segunda-feira, novembro 20, 2023

Democracia top

 Escuto e leio, entre perplexo e divertido, clamores de lesa-democracia e golpe de estado judiciário!... Parece que o Ministério Público, segundo os alarmes e sereias, atirou com o governo abaixo. Para não variar, tenho muitas dúvidas. Uma palete delas, no mínimo. Até porque, por um lado, era impossível o Ministério (e seja ele Público, Expresso, Correio da Manhã, jornal de Notícias, ou o quer que esteja a florir no momento) derrubar uma coisa que não existe ou que, pelo menos, erecto se não avista. O que estava, se insistem mesmo em definir, era um desgoverno porfiado, falando eufemisticamente, e uma moléstia nacional, em concreto. A verificar-se a veracidade da denúncia, então o país o mais que deve é ficar agradecido ao tal Ministério putativamente golpista e bota-abaixo. Por mim, envio já daqui as minhas sinceras gratulações e votos de feliz natal e próspero ano novo! O flagelo ameaçava tornar-se insuportável, o povo gemia, arfava e arrancava os cabelos, pelo que benfeitoria mais urgente se não lobrigava. Abençoadinhos, os afanosos esbirros!... Ah, mas foi à surrelfa do direito, à sarrafada aos códigos, tocando marimba para as leis, esganiçam-se as vestais de serviço ao templo da Babilónia!... Ora, ora, pentelhices, minudências! Era uma emergência, ora essa! Não havia tempo para mesuras ou protocolos! Em tempo de incêndio não se afiam lápis (perdoem, mas acabo de inventar). E se cometeram meia dúzia de atropelos ou trapalhadas foi sob a pressão e a pressa, legítima e abnegada, de acudirem às chamas...  Uff, confesso que começava a ver o caso mal parado.

Por outro lado, as minhas duvidas ganham contornos de abismal cepticismo quando, como se não bastasse o golpe de estado peregrino, acrescentam ainda, os alvoroçados, uma crise de regime de contornos cataclísmicos. Se depois disto sobrevier o dilúvio, ninguém se admire! Vamos lá  ver, se persistem em massacrar-nos com ficções, ao menos que estas apresentem o mínimo de verosimilhança. Se governo não havia, ainda menos qualquer espécie de regime. Regime, como o próprio termo indica, pressupõe um "rex", seja ele coroado ou não. Um "rex",  uma regra soberana,  enfim, real soberania. Ora, desde 1974 - a última data em que, embora gasto e titubeante, foi avistado regime neste país -,  o que grassa, em formato de praga ambulante, é uma competição alternada entre ausência de regime e regime nenhum. Garatujaram, em arraial de feira, um papel de faz-de-república, ao qual limpam sistematicamente o dignitário fundilho, e eis, por passe de mágica e anedota, o neo-rex: o povinho ambliope. O saudoso Almada dizia com propriedade: "o país onde Camões morreu de fome e todos enchem  a barriga de Camões". No actual caso anedótico é mais o "país onde o povinho passa miséria e todos os  democratas enchem a pança em nome do povinho". Por conseguinte, queiram desculpar a realidade, o regime não estremece coisa nenhuma: desapareceu para parte incerta. É irrelevante o que se queira fazer passar por ele. A surreal suberania, enfim... Do povinho? É mais o polvinho e os choquinhos com tinta.

Além do mais, compete declarar o seguinte: a legitimidade charlatã dos presentes comensais do erário & orçamento, SARL, não estava em causa. Isto, não obstante os episódios eleiçoeiros, à escala oxidental, devirem cada vez mais esquisitos e suspeitos. Contudo, vamos dar de barato que sim, que foi sem trampolinices suplementares (apenas as processuais). Mas o caso evidente é que, cevadíssimos e enfastiados, entraram já sem grande apetite nem gulodice na rês-pública, posta, temperada e amarrada para o sacrifício. A maioria absoluta, qual maná fora de horas, caiu-lhes do céu aos trambolhões. Foi mesmo entediado e contrafeito que o primo-demissionário Costa se viu forçado a mais quatro anos de desgoverno. Ora, o desgoverno já propicia um certo tédio: imaginem um desgoverno absoluto. Justiça se lhe faça que tratou de rodear-se, em calafetante casco, duma pandilha abnegada e competente para o efeito. Astros cintilantes da envergadura dum Galamba anunciavam, se é que não garantiam, um naufrágio empolgante ao virar da esquina. O pensamento elevado que presidiu ao empreendimento deve ter sido qualquer coisa como: "com estes estropícios, em menos de nada estou na alheta!"  Agora que a mobília e os destroços boiam ao sabor da maré, insistem em culpar quem - o tal Ministério Correio da Manhã, ou Público ou lá o que é? Só se for de cumplicidade, conluio ou conjura. 

Sobra ainda todo um conjunto de malfeitores de idêntico jaez, que aguardam, impacientes e resfolgantes, à porta do refeitório. Com a voracidade com que se apresentam, não tenho quaisquer dúvidas que se arvoram capazes de desgovernar melhor que os defuntos e perfunctórios comilões. É preciso dar oportunidade a esta gente! Ainda não lhes adentrou o fastio. Depois do fartar camaradagem, vai decerto advir o fartar vilanagem. O povinho ambliope, que nunca se farta destas coisas, lá saberá, como lhe compete, eleiçoar a rigor.

Por último, convém enaltecer o grande serviço prestado à democracia pelo Ministério de Notícias da Beira, ou do Tal&Qual, ou Jornal 1X2, etc. Já que não somos todos iguais perante a lei, ao menos somos todos iguais perante a ausência dela: o inefável Ministério destrata todos por igual, e não apenas o cidadão comum. É bom saber que também os tratantes eleitos e aboletados no Estado experimentam o seu fueiro apofântico. E para quem a defenestração até era a justa pena, o linchamentozinho em praça pública quase beira a semi-amnistia. Pior: se pensarmos que, ainda por cima, pagam às prestações, mais suave um pouco.

E que dizer sobre o esclarecimento da verdade que tudo isto indicia?...Um mimo! Uma conquista de Abril, ou Novembro se preferirem. Ficamos todos a saber, de ciência certa, que, nesta república - como alguém aqui justamente lapidou - catatónica, o nível entre os órgãos de soberania é mesmo todo igual. Uma bela trampaplenagem. Melhor democracia seria difícil.


PS: Quem prefira outras perspectivas menos imparciais sobre o fenómeno, pode sempre visitar:

a) para um tratamento de pau de marmeleiro a rigor do MP - o Portugal Contemporâneo;

b) para uma hagiografia sempre viçosa do MP - A Porta da Loja (não leva link, para não ofender o proprietário).



3 comentários:

A Tal disse...

AhAHAHA!...

Alma Lusitana disse...

Resta saber se ainda há portugueses!

muja disse...

Isto só me faz lembrar o meme do chinês.

https://knowyourmeme.com/memes/its-all-so-tiresome

É sempre o mesmo filme mas esta malta gosta de fazer de conta que é sempre um novo. Que mais haverá para dizer que já não tenha sido dito com o Soares, o Guterres, o Sócrates, etc.

It's all so tiresome...