quinta-feira, outubro 06, 2022

Para que Conste (r)

 



«Bailly, que passa as noites na sua comissão de abastecimento, enquanto Lafayette dá ordens às patrulhas, conhece bem a verdade. Ouviu rondar esse homem invisível que trafica nas épocas de crise: o especulador. (...)

«Em dois meses, expedem-se duzentos mil passaportes. Os nobres emigram, arruinando todo um comércio que lhes alimentava os prazeres. O dinheiro segue o mesmo caminho e o numerário torna-se raro. A desocupação é geral. Acabam a criar-se, em Paris, oficinas nacionais: as oficinas de caridade, para dar trabalho a cento e vinte mil desempregados. Nem por isso se tornam menos frequentes os ajuntamentos, que precediam os motins. Bailly confessa que se alegrava com "os dias de chuva". A situação financeira é lamentável. O deficit (um deficit que hoje nos faria rir) é de cinco milhões de libras. Os impostos são opressivos e arbitrários. O regime fiscal destrói o país, provoca o desemprego, o marasmo dos negócios, o descontentamento geral.»

Nestes trechos, Henri Robert faz-nos uma descrição sucinta do ambiente que precedeu a Revolução Francesa. Concentremo-nos, para já, na frase "o regime fiscal destrói o país". Terá acontecido então, no crepúsculo do século XVIII, mas experimentamo-lo também agora, na aurora do século XXI. Pelos vistos, repetem-se as cenas históricas, como se repetem as crises e alguns dos seus ingredientes característicos. E não deixa de ser espantoso como o "estado" dum determinado país atenta contra ele, país, e, por conseguinte, e a limite, contra si próprio. Enigma capital: o que levará um aparelho de estado ao suicídio - à cegueira de não ver que quando agride alarvemente aquilo que o sustém é a sua própria derrocada que escava? Em suma, o que é que transporta aquilo que é suposto ser uma sofisticação civilizacional, num súbito roldão, à barbárie revisitada?

Note-se que quando digo "barbárie" não quero significar apenas o tumulto asselvajado nas ruas, vulgarmente conhecido como "revolução". A revolução é apenas uma barbárie decorrente, uma prossecução, senão fatal, seguramente lógica. Não: é a barbárie inaugural, desencadeadora (e "legitimadora") de todas as outras, que sobremaneira alvejo e que se traduz, por exemplo, em fórmulas aparentemente assépticas como "regime de impostos". Quando este "regime de impostos" mais não camufla que um "esquema de metapredação", não há volta a dar, estamos de regresso à barbárie que só não é pura porque é sofisticada, que só não é selvagem porque é burocrática. Ora, um Estado que assim se coloca fora da civilização, porque atentador-mor contra a vida dos próprios povos, é um mecanismo pária, hipertrofiado e insaciável que, tanto quanto justifica, convoca à legítima defesa. Até porque um Estado que assim age não serve os interesses da sua própria comunidade nacional, mas os meros apetites de partes corruptas dela, bem como as estratégias de potências externas. Como se procede à legítima defesa? Fazendo uma revolução? A revolução é só o culminar da acção desagregadora do Estado. Chamar-lhe solução para o problema é o mesmo que confundir o colapso final dum organismo com o remédio santo da sua cura. A verdade é que não existem remédios santos, abracadabras mágicas nem panaceias instantâneas para infecções e neoplasias cuja génese decorre há séculos. Tão pouco dispomos de ciências, ainda menos históricas, com capacidade de decifração exacta e infalível (que é como quem diz, matemática) da imensidão de factores, condicionantes e incógnitas em jogo. Não é apenas mega-iludido quem assim pensa: é criminoso. E gera, regularmente, ruínas, quando não catástrofes.


O facto é que os reinos, ao descambarem em nações, contraíram o Estado Moderno como quem contrai um cancro - daqueles em forma de necrose particularmente autofágica. De resto, o Estado e o "Mercado" não poderiam ter germinado e crescido um sem o outro (isto é, sem uma circulação desembaraçada de capitais e uma protecção proficiente e estratégica das rotas e das lógicas comerciais) . Estado e Finança são inseparáveis. Entretecem-se e reforçam-se. Afinal, sempre foi preciso financiamento para exércitos e obras públicas. Só que como o Estado em relação à Nação, também a Finança começa por servir o Estado e acaba a servir-se dele. Por outras palavras, assim como a Nação desenvolve um Estado, o Estado desenvolve uma Finança. À medida que se hipertrofia o Estado, hipertrofia-se ainda mais a Finança. Necrose com necrose se paga. Quanto mais o Estado devora a Nação, mais a Finança digere o Estado. De modo que a sujeição nanificante (e nadificante) da nação a um estado descomunal agrava-se pela subserviência deste a uma Finaça desorbitada e exorbitante. E tanto assim é, e tem sucedido, que podemos hoje em dia testemunhar o nosso próprio Portugal a ser estrangulado por um Estado que a Finança traz pela trela.


PS: Este postal, eventualmente, ajuda a compreender melhor o anterior. Para aquelas mentes mais predispostas a desastres, sobretudo. Depois que o Rei se degrada a um "Estado", não tarda muito o Estado desembaraça-se do Rei. E note-se que, mesmo antes de cortarem a cabeça a Luís XVI, os revolucinhários reduziram-no a semi-enfeite.

7 comentários:

muja disse...

Reduziram-no a enfeite e ele deixou. Foi na cantiga e deixou liberalizar os mercados e eles, claro, liberalizaram-se de sua Majestade... Depois venderam o veneno como cura para o envenenamento. Até hoje. Se não bate, aumenta a dose...

muja disse...

Dragão,

importa-se que faça um apelo a voluntários para uma empreitada que tenho em vista, e que julgo ser do interesse geral?

dragão disse...

Muja,

esteja à vontade. Confio no seu sentido do bem comum.

Figueiredo disse...

Portugal desde 2011 que tem entre 1 a 3 Milhões de desempregados.

As empresas em Portugal vivem todas ou quase todas à custa do Orçamento do Estado (OE) financiado com o dinheiro dos cidadãos Portugueses. Não produzem nada ou não querem produzir, nem tão pouco criam postos de trabalho.

Em Portugal o trabalho é negado ao cidadão, onde até para empregado de balcão se entra por cunha.

Nas empresas/negócios/estabelecimentos/serviços, públicos ou privados, são todos familiares ou amigos uns dos outros que lá estão a trabalhar.

O Estado dá subsídios ou impõe cotas no sector público e privado para contratarem somente mulheres, promovendo assim o desemprego dos homens, ao mesmo tempo que dá também subsídios às empresas para contratarem pessoas com deformações físicas e problemas mentais.

Temos a geração (ou gerações) mais mal preparada de sempre, a que possui 12º ano, licenciatura, mestrado, ou doutoramento, que para além de não terem perfil e conhecimento para exercerem funções nas áreas da formação académica que adquiriram, possuem elevados índices de ignorância e iliteracia, são incivilizados(as), mal-educados(as), e incapazes de se desenrascar.

Se não reverterem este cenário, Portugal e o Povo Português estão condenados.

Vivendi disse...

A UERSS também já está num momento que precede algo de estrondoso...

muja disse...

Obrigado.

A empreitada é a seguinte:

Houve uma alma caridosa e bem-aventurada que digitalizou os Discursos de Oliveira Salazar, a biografia do F. Nogueira com mais dois livros deste, e ainda mais uns poucos de variados autores que só se encontram em alfarrabistas e nem todos.

O que me proponho fazer é ir além da digitalização e levantar o texto das imagens para poder ser, quer editado em livro electrónico, quer publicado em páginas ou blogues.

Do que preciso é gente para corrigir as gralhas do reconhecimento óptico dos caracteres.

A técnica e meios para esse trabalho são os mesmos que usam no Projecto Gutenberg, que alguns devem conhecer.

Eles dispõem de um site e um processo apurado que permite aos voluntários fazer a revisão de páginas soltas a seu bel-prazer e a coordenação desse trabalho através de várias etapas de revisão e formatação.

Felizmente, disponibilizam o software, o que me permitiu replicar a ferramenta a meu cargo, e já fiz a revisão de um livrito da União Nacional para me inteirar do procedimento.

O objectivo principal é levantar o texto dos Discursos e, se possível, o da biografia. Em fase inicial e para afinar o processo, um ou dois do F. Nogueira.

Aqui é o sítio dos do Projecto Gutenberg: https://www.pgdp.net/c/
A informação que lá está vale para esta empreitada.

Para manifestar interesse ou perguntas mandem letra para o meu email: ultramaris@yahoo.com

dragão disse...

Está então lançado o repto.

Leitores, às armas! Isto é, aos Discursos!