domingo, janeiro 16, 2005

Um Blogue de Fulano de Tal

Dei comigo a pensar. É um distúrbio mental que ocasionalmente me visita e desinquieta. Nada de muito grave, tranquilizai-vos. Nada sequer que ponha em risco a minha sobrevivência ou a harmonia mortuária que urbanamente nos abençoa.
Num momento de ócio, lembrei-me desses grandes nomes da nossa blogosfera, e da cultura em geral, essas poderosas chancelas –os Mexias, os Pereira Coutinho e outros que tais -, e dei comigo –como já referi- a pensar. A matutar, melhor dizendo. Não sobre o seu –deles- talento ou genialidade, que são por certo descomunais e merecedores de todos os encómios deste mundo, nem, muito menos, sobre as obras-primas que produzem, pois também essas, quais tapetes mágicos donde os autores acenam longínquas esmolas a maltrapilhos mentais, me sobrevoam a grande altitude. Não; é coisa mais brejeira, mais ao nível subterrâneo dum biltre vandalizador da língua pátria como eu. Dum escrevinhador de vão de escada, enfim. Refiro-me ao “pedigree” daqueles anjos. Ou por outras palavras, e avançando-vos desde já, de chofre, com uma sinopse: a sua, deles, genialidade será paragénita – irrompeu-lhes um belo dia, cérebro a fora, como a acne nos rostos dos adolescentes menos dotados-, ou, pelo contrário, será congénita e herdada de linhagens insignes, pejadas de atributos e qualificações igualmente ofuscantes. O Mexia, por exemplo, é alguma coisa àquele senhor, todo ele inteligência, a escorrer argúcia, que é ministro? O Pereira Coutinho, de igual modo, partilhará laços de sangue com aqueloutro cavalheiro, superlativo empresário, a pingar riqueza, que até tem helicóptero e uma ilha privada na costa brasileira?
Há muitos outros e haverá, mesmo nestes, outras questões importantes –se além do génio, também tiveram acne? Ou bexigas doidas, ou pé chato, etc? Se, tendo helicóptero, o putativo parente, é ele que o conduz ou tem motorista? – mas não nos dispersemos. Contentava-me com a resposta à questão singela do pedigree. Têm-no ou não? São adquiridos ou congénitos? É dom divino, milagre pessoal, ou legado dum bando de espermatozóides excelentíssimo?
Cada vez mais estrangeiro no meu próprio país, ignoro com quantos neurónios tenho estes detalhes, estas ninharias. Estou certo que alguma alma benemérita - qualquer porteira, cabeleireira ou vendedora de peixe - cá do burgo saberá esclarecer-me sobre este assunto e resgatar-me às garras desta vexante ignorância.
Entretanto, depois de me cocegar por breves instantes, o pensamento evade-se, em espirais etéreas, pelos campos elísios da fantasia. Vislumbro-me, num delírio caleidoscópico de cores, sabores e aromas, ataviado dum apelido todo-viçoso, gazua desferrolhante ds mais renitentes portas. Dou comigo transportado num turbilhão de ideias, todas elas sublimes, elevadas, culminantes, a galope por vales de cornucópias. Num ápice, de olímpica empreitada, escrevo romances, contos, novelas, poemas, ensaios, artigos, decretos, livros de culinária, breviários, anedotas, cada qual mais sumptuosa que a precedente. Sinto-me implacável, sobrepujam-me relâmpagos e pirotecnias celestes em prelúdio de hiantes partos cósmicos. O prelo e os escaparates arfam e resfolegam, desejosos das minhas tiragens. Editores disputam-me, nem sempre civilizadamente, às vezes com tumultos. Faminto de posteridade rápida, atiro-me a ela à dentada, em braçadas de mariposa haurifegante. Um fulgor convulsivo e compulsivo invade-me, encharca-me, atesta-me de superpoderes. O universo inteiro sustem a respiração na iminência duma vírgula minha. Será vírgula? Será ponto e vírgula? Serão reticências?... Nada me escapa; não é apenas o écran do monitor: são paredes, azulejos de WC, papelões, cortinados, toalhas, vestidos, guardanapos. Escrevo e assino. Por onde quer que passe, deixo um rasto inconfundível, uma baba, um monco genial, único, demiúrgico. Interrompo apenas para recobrar fôlego, para confabular com as musas. Mas o talento extravasante, a energia artística efervescente, aos borbotões, não me dão tréguas. Propulsionam-me para mais grandiosos voos. Também os blogs –os sites, os fóruns, as play stations- não deixo impunes. Nada de Dragoscópios, Pinóquios, Solilóquios ou anonimatos que tais. Agora há toda uma família que me catapulta, todo um apelido luzidio que urge ostentar. Não é uma criatura qualquer que me transporta. Não é um mija-na-escada avulso que serve de invólucro a tamanho espírito. É uma criatura de marca. Uma embalagem personalizada. No topo, à entrada, já entrevejo até, em letras flamejantes, magnéticas, poderosas, o título radioso, atracção irresistível: “Estratosfera –um blogue de Fulano de Tal”. Debaixo, servindo de passadeira ao meu triunfo, num charco de saliva desbordante, as massas prostram-se, subjugadas, avassaladas, tomadas dum deslumbramento inaudito. É o “Fulano de Tal” que as atrai, que as mergulha num torpor vizinho do êxtase vegetal. O resto, poupemo-nos a trabalhos, é irrelevante.

5 comentários:

Anónimo disse...

Descobri o DRAGOSCÓPIO há apenas dois dias mas já estou adepto!! Uma ironia, uma argúcia, uma inteligência, uma irreverência que dá gosto verdadeiramente de ler! Até apetece comer as palavras! Parabéns pelo génio de escrita!
Já agora, visite o http://www.portugalsempre.com , ao qual já adicionei uma ligação para este blogue.
Cumprimentos,
FilipeBS

Anónimo disse...

... possas, eu até fiquei sem respiração! Muita saúde, fôlego e que a inspiração lhe continue a percorrer os neurónios, é o que lhe desejo; e já agora, que eu também por cá continue, até para poder desfrutar deste recente prazer de lhe espiar a escrita.

MP disse...

Ahah :))
Arrasador!

josé disse...

Pá, Dragão! Não te exasperes tanto nessa contemplação umbilical do talento em alinhar letras em parágrafos. Tens jeito, disso não resta dúvida nem o teu umbigo te engana! Mas...jeito, não chega para sustentar blasonaria. É preciso mais para o sítio não estiolar- e, na verdade, não tem faltado aqui o que mingua noutros sítios, em qualidade de escrita e ideias atentas.
Mas queres saber qual a razão por que regresso aqui, à leitura atenta dos postais?
Não uma , mas duas razões: uso da palavra escrita e surpresa no tema! O estímulo ao espírito vagabundo é garantido.
De vez em quando, há um bónus suplementar na qualidade já de si em patamar alto: por exemplo, o postal a rebater argumentos de monarquias virtuais, avessas a iconoclastias.
Agora, regressando a esses dois cronistas de canto de jornal. O Mexia é filho de um Bigotte Chorão. Gosto da genealogia imaginária...e para além disso, o gajo parece-me um tanto ou quanto produto de leituras e mais leituras e ainda mais leituras. Só leituras. Sendo leituras a mais, até me espanta como escreve tão bem- e escreve mesmo! Estéril, mas de escrita escorreita e de leitura bem fácil. Mas esgota-se numa crónica semanal. Não dá para mais, parece-me bem, e espero estar enganado.

O JPC é vinho de outra pipa. É um palerma- pelo que escreve e só por isso que não tenho categoria para andar aqui a apodar pessoas em sentido figurado. Todavia, é isso que penso do tipo. O que escreve só muito raramente transpõe o limiar que é imposto aos cretinos da escrita para se notabilizarem:irritarem quem os lê.
Dali, pouca ideia original sai. E nada entra de experimentado. Parece-me tudo enlatado ou cintado,a chegar pelo correio, em embalagens da Amazon ou, agora, nos Favoritos do browser da net. Não percebo a razão do convite para escriba de cantinho no Expresso e ainda no Folha de S. Paulo ( é verdade!).
Pensando bem, percebo: mainstream, é a palavra. E novidade, "jovens turcos" ( honni soit...)e renovação o conceito. Errado e falhado, quanto a mim.

Mas há outros, caro Dragão! Há outro(a)s que nem vale a pena mencionar, pela confrangedora pobreza que tudo aconselharia a que ficassem pela escrita em blogs confessionais e se atrevem a avançar com artigos e crónicas sobre sei lá o quê!Gatos, por exemplo!
Que tristeza vil e apagada, pá...

Afonso Henriques disse...

"...em braçadas de mariposa haurifegante." Chegado aqui não aguentei mais. As lágrimas saltaram-me como pulgas obesas cobrindo o monitor de uma pasta viscosa e translúcida. O corpo sacudido por espasmos incontroláveis, os cantos da boca exangues, estava prestes a morrer a rir.