finança. Partimos e pulverizámos em míseros caquinhos todo o imenso templo da Crença em Deus, doravante nanificada em milhares de minicrenças: crença na casa, crença no carro, crença no sucesso, crença no progesso, crença na ciência, crença no jornal, crença na televisão, crença no pastor, crença no doutor, crença na turba, crença no número, crença no trabalho, crença no umbigo, crença no dinheiro - somos agora miriápodes ouriçados não já em patas mas em crenças, com as quais amarinhamos por tudo, empeçonhando a esmo, e tudo isso embrulhado no tal saco da super-crença na Finança Toda Poderosa, gestora do Céu e do Inferno na Terra. Em boa verdade, à crença deixámos de tê-la para passar a sê-la. De sujeito degradámo-nos a objectos; de protagonistas, passámos a acessórios; de portadores, a transportes; de proprietários, a possessos. O produto tornou-se mais valioso que o produtor. Descartado o Sagrado, a natureza tornou-se descartável para o homem e o homem, por sua vez, tornou-se descartável para a sua própria máquina industrial tecno-eficiente. O conjunto evolutivo lembra, cada vez mais, um foguetão cósmico que vai consumindo e largando andares à medida que se afasta e embrenha direito a sabe-se lá onde.

Certo é que quanto mais aumenta a nossa descrença no Sagrado, quanto mais ao descrédito o votamos, ou seja, quanto menos importância lhe damos, mais aumenta a importância que damos a bugigangas e próteses existenciais que fabricamos, e, inerentemente, mais se agiganta a crença que para elas transferimos. No fundo, tanto quanto uma perversão na hierarquia de valores, é uma inversão que se instaura e, gradualmente, nos vai absorvendo: o novo sobrepõe-se ao original, o produto ao produtor, o medíocre ao sublime. De espaço de cultura, o mundo converte-se assim em mero palco da profanação. Desligado do cosmos, oscila, perigosa e maquinalmente, entre a incubadora artificial e o matadouro industrial.

sábado, maio 10, 2008

A Teia



No Washington Post, um artigo a ler com atenção:

«We didn't elect them. We can't throw them out. And they're getting more powerful every day.
Call them the superclass. (...)



Sobre a Criptocracia global.

Silêncio e Nudeza (rep)

Dois dos momentos superlativos de lucidez e sapiência que permanecem incólumes ao tempo, e que reconheço na nossa cultura são:
1. A resposta de Jesus a Pilatos sobre o que era a Verdade.
2. O grito espontâneo da criança diante do cortejo pomposo da majestade: "O rei vai nu!"
Ajustam-se a todas as idades. E é por entre esses dois abismos que singramos e nos confrontamos: o Silêncio dos Deuses e a nudeza dos poderosos. Cila e Caribdis da nossa civilização.
Entretanto, passamos a vida a confundir Verdade com Certeza, Conhecimento com Saber, e a alfaiatar a majestade à última moda. Sem sequer perceber o mais óbvio e comezinho da fábula: que a majestade vai nua apenas porque, em vez de roupa, a enfarpelaram numa teoria - melhor: numa crença (uma crença, note-se, só ao alcance dos inteligentes). A ela, por vaidade e estupidez; e aos súbditos, por imitação e obediência.
Não há quem deteste mais os antigos Dominicanos do que os Novos Dominicanos. Um dos sinais evidentes do Filho da Puta é o ódio resfolegante ao seu antecessor.
A imbecilidade galopante desta escumalhada ateísta hodierna, que germinou debaixo de não sei que pedras, consiste em ulular: "Não, o rei não vai nu, vai é mal vestido! Temos que despi-lo. Ou melhor, revesti-lo com um despido só ao alcance dos inteligentes!"
E é tal o gafanhoteio, a histeria e a peixeirice, que a majestade acaba a desfilar, já nem revestida de crença ou descrença, mas apenas revestida de cuspo.

sexta-feira, maio 09, 2008

Panteísmo científico (rep)




(Vai para quatro anos que) descobri uma fórmula. Uma fórmula infalível de converter um ateu no mais fervoroso crente. Desiludam-se, porém, católicos, protestantes e outros monoteísmos afins. A minha receita, infalivelmente, transforma-o sempre num panteísta. Vou dizer-vos como funciona...
Pega-se num gajo (um gajo gajo, macho, está bem de ver - a minha fórmula não resulta com gays), o mais ateu dos ateus, renitente a qualquer fé transcendente, leva-se para um tugúrio qualquer nocturno, com música, gajas, barulho de fundo; despejam-se-lhe umas cervejas, bastantes, pela goela abaixo; uns whiskies a rematar; e ides ver se o sacana não fica logo panteísta convicto, fanatizado!...
É que fica mesmo! Num repente, como por artes mágicas, todas as gajas lhe parecem deusas, merecedoras de culto, credo e adoração!...
Eu, pelo menos, fico. É assim que funciona a ciência.

quinta-feira, maio 08, 2008

Sem dom nem piedade



«Pai, a sensata razão é uma dádiva dos deuses aos homens e a maior riqueza que estes podem ter.»
- Sófocles, "Antígona"

Ateu é uma palavra intrínseca e originariamente grega, constituída pelo prefixo de negação A e pela raiz Theos (deuses ou Deus). Actualmente, no português, "ateu" significa "aquele que nega a existência de Deus", "incrédulo", "ímpio". Mas na origem, a-theos tinha um outro significado mais eloquente: "abandonado de deuses ". Tanto quanto o ímpio, o ateu era o abandonado pelo divino.
A mitologia hebraica diz-nos que Ihavé criou Adão, o primeiro homem, à sua imagem e semelhança. O Génesis conta-nos como o Divino enformou o humano - a partir do barro. Em contrapartida, os gregos são, por um lado, bastante menos narcisistas e, por outro, bastante mais prudentes. Entendem que o antropos, formado no cosmos, foi transformado pelos deuses. De que forma? Recebendo destes a razão prudente ou sensata . Na citação em epígrafe, o conceder da dáviva traduz o outorgar duma "segunda natureza" (fusiwsis). A relação do humano ao divino reflecte, pois, ao tempo de Sófocles, uma benfeitoria, mais que uma criação. O vínculo que daí resulta não é do criado ao criador, mas do agraciado ao benfeitor. Daqui derivará, séculos adiante, qualquer coisa como a "graça de Deus", mas não nos dispersemos.
Em qualquer dos casos - quer o Divino opere a partir da matéria inerte (insuflando-lhe forma e vida), quer metamorfoseie a partir do animal existente (concedendo-lhe inteligência) -, há um vínculo de gratidão, um dever (ficar em dívida) que se instaura; uma noção de hierarquia, de pertença a uma ordem, de fidelidade a um princípio sagrado, fundamento de vida, contentamento e razão.
Ora bem, o ateu é aquele que se desvincula desta hierarquia ancestral. À proveniência contrapõe a conveniência: não é mais o que provém, mas o que lhe convém. Ele e o mundo. Não se perspectiva, pois, a partir dum passado, duma linhagem, que se projecta, através dum presente num futuro: pelo contrário, submete todo a passado e toda a possibilidade futura à sua visão obsessiva do presente. Essa, basicamente, é a sua impiedade - a impietas latina -, que se traduzia, como se traduz, pela " falta de cumprimento dos deveres para com os pais, a pátria ou os deuses". Ninguém pense que a mania caíu do céu aos trambolhões ou brotou de geração espontânea.
De facto, o ateu entende que nada deve aos pais, à pátria ou ao divino, porque tudo adquire e engendra através da ciência e da razão. Acredita cegamente que, através dessa formidável panóplia, pode agora corrigir o passado, normalizar o presente e determinar o futuro. O resultado mais eloquente dessa psicoculinária pudemos constatá-lo com o stalinismo. A mesma dinâmica mental preside à fermentação desossada e fétida da sequela actual.
A certa altura, no fim da Antígona, Creonte clama, em desespero: "Ah, razão que desrazoa!... (Iw frenwn dysfrónon)"
Ora, o ateísmo contemporâneo é precisamente um arrazoado - uma razão feita mero frenesim. Ou seja, mero exercício desligado e autofágico da "frhen" - a "frhen" que significava no grego original, o pensamento, a alma, a vontade; e donde a "fronesis" - prudência, sensatez, juízo, inteligência de uma coisa, etc. Esta "frhenon" é, na citação em epígrafe, a tal concessão divina e suprema riqueza do homem. E esta "frhenon" que "disfronon", esta "razão que desrazoa" (esta imprudência insensata que arrasta ao desastre) é aquilo de que Creonte se lamenta. Exactamente a mesma a que eu agora chamo de "razão frenética". Em rigor, uma espécie de parafrenia infecto-contagiosa.
Por outro lado, acresce um detalhe que cava toda uma diferença imensamente relevante: é que a antiguidade situava esta "prudente razão" no coração, enquanto a ciência moderna a confina ao cérebro. Quer dizer, aquilo que o divino plantou no coração do homem, o cientóide apaga, clona e fecha na mioleira do tecnopiteco avançado. Esta "razão frenética", podemos então dizê-lo, é uma "razão fora do sítio - uma razão sem coração; um simples frenesim cerebral. Não admira a sua frieza réptil e, ainda menos, o alcance impiedoso dos seus maníacos.

O problema é que estes energúmenos que descrevo não se restringem apenas às várias e mais ou menos estrídulas seitas de convulsionários ateístas da paróquia. Não, o abismal é que as próprias e diversas religiões estão cada vez mais infestadas... de ateus.

terça-feira, maio 06, 2008

Lições antigas



«Um tempo houve no qual Creonte era digno de inveja, preservara o país dos seus inimigos, tornara-se o seu recto monarca e governava, criando prosperidade para a sua nobre descendência. Agora não existe nada, tudo está perdido.
Quando, por sua culpa, o homem trai a sua própria alegria, já não me parece um ser vivo mas antes um cadáver ambulante. Amealha, se quiseres, grandes riquesas em casa; encerra-te no fausto da tirania: se a isso não juntares a felicidade íntima, não compraria eu todo o resto a troco da sombra dum fumo».
- Sófocles, "Antígona"


Uma antítese constante do pensamento grego é a monarquia versus tirania. Como diria mais tarde um filósofo: "poucos são dignos de inveja, a maioria é digna de pena". Para o grego clássico, no auge da sua civilização, o recto monarca é digno de inveja; o desmedido tirano é digno de lástima. Por uma razão muito simples: porque ao transgredir as regras eternas do equilíbrio cósmico está, inexoravelmente, o tirano, a convocar sobre si o desastre. A hubris gera necessariamente a athe. Ou seja, a desmesura atrai a ruína, a peste, o desastre, a desgraça, enfim, a retaliação cósmica. Esta noção, para os gregos, não era mera poesia ou estrita religião: era farol ético, resultado de aturada observação empírica. Era, por isso mesmo, cultura. E era, dito com plena propriedade, sabedoria. Em relação a eles, nós só diferimos porque temos mais de dois milénios de comprovação real acrescida daquela regra cósmica. Em tese, deveríamos estar mais sensatos, mais prudentes; mas, na realidade, comportamo-nos como cegos guiados por loucos - como descobridores da pólvora a cada instante, como umbigos recriadores de todo o Universo em cada passagem de moda. Temos olhos cegos de tanta prótese, de tanto óculo, binóculo, telescópio e microscópio. De tanto distorcermos o mundo, de tanto espreitarmos atrás das coisas fomos perdendo a visão para aquilo que temos à frente. Entretidos com pinchavelhos e pentelhices, tornámo-nos míopes e vesgos à plenitude. De tanto embascacarmos diante de tanto novo adereço, já perdemos de vista o sagaz velho que, sob tanta máscara, plástica e maquilhagem, lá no fundo, somos. Por desuso, os olhos de águia devieram olhos de corvo; o legado de Prometeu atrofiou-se a uma tripa palradora e suinocéfala. Da Grécia trágica viemos dar a esta anti-grécia grotesca e sórdida. Esta civilização de aviário e pechisbeque. Este egódromo da algazarra e do chinfrim. Este viveiro de tiranias e tiranetes. Desde a tirania do bandulho à tirania dos bandalhos e das turbas.
Mas não nos podemos queixar que não nos avisaram, lá, desde as raízes. A tirania, que pode ser exercida por um em nome de muitos ou por muitos em nome de um, é sempre uma excreção da mesma glândula: a oclocracia. Seja na forma de despotismo (mais ou menos desenfreado), seja na aparente democracia (menos ou mais envaselinada), é sempre a mesma derivação da massa desordenada e confusa, a mesma desorientação colectiva - a balbúrdia sistematizada. E, tão certo como o nascer o o pôr do sol, será sempre, por decreto eterno, a desagregação desmedida que precederá a catástrofe.

A melhor lição é, pois, a mais antiga: resguardemo-nos da turba, dos seu jóqueis e, sobretudo, das suas infatigáveis aleivosias.



segunda-feira, maio 05, 2008

Exorbitância




«Ó Zeus, o orgulho dos homens jamais consegue diminuir a tua força. Não a domina nem o sono que tudo corrompe, nem a veloz sucessão dos meses. Governas de fora do tempo e reinas na claridade resplandecente do Olimpo. Desde as mais remotas eras, uma lei eterna vigora: a cada excesso do mortal existente, logo sucede, inexorável, o desastre.»
- Sófocles, "Antígona"

Desde os gregos, vai para mais de vinte cinco séculos, se sabe que o divino é meta-existente - quer dizer, está para lá da existência, transcende-a. Não cabe nem pertence às estruturas e cadeias do espaço e do tempo.
Perguntar pela existência de Deus é como perguntar pelas guelras da águia ou pela kilometragem do pensamento.
Estávamos todos bem tramados se Deus existisse. No mesmo instante, agora sim, era um BIG-BANG!... Por muito que nos custe, Deus não orbita: exorbita.

Uma exorbitância completamente fora do alcance da nossa bolsa e dos basbaques da nossa ciência.
Felizmente.

domingo, maio 04, 2008

Metapredação

Caso A:


E Caso B:

No grego, aptw significa atar, ligar, segurar; tal qual como no latim, apto, também significa ligar, ajustar, etc. Daí decorre, no português, o nosso "apto" - capaz, conveniente, com aptidão para.

Pegando na lei da "selecção natural actuando somente pela vida e pela morte, pela persistência do mais apto e pela eliminação dos indivíduos menos aperfeiçoados" (Darwin, "Origem das Espécies"), óbvio é constatar nos "large trader banks", nas grandes petrolíferas ou nas "giant agribusiness" -citando nomes, para melhor nos orientarmos: Goldman Sachs, Morgan Stanley, Exxon, Chevron, BP, Shell, Monsanto, Cargill, Archer Daniels Midland, etc -, os mais aptos. Mais aptos até, refira-se, não só no conceito actual mas também no mais arcaico, ou seja, mais "capazes", mais "convenientes", mas igualmente mais "atados", "ligados", "ajustados". Ao contrário, naturalmente, de todos esses indivíduos em riscos de perecer à fome, absolutamente incapazes, descartáveis, desligados e desajustados à nova realidade global.

Neste sentido, se aceitarmos toda esta evolução como uma transposição dos mecanismos de selecção natural para o mundo humano teremos que aceitar como plenamente racional e, eventualmente, necessário, que os mais aptos persistam e os menos aperfeiçoados sejam eliminados pela inefabilidade processual. Resta, não obstante, uma pergunta: Mais aptos em quê?

Bem, se é verdade que, por um lado, essas super-entidades estão cada vez mais "atadas" e "ligadas" entre si, por outro, torna-se cada vez mais evidente que também estão cada vez mais "desligadas" e " desatadas" da humanidade. Portanto, a aptidão da coligação revela, em tandem, uma crescente inaptidão da humanidade desligada para a sobrevivência.
De resto, a acção dos aptos coligados desenvolve-se em duas vertentes simultâneas e conjuradas: reforçar a sua coligação, de modo a transformar a sua aptidão em super-aptidão; e promover a dispersão, a desagregação - a limite, o confinamento em células individuais - da restante humanidade. Assim, à medida que se consolida e sofistica, a coligação dos aptos vai adaptando o mundo à sua conveniência - um mundo que lhe convém amorfo, mero plasma manobrável e manipulável, estrita matéria. Isto é, desligado de todo e qualquer antes -cultural, sobretudo-, tanto quanto de qualquer depois, mas apenas refém perpétuo dum presente cercado e sitiado pelas obscuridades do passado e pelos horrores e terrores do futuro. Para esse efeito, arfa, zumbe, silva e resfolega toda um propaganda constante, opressiva e miriafónica. Omnipresente. Compete-lhe desligar as pessoas. Reduzi-las a células presidiárias, meros compostos de células mecânicas. Este Des-ligar das pessoas consiste numa guerra permanente, envenenadora e insidiosa sobre tudo o que possa congregá-las ou re-ligá-las. Daí, entre outras, a campanha devidamente orquestrada e premeditada contra a "re-ligião". Porque estorva e dificulta a "des-ligião".
É neste enquadramento que se situam todos os quistos efervescentes de propaganda artificialmente empolada e superiormente dirigida, como são, por exemplo, as organizações LGTB ou as Ligas de Frenéticos e Convulsionários Ateístas. São tropinhas de choque do mercado e da indústria, autómatos-biscateiros programados e segregados pela coligação "super-apta". O seu público alvo está bem definido: as gentes naquela faixa etária mais vulnerável, crédula e dúctil - a adolescência (que agora, ainda para mais, se pretende que vá dos 4 aos 40). Os seus postos de emissão são bem visíveis: mass-media, escolas, universidades, meios "artísticos". Sabem o básico: se cantarem a contento, sobem a rigor. Reproduzem-se por coopção, mimese e osmose. Obedecem à regra do enxame.
Lembro-me de ouvir dizê-lo, ao vivo, ao Agostinho da Silva: "Idade das Trevas? Vocês vão ver o que é a Idade das Trevas."
Voltando, entretanto, à pergunta inicial - mais aptos em quê? Ora, está bem à vista: na predação. Intra-específica.

Piquenique dominical




(Adaptação livre do soneto "Amar!", de Florbela Espanca, com especial dedicatória aos neopositivistas-lógicos da paróquia e outras cientoys'r'us efervescentes).

Argumentar!

Eu quero contar, pesar, medir positivamente
Argumentar sem parar: aqui...acolá...mais além;
Conhecer o pentelho e mais a fauna adjacente,
conhecer o fato todo, sem querer saber de quem.

Pensar? Estudar? Ler? –É indecente!..
Crer no conhecimento é que nos faz bem
À pele, ao cabelo, às unhas – obrigado, mãe!,
Por me parires tão objectivo e clarividente!

Há uma epistemolatria na minha vida
É preciso fogueteá-la assim toda garrida
Pois se a Ciência nos deu gás, foi para atroar;

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada,
Hoje sou uma comichão ávida, desvairada
De silogismos espremer... para me catar.

PS: O António ficou de trazer o Sebastião da Gama.

sábado, maio 03, 2008

Altercídio

Mas se, para as prostitutas intelectuais, o mundo está um local cada vez mais aprazível, em contrapartida, para as prostitutas normais está um sítio cada vez mais perigoso. E hostil. Que o diga Deborah Jeane Palfrey, a chamada DC Madame, abastecedora de carne de primeira qualidade para as elites políticas em Washington DC: apareceu agora convenientemente suicidada, antes de almoço. À semelhança, de resto, duma lista de outros casos congéneres, ao longo destes últimos anos. Penso que se pode mesmo intuir um método nestas limpezas ad-hoc. Uma modalidade típica do melhor dos mundos: o Altercídio... Ou seja, o Suicídio assistido.

E, a propósito, o que será feito da sua Listinha de cerca de 10.000 clientes?

Mas, por amor de Deus ou da Ciência, livrem-se de imaginar enredos capciosos: a senhora teve a gentileza de anunciar previamente, para toda a imprensa, o fúnebre desenlace. Precisamente, para evitar falatórios e murmurações.

Actualização: Apareceu agora este Building Manager a dizer que não acredita no suicídio do senhora. Mas isso só revela como é homem de pouca fé.

Bunker, sweet bunker

Caro António,

em primeiro lugar, quero que saiba que sou um apreciador, não raras vezes deleitado, dos seus comentários. Digo isto sem ironia. Há em si um talento raro e invejável para a irrisão que, particularmente, admiro.
Em segundo lugar, quero alertá-lo que é perda de tempo argumentar com estas picaretas digitais. Eles não argumentam: energumentam. Não caia na asneira de subestimar a aparente sonsice destes brutos: lá por detrás daquela capinha epistemagógica há toda uma ferocidade evangélica imune à civilização. Sob o verniz, não duvide, ossifica o casco.
Por conseguinte, até como simples racionalidade são entulho. Verdadeiras lobotomias falantes. Meras línguas que desenvolveram uma saliva lógica. Estritamente pavloviana, entenda-se. Não obstante, têm outras qualidades aproveitáveis e interessantes: como a persistência, por exemplo, do bom pastor Ludwig. Se este tipo é alemão faz jus à raça. No fundo, até deve ser uma excelente pessoa. Mas o atavismo não perdoa. Eu explico com devido detalhe...
Havia um cirurgião meu conhecido, tipo patusco, que trabalhou alhures com vietnamitas. A impressão com que deles ficou foi que tinham sempre o pensamento noutro lugar: dir-se-ia que passavam a noite inteira a escavar túneis e o dia todo a urdi-los. Ora bem, com os alemães é algo semelhante: só que, em vez de túneis, são bunkers. Nem imagina o betão armado e soterrado de que são capazes! E a última coisa de que querem saber ou, ainda menos, ouvir falar é da realidade! Tudo menos a realidade! Livre-se de lhes lá levar qualquer aviso ou notícia!... Não será bem tratado, pode crer.
Platão, nisso, teve sorte: não os conheceu. Caso contrário, muito provavelmente, ter-se-ia visto forçado a remodelar toda a sua alegoria da caverna. Com alemães, o enredo seria necessariamente outro. Logo a abrir, porque os cavernícolas, instados pelo filósofo, até viriam, em boa ordem e disciplina, cá fora. Mas nada de contemplações, que não há tempo a perder. Toca de deitar, pronta e automaticamente, mãos à obra. E, perante o olhar atónito do grego, desatariam a desmontar o mundo real, por corte e cola, e a trancafiá-lo, de enfiada, na gruta.
-"Mas, por Zeus (digo, Logos!)! - Exclamaria, o filósofo. - Que raio estão vocês a fazer ao cosmos?..."
-"Então, ó mestre - clamariam, buliçosos, os germânicos. - Estamos a metê-lo na caverna. Somos epistemólogos, caralho!...
Esse singular processo de transformação da caverna num cosmos é o tal "bunker" que os fascina e obsidia. O próprio Cristo, se fosse alemão, quase posso garantir, ninguém mais o arrancava do Santo Sepúlcro: ressuscitava na mesma, é certo, por imperativo categórico, mas apenas para converter o túmulo em residência e consultório. O que, convenhamos, nos pouparia ainda hoje a muita maçada e discussão.
Sim, de facto, com um Deus alemão não corríamos o risco de ele nos fugir para o Céu. Se bem que, a esta hora, em compensação, andariam os crentes a escavar poços e galerias no chão à procura Dele. Aliás, há quem diga até que já andam.

Nisto tudo, pode dar-se o caso do Ludwig não ser alemão. Mas se não é, imita muito bem.

PS: Há ainda outro aspecto no Ludwig que já granjeou a minha estima: a sua capacidade intrépida de encaixe. A meus braços, - ou melhor, às suas extremidades - herr professor!...