sábado, janeiro 29, 2005

A Idade do Ouro

Num tempo primordial, idade do ouro deste blog, escrevia-se português em condições. Naturalmente, não havia público. Mas eu divertia-me mais. Estou a pensar em recuperar uma certa alegria perdida. Entretanto, em homenagem ao nosso primeiro Rei, que agora até tem um blogue, aqui deixo um texto, no meu modesto entender, este sim, de antologia.
E tu, ó Batnavó, vê lá se voltas pra casa! A tua mulher anda desesperada.

O GANDULO, 1ªReunião, 2ªFase

"Como prometi, vou agora expor o que foi hermeticamente tratado na primeira reunião do GANDULO, Fase 2, ou seja, enquanto o Caguinchas andou estupidamente à minha procura pelos lugares mal frequentados de Lisboa. Pró leitor retardatário, que só agora chegou ao Blog, esclareço que GANDULO significa Gabinete de Alarme, Neutralização e Denúncia das Urdiduras do Lobby Ogre.
Pois, basicamente, procedeu-se à compilação e classificação dos resultados da pesquisa, ou sejam, as notícias. Avaliou-se da sua credibilidade e também do teor alcoólico das fontes. Concluiu-se que estas, invariavelmente, golfavam uma zurrapa intragável, a não ser para o Caguinchas que é capaz de vampirizar ácido de baterias. Em suma: cada jornalista, cada marteleiro!...
Não obstante, dados os super-poderes de que estamos impregnados, isso não nos demoveu, nem, minimamente, desmoralizou. Por sugestão do Dinossauro, que tirou um curso de espírita por correspondência, emborcámos cada qual seu trotil, démos as mãos e convocaram-se as almas do Álém, na espectativa de que alguma bufasse o que realmente se passava. Felizmente, o Caguinchas não estava presente, senão desatava aos gritos, escandalizado, que aquilo eram métodos policiais. Mas avancemos.
Ao fim de pouco tempo, encarnou no Batnavó uma velhota meia taralhouca, que o Armindo taberneiro, escutando, se ajoelhou e persignou logo todo, clamando: "Mãezinha!". Apertámos com a velhota, um interrogatório à maneira, o Bisnau a assestar-lhe até com uma lanterna na fronha, mas a velhota não cantou nada.
"Fala, espírito!", ordenava-lhe, imperioso, o Dinossauro, autêntico Napoleão dos exorcismos; mas a velhota só choramingava e pedia o xaile, que se tinham esquecido de lho vestir durante o enterro. Também, se a ordem era pra falar, não percebo como é que ele queria que ela cantasse (às vezes, acho que também já não bate com eles todos certos...) Enfim, o Armindo lá prometeu ir levar o bendito xaile à sepultura e a defunta lá se foi embora.
Encorporou depois o Elvis a dizer que não estava morto, mas como ninguém ali percebia inglês, olhamos uns prós outros e encolhemos os ombros. O Elvis, por acaso cantou -o "It's now or never"-, mas era melhor que não tivesse cantado, porque desafinou pa caraças e não nos disse nada que já não soubéssemos. A seguir, encarnou o Sá carneiro, dizia ele, porque nós não acreditámos; também dizia que o tinham assassinado com uma bomba, mas a malta comentou: "sim, sim; pois, pois". No fundo, só pedia que lhe encontrassem o relógio, que tinha ficado perdido em Camarate.
Entretanto, na tasca, aliás Ciber-tasca, tinha-se gerado um certo tumulto, e o espaço, de pinta tradicionalmente fadista, abeirava-se agora perigosamente dum novo Woodstock. O que é que se passava?...
A puta da clientela ao ouvir o Elvis, deu-lhe prá nostalgia. Reparem que eu disse "a puta da", não disse "uma puta na", o que significa, portanto, toda a clientela e não apenas uma cliente. Antes fosse... Pois desataram a fervilhar de excitação, a armarem batefundo, a atraírem malta da rua e do bairro (que mal lhe cheira a novidade, são piores que tubarões atrás de sereia menstruada) e, catrapimba, num de repente, está o estabelecimento à pinha, com um arraial lá fora tipo Santo António.
"Toca outra vez o Elvis!", gritavam uns; "A Edith Piaf!", preferiam elas; "O FranK!...", implorava um maduro. Em suma: transformaram a nossa sessão espírita num sessão de "discos pedidos" e o pobre do Batnavó, médium de serviço, numa espécie nova e revolucionária de Jukebox! E o pior não foi isso; o pior foi o filho da puta do Batnavó que, não sei lá porque carga de água, (e friso bem. "água!") desatou a trinar feito a malograda e nacional-idolatrada Dona Amália!
"Povo que lavas no rio...", chilreava ele. E aquele povo todo, qual rio qual carapuça, lavado mas era em lágrimas que parecia um novo dilúvio do fim do mundo.
E digo-vos mais: se a seguir não tem aparecido o D. Afonso Henriques -que transportou o Batnavó, transfigurado, atrás do balcão do Armindo, à procura dum cutelo com que esquartejar aquela gente toda, enquanto gritava: "filhos da puta! espermatozóides de merda! macacos vendidos e capados!! delapidadores!!..." -, não sei, não sei mesmo, como é que aquele malfadado festival da canção iria acabar. Felizmente, lá desarvoraram porta fora, numa gritaria, com o Batnavó (pilotado pelo Afonso Henriques), de cutelo, atrás deles, e nós pudemos continuar com a reunião do GANDULO em paz. Aliás, teríamos continuado. Porque foi nessa precisa altura que reentrou o Caguinchas.
Acabava eu de dizer, um tanto preocupado, pró Dinossauro:
-"Ouve lá, e se aquilo não lhe passa?..."
-"A quem? Ao Batnavó, ou ao Afonso henriques?..." -Retorquiu ele, com a fleuma e sabedoria próprias de quem já viveu muitos anos e não vive já subjugado à tirania dos testículos."

- in "Dragoscópio", Janeiro de 2004

2 comentários:

MP disse...

Meu caro :)
Não sei se já lhe disse, mas cá vai:
É UM ESCRITOR EXCEPCIONAL.

r disse...

Volte, pois, a esses “tempos primordiais” em que, no seu juízo, a “idade” era de “ouro”, mesmo correndo o miúdo risco da “clientela” voltar a escassear (olhe que não!) Os tempos, já se sabe, são de vacas esqueléticas; há, pois, que proceder à engorda das resistentes. Divirta-se e divirta-nos mais, sempre nesse admirável português.
Saudações, caro Dragão.