sexta-feira, maio 27, 2005

Os otários que paguem a crise. É para isso que eles existem.


Estou de acordo: "Os ricos não devem pagar a crise".
Em primeiro lugar, porque os ricos são o esteio da sociedade e do mundo. Se acabássemos com os ricos, para que farol guia olhariam os pobres, bem como os remediados e os quase nababos? Ficariam às escuras, pois claro, sem saberem para onde se dirigir nem que paradigma imitar. Naufragariam irremediavelmente de encontro aos escolhos, traiçoeiros e pontiagudos, da existência.
Nenhuma sociedade funciona sem um regime, e nenhum regime se aguenta sem paradigmas orientadores. Depois de inúmeras peripécias que seria fastidioso enumerar, o mundo ocidental arfa sob os primores duma plutocracia vigorosa. Não adianta fazer grandes ginásticas mentais à procura de mundos alternativos; é assim. A História, à boa maneira hegeliana, porta-voz do "Espírito", determinou-o.
Por conseguinte, sendo uma plutocracia, tem nos ricos o vértice da pirâmide – tal qual como se fosse uma monarquia, teria no rei; ou, uma teocracia, encontraria em Deus. Ora, se retirarmos o rei à monarquia, ou o Deus à teocracia, lá ruem ambas, a monarquia e a teocracia, sem apelo nem agravo. O mesmo acontece se retirarmos os ricos à plutocracia. Resulta no caos, na anarquia, desatam-se todos a comer uns aos outros. Descamba o carrossel numa depredação intraespecífica sem regras, bestialmente destrutiva e causadora dos piores atropelos e sevícias à ordem pública e não só.
Assim, tal qual vamos, há uma ordem: os ricos comem todos os outros; os pobres são comidos por todos os outros; entre os ricos e os pobres existem uns terceiros que comem e são comidos. Se não é o melhor dos mundos, anda lá próximo. É como na selva: há um equilíbrio natural, racional, que visa a perpetuação do sistema ecológico. Têm que existir poucos ricos e muitos pobres, da mesma forma que devem existir poucos lobos para muitas ovelhas. Se existissem muitos lobos para poucas ovelhas, os lobos exterminariam as ovelhas e, depois, definhariam até à inanição por falta de alimento. A não ser, claro está, que os lobos mais fortes despromovessem os mais fracos a ovelhas e desatassem a pitar neles. Em todo o caso, isso não passaria duma solução de emergência e apenas adiaria o colapso inevitável do sistema.
Portanto, sendo os ricos o que de mais precioso tem o regime, convém preservá-los e protegê-los de todos e quaisquer percalços. Ora, um rico não é rico porque paga crises ou o que quer que seja. Pelo contrário, é rico porque lhe pagam inúmeras coisas: é rico porque recebe. Viaja isento, à borliu.
Também, ao contrário do que se pensa, o rico não é rico porque investe o que quer que seja: é rico porque acumula. Se o rico gastasse o seu precioso dinheiro –a sua essência, e substância inefável do sistema -, em negócios e fabriquetas, corria o risco de ficar pobre. Ora, esse é um risco que nenhum rico que se preze pode correr.
É claro que o pobre, e especialmente o pobre de espírito, cisma que assim é. Isso, porém, não nos deve surpreender: É conveniente ao sistema e ao rico que ele assim pense. Tratam até, ambos, de mimar-lhe essa imbecil convicção, de mantê-lo nessa ilusão mentecapta. Mas, na verdade, o rico apenas se dedica a multiplicar o seu dinheiro, velando, desse modo, pela própria saúde do regime e pelo equilíbrio do ecossistema.
Quer dizer, o rico nunca investe o "seu" dinheiro. Investe, isso sim, o dinheiro que o banco lhe confia para investir. O "seu" dinheiro significa apenas"crédito" junto da banca, funciona como uma espécie de brevet para "piloto de capitais". Porque o rico é essencialmente isso, um piloto de capitais, que se faz pagar a peso de ouro pela crematonáutica que exerce. O "seu" dinheiro é apenas aquilo que antes da operação a garante e que, terminada a mesma, resultará ampliado. A função do rico é tornar-se cada vez mais rico. O ser rico, bem mais que um estatuto, é uma dinâmica: cega, obsessiva, inexorável.
Então, com que dinheiro investe o rico? – Com o dinheiro dos outros, é evidente; precisamente aquele que a banca extrai à grande maioria.
E o que é uma "crise"? – É uma época de desequilíbrio financeiro, em que, por um lado o Estado através de impostos e taxas, e por outro a banca e seus associados, através de "empréstimos" (que mais não são que formas encapotadas de cobrar "taxas" e "impostos" muito acima dos do próprio Estado), deixaram ou ameaçam deixar a grande parte da população na penúria, senão mesmo à beira do colapso enquanto sociedade.
Se o dinheiro deixa de circular com a quantidade necessária a manter um fluxo de oxigenação saudável do sistema, isso só pode significar hemorragia algures.
Quando, em plena crise, a banca apresenta lucros fabulosos, isso significa que esse dinheiro foi sacado à população e entregue nas mãos dos tais "pilotos". O que estes fizeram, obedecendo à sua lógica intrínseca, foi ir investi-lo noutras paragens mais rentáveis. O objectivo do investimento não é criar postos de trabalho: esse é o simples meio. A finalidade é multiplicar o capital inicial. O resto é supérfluo e, em bom rigor, descartável, logo que a finalidade esteja alcançada.
Entretanto, o país de regresso à sua penúria tradicional, do ponto de vista dos ricos e seus acólitos, é positivo: quer dizer que o país, de volta ao terceiro mundo e à realidade, está a transformar-se num país mais competitivo, com mão de obra mais barata e menos esquisita. Para os pobres, os verdadeiros, também não faz grande diferença: abaixo de pobres não passam, e já estão habituados. Concentram-se no futebol, na pinga e lá vão. Os únicos que, de facto, têm motivos para se preocupar seriamente são aquela classe heteróclita e intermediária – daqueles que vivem digladiados entre a angústia de regredirem a pobres e a ilusão de, num golpe de asa, ou por qualquer súbita lotaria do destino, ascenderem a ricos. Esses, temo-o bem, vão ter que sacrificar-se, mais uma vez, pela competitividade do país. É, aliás, urgente que desçam do seu pedestal provisório e se compenetrem dos seus deveres atávicos. São para isso, de resto, que, ciclica e vaporosamente, são criados.
E dado que os pobres não pagam porque não têm com quê, e os ricos também não, por inerência de função e prerrogativa sistémica, resta-lhes a eles, os tais intermédios (ou otários, se preferirem), como lhes compete, chegarem-se à frente. Está na hora de devolverem a sua "riqueza emprestada", o seu "estatuto a prazo"; de se apearem do troleibus da ficção e retomarem o seu lugarzinho na horda chã, em fila de espera para o próximo transporte até à crise seguinte.
Não sei se campeia a justiça neste mundo. Duvido. Mas que reina uma certa ironia, disso não restam dúvidas.

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