Reina um ambiente fúnebre aqui na tasca, digo ciber-tasca. O Armindo Taberneiro vagueia com ar de morto-vivo (mais morto que vivo, diga-se), e arrepela a barba de quatro dias, enquanto rumina furiosamente o palito de dois. Arvorando uma carantonha patibular de meter aflição, titubeia como se estivesse no corredor da morte e lança-nos uns remelosos de despedida verdadeiramente dignos de reportagem. A malta escuta-lhe os gemidos e persigna-se, solidária.
-"Estou desgraçado... - lacrimuge a cada passo. - Se faço como eles exigem, perco a clientela e vou à falência. Se faço como a clientela gosta, os gajos fecham-me esta merda e fico na miséria!... Puta de vida, puta vida! Dilema do caralho!... Mas porque é que eu não emigrei pró Luxemburgo, como o meu primo Ornelas?!..."
- "Está hamstérico!..." - Confidencia-me, preocupado, o Engenheiro Ildefonso Caguinchas. - "Isto da ASAE está-lhe a dar uma azia!... O gajo nem sabe para onde se há-de virar!..."
Como não sou de pentear derrotas, tento incutir-lhe ânimo:
-"Coragem, ó Armindo! A malta está contigo. Se os gajos te fecharem a porta, entramos pela janela!..."
-"Pois claro. - Reforça o Caguinchas. - Ou então nem entramos nem saímos, passamos a morar cá dentro. Assim com'ássim, já passo mais tempo aqui que em casa. E as brasileiras é só mandá-las vir pelo telefone!..."
-"Olha!... - Reverbero, num clarão arquimédico por alturas do eureka. - A solução, em último caso, é mesmo essa: em vez de clientes, passamos a moradores. A hóspedes! Convertes o espaço de público em privado. Ou então declaras isto como tasca maçónica. Promovemos o Engenheiro a arquitecto e já ninguém se mete contigo. Para a camuflagem ficar perfeita, mandas capar o "Benfica" e passamos a chamar-lhe "Laica"!..."
- "Alto aí! - Brama o Ildefonso, avespanhado. - Os tomates do "Benfica" são sagrados. Se é para mutilar o animal não contem comigo!..."
-"Não seja por isso. -Riposto, apaziguador. - Não se transexiona o cachorro. Há melhor: dizes que isto é um casino típico e está feito. Nos casinos não se aplicam as leis da ASAE nem da DGS. Foi o próprio soba-jagunço da ASAE quem ensinou o truque!...."
Enquanto vamos desbobinando estes cenários galvanizantes, o Armindo fita-nos com olhos vagamente alucinados. A certa altura, caleidoscopando os farolins de médios a máximos, explode estrondosamente, expelindo uma nuvem heteróclita de impropérios, gafanhotos e restos do palito (que, mais caralho menos foda-se, se pode traduzir para português suave no que se segue):
-"Amigos da onça! Calhordas! Flembusteiros! Eu aqui nesta angústia e vocês ainda gozam com a minha desgraça!... Ainda me encharcam o toutiço com maluqueiras sem pés nem cabeça?! Hein?!! Acham bem mofar da desgraça alheia? Temos agora o quê - ratazanas fedorentas? Cágados ninja?!..."
-"Mas qual quê, ó Armindo... - Protesto com veemência. - Ninguém está a mofar, ora essa. Eu, pelo menos, estou a falar a sério, juro que estou, que o Engenheiro, como todos sabemos, nunca se sabe."
- "Engenheiro não, arquitecto. - Corrige o Ildefonso. - Ou melhor, engenheiro arquitecto. Universal."
Mas o Armindo está deveras nervoso e não amaina. Pelo contrário, amarinha às paredes e trepa aos azeites. Produzindo sulfurescências e enxofraduras do seguinte teor:
-"Olha, ó Dragão: eu quero que tu mais esse canivete suiço das profissões liberais vão ao grande caralho que vos foda! Se acham que eu tenho cara de burro ainda vos prego um par de coices!..."
Nunca vimos o Armindo numa tal fúria. Não vão regressar-lhe os caprichos do cutelo, bem tento desarmadilhá-lo:
-"Mas, ó Armindo, que macaco te mordeu? Será que não vês como também estamos aqui preocupados com esse teu terrível problema e tentamos pesquisar uma solução? Somos teus amigos, pá! essa desconfiança quase nos ofende. O Caguinchas até já tem os olhos húmidos."
Pois é, ó Armindo, meu velho. - Confirma e certifica o Ildefonso. - É da sede. Sempre que me falta o vinho na goela, desata-me a nascer água dos olhos. Deixa-te de merdas, ó Thor das adegas, e traz mas é um penalty do especial!..."
Esta convocatória brusca ao dever tem o condão de acordar o Armindo do seu transe pré-licantrópico. Com a bênção de Darwin, o autómato sobrepõe-se à besta. Num ápice, ciranda maquinalmente e regressa de trás do balcão com a pomada requesitada. Transfigurado, graças agora a Deus, para a pessoa sebosa do costume, vai conferenciando enquanto atesta o copo:
- "Isso seria tudo muito bonito se não fossem os chibos!..."
- "Chibos?! - Ouriço-me eu, apanhado desprevenido.
- "Pois. - Riposta ele. - Chibos, bufos, porcos-sujos. O mundo está cheio deles e neste país até transbordam!..."
- "Será, mas aqui entre a malta não há chibos! - Obsto, resoluto. - Direi mais: o bairro inteiro está contigo. De alma e coração. Já disse que partia os cornos ao primeiro que se baldar!..."
-"Então e o Chóninhas Bobone do Béu-béu?..." - Relembra-me ele, com serena erudição.
Amarga recordação que rompe o idílio de toda uma comunidade humana: o Chóninhas do Béu-béu. A ovelha ranhosa da rua. O sicofanta de plantão aos caixotes. O psicoxiúro fanático das higienes cá do burgo. O fã histérico das ASAEs todas do planeta. O mordomo-bravo da municipalidade almeidante. Como é que me fui esquecer duma tal anémona patrulheira?... É o cabrão do Alzheimer a corroer-me os circuitos, provavelmente, diabos o levem.
Neste momento confuso, o leitor interroga-se, mas eu explico: Chamamos-lhe o Chóninhas Bobone do Béu-béu porque só se avista fora da toca - um rés-do-chão esquerdo onde vive emboscado, mirone e rosnador o restante da vida-, conduzido pela trela dum canino ridículo, seu mentor, director artístico e ídolo religioso. O cortejo de ambos é invariável: à frente marcha o quadrúpede soberano; atrás, e pela trela, segue o bípede lacaio e afectado. O cerimonial implícito também nunca varia. Cumpre mesmo uma espécie de rito sagrado: o caniche marechalante vai farejando e mijando rodas, troncos de árvore e candeeiros; o servo obediente escudeira-o com fidelidade, de mãozinha pronta e saqueta devota. Tudo aquilo atinge o clímax por altura da desova fétida do béu-béu. Chegados ao altar da sua eleição, este, retroagachando-se em semidecúbito anal, começa a ganir, mimoso, enquanto arreia a bosta no passeio indefeso. O acólito, cheio de ternuras, estimula-o na fineza plutocrática: "Vá Bibi, só mais um bocadinho, está quase!... Ai que lindo presente que fez o meu Bibi!... Agora a papá vai recolher o tesouro..." E lá estende a mãozinha enluvada na saqueta-de-vénus, arrecadando a pérola com volúpia - no bolso, se não houver um caixote perto.
Era mesmo numa ménage republicana destas que as duas alimárias estavam, um dia destes, vínhamos, eu e o Engenheiro (agora Engengeiro-Arquitecto) Ildefonso Caguinchas, a passar. Diante duma tal sincronia urbanescente, o Ildefonso, repugnado, não se conteve de bradar:
- "Chiça!, que nojice!" E, para reforço sólido das palavras, cuspiu - sonora e protocolarmente - no chão.
Apercebendo-se do gesto, o Chóninhas Bobone, dedilhando a trampa do Béu-béu, rosnou e pingarelhejou de lá qualquer coisa sobre etiqueta e boas-maneiras. Quis o azar que o Engenheiro -um tísico quando lhe convém - ouvisse. Aproximou-se do delicado mas acocorado indivíduo e declamou-lhe com exactidão:
- "Desculpe a minha distracção, cavalheiro. Não me apercebi, tanto ou mais que da sua cara de penico, da sua cara de cu a pedir penico. Com recipiente tão oportuno e exigente, a próxima, juro, não cometerei o crime de desperdiçar no chão. "
E dito isto, sem mais delongas nem prelúdios, repimpou-lhe um bela lostra na tromba. Que legendou do seguinte modo:
-"E agora que já se sente mais lubrificadinho é só, à maneira da Carochinha, prometer alvíssaras a um qualquer progressista Ratão que o encave, que piça minha não é escovilhão de boca de esgoto."
Depois disto, não admira que o Armindo Taberneiro tema as velhacaturas e malsinarreias do Chóninhas Bobone mais o seu ilustre e apofântico Béu-béu.
4 comentários:
"clarão arquimédico por alturas do eureka"
":O))
estes contos do Armindo Taberneiro são uma maravilha.
Dragão:
Vou armar-me em crítico, porque bebi um copo de branco agora mesmo, depois de meter uma bucha de broa de Avintes e estou com ideias.
A tua escrita é boa, não é preciso dizer-te outra vez. Tem estilo, panache, rebusca termos esquecidos como Camilo ou Eça faziam com as oito classes das palavras ( fui professor de Português, pá, quando tinha os meus 25 anos...). É um gozo ler o que escreves em textos curtos e com acinte certo se o alvo for definido. Aquela do "bácoro" é de rir e de chorar por mais. Ad hominem, sem ser ad persona.
No entanto, não é a primeira vez que leio estes textos mais literários sobre as aventuras do Caguinchas ou o Ildefonso ou o Taberneiro.
Faltam-lhe uma coisa essencial, a meu ver: enredo suficiente. Intriga narrativa com princípio, meio e fim. Substância literária, voilà.
Sempre que venho aqui ler as tuas pérolas, espero sempre por uma surpresa que me espante e como sou exigente p´ra caraças, espero o melhor. Porque tu um dia destes chegas lá. E nessa altura, estarei aqui para te dizer: é isto, Dragão!
É disto que se fazem os escritores com E grande.
E podes crer que és capaz, porque o estofo está aí todo, acho eu.
Espero pela boa onda, somente.
Caro José,
só posso agradecer a benevolência.
Mas a verdade é que isto é um mero blogue. Não é o espaço adequado a certas coisas.
Estes micro-episódios são como tiras de Banda desenhada apenas com palavras (já que o meu jeito para o desenho ainda é pior que o meu jeito para a literatura). Não podes estar à espera dum filme - um enredo, uma novela -, onde existe e pretende existir apenas uma caricatura, um flash, um breve retrato à la minuta (como dantes se dizia). Mais que isso não caberia aqui e duvido, sequer, que alguém lesse (tirando a meia-dúzia de irredutíveis gauleses).
Mas não julgues que não percebo o teu travo de insatisfacção no palato. Até me honra. E resume-se ao seguinte: este sacana dá os personagens, porque não espreme só mais um bocadinho e dá o enredo?
Pois pá, até merecias. Porém, convém não esquecer: isto para mim só tem interesse enquanto carreira de tiro instintivo. De chofre. Em corrida.
:O)
Até porque nem tenho intuito nem tempo para mais.
Humm...um blog, actualmente, é o sítio onde consigo ler certas crónicas, textos e récitas pequenas.
Como por aqui por vezes acontece, nesse registo ( palavra engraçada, inventada pela novilíngua dos correctos) de fixação do instante "a la minuta", precisamente como uma minuta e sem atender ao minuto.
Ora é isso mesmo que refiro: a arte de concentrar em poucos parágrafos uma catilinária de estrondo contra os costumes.
Como já li por aqui, várias vezes e raramente leio em jornais.
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