segunda-feira, março 20, 2006

O Diário de Adão


«Segunda feira

«Este novo ser de cabelo longo é um valente empecilho. Anda sempre à minha volta e segue-me para todo o lado. Não gosto disto: não estou habituado a ter companhia. Preferia que ficasse com os outros animais. (...) Está enevoado hoje, vento de Este; acho que nós ainda vamos ter chuva. [...] NÓS? Onde apanhei esta palavra? - o novo ser usa-a amiúde.


«Terça-Feira


«Estive a examinar a cascata. É o melhor do parque, penso. O novo ser chama-lhe "catarata de Niagara" - porquê?, não compreendo. Diz que parece a Catarata do Niagara. Isso não é razão. É um mero devaneio de imbecilidade. Não posso nunca dar nome a nada. O novo ser dá nome a tudo o que aparece antes de eu poder esboçar um protesto. E o pretexto é sempre o mesmo: parece ser aquilo. Por exemplo um dodo, diz que, logo que se avista um, percebe-se que "parece um dodo". Vai ter de passar a chamar-se assim, sem dúvida. Desgasta-me tentar discutir sobre isso e nem vale a pena, de qualquer maneira. Dodo! parece-se tanto com um dodo como eu!

«Quarta- feira


«Construí um abrigo contra a chuva para mim, mas não pude sequer gozá-lo em paz. O novo ser intrometeu-se. Quando tentei empurrá-lo para fora deitou água pelos buracos por onde vê e limpou-se com as costas da pata, e fez um barulho como o que fazem alguns dos outros animais quando estão aflitos. Eu preferia que não falasse. Está sempre a falar! Isto pode parecer um golpe baixo contra o pobre coitado, uma injúria; mas não é nada disso. Eu nunca ouvi a voz humana antes e qualquer som estranho e novo irrompendo aqui, na solene pacatez destas solidões de sonho, ofende os meus ouvidos e soa como uma nota artificial. E este novo som irrompe sempre tão perto de mim, vem sempre detrás do meu ombro, direito ao meu ouvido. primeiro de um lado, depois do outro... e eu estou habituado a sons que estão sempre mais ou menos distantes de mim.»
- Mark Twain, "Excertos dos diários de Adão e Eva"


É assim que começa uma das mais polémicas (ainda hoje, como constataremos já de seguida nas caixas de comentários) e geniais obras de Twain. Banida na época em vários estados americanos, encontra-se, cem anos depois, tão actual como dantes, e devia constituir obra de cabeceira das nossas feministas do arco-da-velha, sobretudo a Inês Pedregosa e a Fernanda Cancro, digo Conho, aliás Côncio.
A tradução portuguesa está aí, na "Cavalo de Ferro", e recomenda-se.

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