Está entranhada no rectângulo uma superstição feiticista que consiste basicamente nisto: se um encantamento não resulta (entenda-se, as eleições) não é porque esse encantamento não funcione, seja porque provém de candonga marada ou provoque efeitos precisamente opostos às receitas e prescrições mágicas; não, de maneira nenhuma: a coisa não funciona por enquanto: porque não se insistiu ainda suficientemente nela. Há que estafá-la, à maneira dos cavalos selvagens, de modo a domá-la e torná-la dócil aos nossos caprichos hípicos. Daqui a 100 anos, caso ainda reste algum resquício do rectângulo, quiçá um dos ângulos mais a norte, teimaremos ainda na emolução parola dum Sísifo atoleimado. Havemos de vencer a crise pelo cansaço, ou pela náusea! Algum dia, está garantido nas escrevinhaduras profanas e nos arcanos mágicos, num futuro miraculoso, após uma alvorada chilreante (mais uma), o pedregulho transformar-se-á numa cornucópia e, não só não rebolará de volta ao ponto de partida (novas eleições), como, deslumbrantemente, desatará numa multiplicação de mariscos e esplanadas que só visto! Nesse dia radiante e maravilhoso, muito provavelmente, já não restará corrupção porque seremos todos corruptos, nem pobreza porque seremos todos indigentes (mentais, seguramente, porque até já vamos muito avançados), nem ignorância porque seremos todos cientistas, nem mau gosto porque seremos todos artistas, nem doença porque seremos todos cobaias, nem falta de habitação porque estaremos todos emigrados, etc.
Portanto, lá vem mais do mesmo. Insistiremos no processo do costume, onde das mesmas causas tentaremos pela enésima vez a extracção de efeitos opostos. Sem bilhete para a taluda, aguardamos, desvairadamente, o milagre. Se a estupidez, dizem, alivia, então a extrema estupidez deve transportar ao Nirvana. Deve ser aí que apontamos, quais foguetões excitados, mas rapidamente murchos após cada descolagem sufraginosa.
Convinha, todavia, que orçássemos a dimensão da vigarice. Se ainda fosse realmente democracia, como na origem grega, em forma de sorteio e não eleição condicionada, então, se bem que remotas, sempre subsistiriam algumas hipóteses de acerto. Tal como na lotaria. Poderia até ser em forma de raspadinha, que seria de superior extracção e probabilidade de prémio. Da maneira que está, nem é democracia que se veja, nem há hipótese alguma de fugir à degradação sucessiva, ao mero desperdício de esperanças, projectos e fundos. E quando afirmo que não é democracia, estou simplesmente a recorrer à definição dum dos padroeiros fundadores da seita - Rousseau. Ainda aqui recentemente o citei e expus: Rousseau não acreditava que a democracia funcionasse à escala humana e, em contrapartida, considerava a melhor forma de governo a "aristocracia electiva". Significava ele com isso exactamente aquilo que nos flagela hoje sob o eufemismo anglocatita de "democracia representativa". De tal modo avançada que, se noutros tempos, o aristocrata acontecia por valor guerreiro e hereditariedade, agora, por sortilégio da treta, irrompe por urna investidora. Em vez da excelência (o aristos), a estatística, a meta-sondagem, o sufrágio. Quer dizer, dantes, os privilegiados obedeciam a um critério e a uma lógica; agora obedecem a outra. Outrora iam para a guerra, iam para padres ou iam para a corte; agora vão a votos. O povo, doravante, é montado e toureado na mesma, mas com um bónus: elege os seus cavaleiros, jóqueis e hipocratas (com mais ou menos esporas, chibata e rédea, estes; mas com super antolhos e introjectadíssimo freio - de tal sorte que já ninguém, com olhos de ver, percebe muito bem se está perante uma cavalgadura de carga ou duma mescla de mula e cabra-cega, o tal povo). É claro que estes novos privilegiados aspiram igualmente a mordomias vitalícias e cumprem determinados critérios prévios: antes de serem escolhidos pelo eleitorado remanadescente, são pré-seleccionados pelas divindades alógenas e respectivos sacerdotes consagrados (entenda-se. as "instâncias inefáveis do Acolém" e os mass-media em perpétuo alarido e campanha).
Assim, estamos perante uma "aristocracia electiva" não direi de "pleno direito" mas, seguramente, de "estado de direito", ou seja, de direito aleijadinho ou paralítico. Às fatias ou fardos. E funciona como funciona, ou seja, disfuncionando. Às arrecuas e às avessas... O que, de resto, é bem patente nos resultados e na deterioração sistemática e fatal dos resultados. Donde é necessariamente deduzível que se trata duma "aristocracia" de contornos assaz peculiares. Peculiares, aliás, e nunca é demais referi-lo, no sentido etimológico do termo, de pecúlio, peculato e, a limite, pecuária. Nada nela remete para as aristocracias guerreiras ou fundadoras do antanho, mas antes para as aristocracias decadentes de mero parasitismo cortesão, em épocas de finis patriae. Reforço: as pecuárias jet-set, ontem como hoje. Afundam-se (e afundam o país) em venalidade, imbecilidade, frivolidade e corrupção. Da sua saga genética, ressalta uma mania obsessiva: o pretexto curador ascende rapidamente a guardanapo ou babete revolucionário - os novos pseudo-aristocratas, afinal, apenas pretendiam alçar-se aos camarotes e banquetes dos anteriores. A gulodice cede lugar ao devorismo. Tudo espremido, trata-se, portanto, em bom rigor, não dum "governo pelos melhores", mas dum "desgoverno pelos piores". Não acreditem em mim: confiram a sucessiva qualidade dos eleitos ao longo do último hemi-século. Deslumbrem-se com a actual fornada de "baronetes e viscondes" a concurso. Com efeito, falando com propriedade, a "aristocracia electiva" salda-se numa cacocracia desatada. Que, por dinâmica intrínseca, nunca melhora coisa nenhuma: apenas degrada, deteriora e corrompe. Não o faz sequer por mal, quer dizer. não é deliberado: cumpre simplesmente a sua natureza, dá vazão ao seu reflexo mecanizado; até porque para haver deliberação teria que haver autonomia mental, coisa que desconhecem, odeiam e procuram ilegalizar olimpicamente. Mesmo para escolherem o mal teriam que praticar alguma forma de livre-arbítrio (meu Deus, que horror!)... Afinal, como diziam uns pseudo-filósofos aqui há uns anos atrás, não passam de máquinas desejantes. E defecantes, por sina e ápice.
Desta forma, instalou-se no retângulo todo um esquema porfiado, abnegado e concertado de piorar e delapidar o sítio. Estes cacocratas auto-denominam-se, com pompa e cagança, as elites. Sendo elites do piorio desembaraçam-se como "nulites", a nata da nulidade e da nacional-anulação. Consagram-se como os privilegiados da situação, herdeiros legítimos e hipertrofiados das prerrogativas exclusivistas e snobes dos piores dos seus protótipos pré-revolucionárias. A classe, de resto, veio piorando através dos tempos (por falar nisso, um pouco à semelhança das outras, excepto aquela que já irrompeu estragada). Da fundação à corte, do valor guerreiro à frivolidade, o percurso foi sempre a descer. Atingido o grau zero, parecia que já não era possível descer mais. Felizmente, Descartes congeminou os números negativos. E assim, de certo modo, estes artistocratas eleitos conseguiram e conseguem partir do pior para ainda mais abaixo, quer dizer, não apenas macaqueando como superando a degradação prévia. Outra definição, de índole mais exacta, para "esta aristocracia electiva" é a de "uma aristocracia mais que nula, abaixo de zero". Definição, essa que, dada a exaustiva verificação na realidade, corre sérios riscos de ascender a axioma. Assim, se os cortesãos de Versalhes experimentavam um reduzido número de virtudes a sucumbir num mar de vícios, os actuais barões partidéricos não padecem dessa angústia crepuscular: esbaforidos da virtude, refocilam no total conforto absorvente duma fossa de vícios. A sua snobice, a sua frivolidade, a sua venalidade integral alcançam recordes sucessivos; o seu desprezo pelo povo jamais cessa de se dilatar e reproduzir; a sua cobiça por prebendas e privilégios nunca esmorece; o seu zelo absoluto pelo interesse pessoal suplanta qualquer outra consideração de ordem pública. Aqueles que dão hossanas ao estado apenas pensam em explorá-lo no seu próprio interesse privado; os que clamam pela privatização apenas pensam em extorquir vantagem pessoal à custa da delapidação do estado. Quer dizer, uns pensam em sacar internamente, os outros externamente. O pensamento, esse, não varia... Avaria. No duplo sentido: De finura e de mal função.
Entretanto, este culto exacerbado e parlapatão do pedigree de arribação ideológica (globálatra) tem consequências sérias e, ultimamente, bem documentadas. O chamado populismo de arremeço, se repararem bem, surge crivado de ápodos e epítetos classistas, snobes e afectados: são energúmenos faxizóides, tipos rascas, chungas, labregos, populaça, saloios, gentalha sem nível, malcriados, grosseiros, sem maneiras, incapazes; enfim, plebe, que nojo!... Como se atrevem a querer meter as patas sujas nas neo-cortes laicas, nas televisões e bancadas?!! No rectângulo, a repugnância geral das "elites" - dos cacocratas políticos aos cacoescribas e cacomentariado por conta - pelo Chega (como anteriormente, à falta deste, pelo PNR), não reflecte uma qualquer genuína discrepância programática (nenhum partido tem ou respeita qualquer tipo de programa, nem ninguém quer saber disso, entre o otariado basbaque), nem, tão pouco, nenhuma preocupação séria com o quer que seja, mas apenas a denúncia da falta de pergaminhos ilustres, de berço democrático, de chupeta e fralda na ama da treta correcta, de brasão nobiliárquico antifassista e salazaroclasta, em suma, não é gente bem: mentalmente e politicamente esterilizada. O facto do pastor Ventura, ainda por cima, atirar parecenças fisionómicas retintas à célebre figura do Bordalo, o Zé Povinho, só agrava a azia e o asco dos grã-finos institucionalizados.
Quanto ao método operativo desta cacocracia, convém escalpelizá-lo. Socorro-me duma alegoria para o efeito. Sem querer armar ao platónico, todavia. Imaginem, por conseguinte, o Estado como um cancro e a nação como um organismo onde esse cancro se implantou. Obstar-me-ão: "Ah, mas isso não é fictício, ó Dragão, é a realidade!" Pois, seja. Avancemos... Os partidos, claro está, são metástases desse mesmo cancro. Cada metástase tem uma determinada mania malfazeja apontando a determinado órgão, membro ou sistema predilecto. Fazer mal de uma determinada maneira esgota o seu projecto para o organismo; competir contra as metástases competidoras e concorrentes, de modo a impor a sua mania como prioritária e açambarcadora do estado para o efeito, resume a meta da sua existência. Cada partido, agora em linguagem não cifrada, apenas reconhece a capacidade maligna dos rivais (o que é até honesto, revelador e genuíno, pois não há outra), sendo que esta é tanto mais celerada quanto aqueles se devotam a áreas afastadas ou contrárias à sua - o lado esquerdo ou direito do organismo, as vísceras ou os músculos superiores, o ânus geral ou os genitais masculinos, etc. Tudo decorre dum momento inaugural, ou pig-bang socio-político, remontando à alvorada abrilabunda do 25 das Petas. Mal brotaram, fétidos e ranhosos, da cloaca matriz, logo os partidos desataram a inventariar e atribuir todos os males do organismo ao anterior regime. Que se resumia e decorria dum mal principal e avassalador: a ausência dum cancro metastizado no organismo. Porém, isso congregava-os mas não os satisfazia nem realizava plenamente. Pelo que não se ensaiaram de desembestar logo de seguida na denúncia pública e publicada de males uns nos outros, e a alardear, bem como demonstrar, caso a ocasião se lhes propiciasse, de como eram capazes e compenetrados a fazerem sempre pior. Traduzindo para casos concretos: o partido X, uma vez eleito, fez bastante mal às finanças, sob a teoria que era aí que se impunha danificar prioritariamente; o partido Y protesta contra o anterior pela sua falta de eficácia e sentido estratégico, e promove-se ao otariado como sendo o campeão da malfeitoria à educação e à defesa, por exemplo, assumindo-se como bem capaz de fazer muito pior que o anterior nessas pastas; por seu turno, o partido Z, com um desprezo especial pela saúde, a agricultura ou a habitação, irrompe em denúncias de esbanjamento de oportunidades e fundos pelos anteriores, logo coroladas de clamores de superlativa proficiência e determinação em fazer muitíssimo pior nas áreas da sua putativa perícia. E por aí adiante. Há até partidos com apetite por todas as áreas e créditos firmados na piorização de qualquer uma delas. E há ainda partidos, ou metástases, de nicho: causas animalejas, por exemplo; climatérios urgentes, noutra hipótese; sexualidades delirantes, eventualmente. Transpondo ao presente, os aristocratas concorrentes vão ter alguma dificuldade em fazer pior que os actuais demissionários na educação, na saúde, na segurança interna, na agricultura et al, mas em contrapartida vão seguramente conseguir piorar noutras áreas menos martirizadas ou ainda não suficientemente fustigadas. Na cultura, por exemplo, qualquer um consegue e trata de não desperdiçar a oportunidade; na defesa, idem, aspas; nos negócios estrangeiros, a mesma coisa; mas essas são as fáceis. Outras há mais cabeludas e exigindo uma maior especialização, digo, devoção. Ninguém tema. Eles conseguem. A verdade é que não há como falhar. Seja qual for a estirpe eleita, o resultado é garantido e invariável: vão conseguir fazer pior. Mesmo que reelejam os mesmos, o pior está garantido. Eles próprios (como qualquer um dos outros) em cada dia de desgovernação pioram e deterioram fatalmente, É essa, simultaneamente. a fórmula única e a dinâmica compulsiva, semi-zombi, que os ocupa e dirige. São pré e pós eleitos para nada mais que isso. Aliás, é até para esse inescrutável efeito que existe o cancro nas suas múltiplas metástases: para garantir, sem sombra de remissão ou dúvida, que a possibilidade de cura ou melhoria, no todo ou em qualquer das suas partes, não passe duma quimera. Dum tabu. E nem sequer se trata duma nação transportada à eutanásia: não há qualquer bondade a concurso. É mesmo cacotanásia: é mesmo liquidar Portugal da pior maneira possível. Esta "aristocracia electiva", sem máscara, é mesmo uma anticracia. Quer dizer, não é sequer uma forma de governo, mas apenas uma deformidade, repelente e continuada, deste.
Posto isto, se alguém ainda teimar em inquirir que recomendação faço, de comparência ou de voto, (sendo certo e seguro que, por regra e costume, não meto lá os pés), devo declarar, solenemente, o seguinte: é irrelevante. Se ides lá ou não ides lá; se votais ou não; neste, naquele, aqueloutro, ou mesmo grafais digna genitália, o resultante é o mesmo. Fazei, pois, como vos aprouver ou julgardes adequado. Como causa não existis; como efeito não contais; como processo de procuração assinais de cruz.
PS: Mas não creiam: não são todos iguais. De todo. Bem longe disso, são todos diferentes. São todos, enquanto conjunto, o mesmo tumor maligno que Portugal padece, mas são também, cada qual, uma metástase especializada, alocada, encarniçada e letal. Por outro lado, o aumento do seu número activo não atesta de qualquer melhoria do organismo; pelo contrário, manifesta um estágio cada vez mais avançado da doença. De tal ordem, que não dista muito a hora em que o governo coincidirá com uma mera Unidade de Cuidados Paleativos.