sábado, maio 17, 2008

O rasto e a rota

«A lei é esta: que cada uma das nossas principais conceptualizações –, que cada ramo do nosso conhecimento -, passa, sucessivamente, por três condicionamentos teóricos diferentes: o Teológico, ou fictício; o Metafísico, ou abstracto; e o Científico, ou positivo. (...) O primeiro é o necessário ponto de partida do entendimento humano; e o terceiro é o estado acabado e definitivo de chegada. O segundo é, meramente, um estado de transição.»
- Auguste Comte, “A Filosofia Positiva”

Entre 1830 e 1842, Auguste Comte produz o Curso de Filosofia Positiva. São conhecidas as suas fulgurantes teses, entre as quais aquela primorosa teoria contida na citação em epígrafe. Acima de ficções e abstrações, proclama ele, deve reinar a positividade científica. Uma espécie de Primado do Funil que ainda hoje faz as delícias de qualquer escoiçofrénico universicário.
Dir-se-ia, assim, que Comte, instalado no topo científico da "evolução" do entendimento humano, estaria nas suas sete quintas e pronto a derivar a partir dele, como ainda hoje é usual nos seus epígonos desossados, todo um novo paraíso na terra. À força de máquinas e indústria, com a bênção da finança e da política, pois claro. Ou seja, tudo faria supor que religião nunca mais!... Vade retro obscuridade!...
No entanto, após uma paixão platónica por uma tal Clotilde que, tragicamente, falece em 1846, Comte experimenta uma transformação mística e escreve, em memória da finada, um “tratado de sociologia que intitui a religião da Humanidade”. Quer dizer, afinal, num ápice, o cientismo positivista coroava-se duma "nova religião" - a religião verdadejante do positivismo. O que se materializa dois anos depois, em 1848, quando Comte funda a “Associação livre para a instrução positiva do povo de todo o Ocidente europeu”, que, posteriormente, será rebaptizada de Sociedade positivista. No ano seguinte, “instaura a Igreja Universal da religião da Humanidade”, celebra o matrimónio de dois proletários (de sexo diferente) segundo o novo rito e manda fazer um selo pontifical. Finalmente, em 1852, publica o “Catecismo Positivista”. Neste, pode ler-se a determinada altura: “Toda a história da Humanidade se condensa necessariamente na da religião. A lei geral do movimento humano consiste, sob qualquer aspecto, em que o homem se torna cada vez mais religioso”.
Através do “Catéchisme”, Comte preconiza a construção duma autêntica religião universal. O principal objectivo é «libertar o Ocidente duma democracia anárquica e duma aristocracia retrógrada, para constituir, tanto quanto possível, uma sociocracia».
É desta sociocracia e do seu tótem a substituir Deus -o Grande Ser Humanidade - que falaremos nos postais seguintes.
Afianço, desde já, que vai ser uma viagem deveras educativa. A bosta, de qualquer cavalgadura, define-lhe, em simultâneo, o rasto e a rota. A ela, tanto quanto à carroça que leva atrás.

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