quarta-feira, janeiro 02, 2008

Sem nesgas

(imagem gentilmente surripiada à Zazie)


Para ser franco, eu acho que não há Ano Novo nenhum. É uma anedota - e um logro - chamar-se novidade a uma continuação. 2oo8 é só aquele pedaço de Limbo que fica entre 2007 e 2009. Um mero marco na estrada para Nenhures. O bêbado-ao-volante chamado Humanidade zurra e comemora de cada vez que passa pelos marcos. A seguir estampa-se. Abalroa árvores, casas e ciclistas; atropela peões e velhinhas; varre sinais, candeeiros e semáforos. Sempre com grande algazarra e festividade. Leva a televisão com ele (a servir, em simultâneo, de pára-brisas e retrovisor). E o diabo lá dentro.
Busca desalmadamente o estampanço definitivo. Há-de, mais dia menos dia, encontrá-lo. Acelera com fúria porque procura desesperadamente um freio. Tenta, pois, acertar em cheio, mas apenas colhe de raspão. Enquanto o estampanço terminal não chega, o mais que alcança, na ponta do zigue-zague, é resvalar.
Não obstante, 2008 promete. No firmamento perpassa e tremeluz toda uma plêiade de indícios e presságios animadores.
1. No Quénia, a Baixeira de Lisboa começou a produzir os seus gloriosos frutos: multidões ululantes, de catana eriçada e ódio em riste, celebram, há vários dias, com motins, pilhagens e chacinas tribais. África nunca me há-de desiludir.
2. No Paquistão, a luta contra os gambosinos prossegue a bom ritmo. Para comemorar o assassinato da sua enviada especial, os Estados Unidos vão fornecer mais 36 caças F.16s ao regime de Musharraf. Outro daqueles contratos suculentos, de 144 biliões de dólares, que muito jeito dão ao Complexo. Sacrificaram a dama, mas acabam por dar cheque-mate. Até porque já conseguiram, em tempo oportuno, o aval para a entrada de tropas especiais no país. Para ajudar ao combate dos talibãs e al-caídos no Waziristão, dizem eles. Tudo aquilo parece, cada vez mais, um imenso Aldrabistão.
3. Na Rússia, os testes do novo míssil estratégico RS-24 foram um sucesso. A capacidade dos russos para pulverizarem cidades noutros continentes resulta consideravelmente melhorada. Congratulemo-nos. Por outro lado, depois de forneceram 29 sistemas de defesa anti-míssil Tor-M21 ao Irão, os russos vão agora disponibilizar a esse mesmo concessionário o, ainda mais sofisticado, sistema S-300. Convém que os russos se tornem cada vez mais perigosos e ameaçadores para que os nossos amigos americanos nos possam cobrar mais pela protecção. Temos que lhes acudir ao défice.
4. No Kosovo, a bomba-relógio continua em contagem decrescente. Os impulsos suicidários da Europa estão bem e recomendam-se. A balcanização europeia, eufemisticamente chamada de "União", também. A Alemanha e a França, sob controlo remoto, querem por força atirar-nos no poço.
5. Um prestigioso Think-Tanque americano elaborou um "doomsday-study". Encenaram uma guerra nuclear entre Israel e o Irão e chegaram à brilhante conclusão que Israel dá cabo do Irão num instante, e apenas à custa dumas módicas centenas de milhar de baixas. Dizer a um país que se implantou à custa de umas centenas de milhares de mortos que a destruição dum inimigo só lhe vai custar outras centenas de milhar de mortos é capaz de não ser a melhor das ideias. Ainda mais quando o Irão, numa lerdice inqualificável, teima em não equipar-se convenientemente para a cerimónia, isto é, demora que se farta em armar-se a rigor. Demora e agora, dizem, até recuou. É mais que justificado o escândalo israeleiro: como encetar uma guerra nuclear com gente que procrastina e retarda na aquisição de arsenal condigno? Nem uns morrem, nem outros almoçam!...
6. Na Nigéria, os pastores evangélicos capitaneiam na trepidante caça às "crianças-bruxas", que alastra entusiasticamente pelo país. "País", naturalmente, é força de expressão. Mas no melhor estilo DIY (do it yourself), sorvido directamente nas pias ambulantes da sacro-bricolage protestante, os populares (com os progenitores à cabeça) dispensam morosidades processuais e anacronismos inquisitoriais e tratam sumariamente do assunto. Turbo- lincham. É a caça-às-bruxas em ambiente de faroeste. As abomináveis crianças são, assim, e sem apelo nem agravo, "queimadas ou enterradas vivas, envenenadas, esquartejadas, amarradas a árvores ou simplesmente, em dias mais calmos, espancadas e escorraçadas para os matagais" (onde, presumo, feras menos desumanas as devorarão, sem raiva).
7. Enquanto isto, no Vaticano, Sua Santidade, o Papa Bento XVI manda aprontar esquadrões de exorcistas, de modo a dar batalha às hordas satânicas que infestam o mundo. Não sei se a ideia ocorreu a Sua Santidade depois de televisionar o Padre Borga na TV cá da paróquia. Ou algum dos seus compadres evadidos dos altares. Mas a mim até me ocorre. Ocorre-me, de facto, a figura urgente dum exorcista para tratar destes energúmenos. Só que um exorcista devidamente armado. Não só de força espiritual para lhes pacificar as almas, caso as encontrem, mas sobretudo dum bom cacete para lhes varejar o tirano do coiro, mais aquele sarrabulho despótico de tripas, bandulho e gelatina cerebral que legisla e revoluciona lá dentro.
O Papa lembra-me Édipo. Deus o livre de convocar Tirésias. Seria trágica a resposta.

Entre Vénus e Marte, anda um manicómio a boiar nos céus.
Este não é o mundo dos nossos sonhos? Pois não. É o mundo dos nossos pesadelos. Nem mais nem menos que aquele que merecemos.

Vai ser um bom 2008, não duvidem. Especialmente para aquele meu primo que mora na Rua do Apocalipse e para os filhos todos dele. Com as putas todas do seu Reino.
E nós cá continuaremos, a calafetar-nos, muito bem calafetadinhos, no nosso casulo onfalofântico. A nossa bela cela almofadada. Para nos podermos despistar e estampar pela Eternidade. Sem nos magoarmos muito. Aliás, sem nos magoarmos nada. Porque, enfim, em êxtase, absolutamente anestesiados à dor dos outros.


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