quarta-feira, novembro 15, 2023

A Antilíada, ou O certame de bandalhos

 Se repararmos no nosso país com atenção, constataremos que, a partir duma determinada data, abdicou da soberania efectiva. Assim sendo, desembaraçou-se também, inerentemente, da independência plena. Deveio, por assim dizer, uma espécie de protectorado  sabe Deus do Quê. Não obstante, enquanto na realidade, se menorizava e submetia a tutoria externa, desenvolvia toda uma sofisticada ficção para mascarar a coisa. Soberania não precisava (o último que a tinha praticado de facto foi mesmo demonizado, anatemizado e lançado nas chamas eternas do inferno da História), mas tinha agora "órgãos de soberania" resplandecentes e deveras catitas, de importação pacóvia  - Presidente da república, Assembleia da República, governo da república e os tribunais da república. Independência também dispensava, porque, em contrapartida, dispunha doravante duma tremenda e vertiginosa "independência interna", às fatias e aos molhos. Isto é, embora o estado não seja soberano, dispõe duns tremendos  órgãos de soberania; embora a nação se manifeste impotente e dependente, transpira e resfolega de poderes independentes que só visto (e a cartilha pateta e sinistra dos corta-cabeças de 1789 atesta e recomenda). O resultado está à vista. E duma forma cada vez mais grosseira e atabernada, a cada escândalo que passa. Sendo que a cegada é tanto mais alucinada e degradante quanto é putativamente legitimada, numa espécie de ritual mágico, por eleições de imitação. Consistem estas em escolher entre projectos de oposição e de desgoverno, ou, dito mais concretamente, em preencher os cargos e guichés dos "órgãos de soberania" sem soberania, e dos poderes independentes sem independência. É, fatalmente, toda uma república de ficção. Terminado o anedótico cerimonial, os eleitores, quase instantaneamente, descobrem que o presidente não preside, o governo não governa, a assembleia não congrega e os tribunais desprezam o direito. Pudera!... Donde que, em menos de nada, a toque de corneta (do diabo), clamores para novo acto eleitoral, ou seja, insistir nas mesmíssimas causas esperando os efeitos opostos. Dir-se-ia uma tentativa furiosa de exigir  a Deus  o milagre através do cansaço. Os que escolhem sem terem escolha lá são convocados mais uma vez. Para perpetuarem o marasmo implantado e externamente vigiado. Já esteve mais longe de ser dia sim, dia não.

Entretanto, no meio de todo este badanal imarcescível, sobressai um detalhe esplendoroso: os órgãos de soberania sem soberania que não são independentes de forças maiores externas também o não são das forças menores internas, onde sobressaem, com destaque ruidoso, os chamados mass-media. E não fora a fabulosa independência destes, escorada numa deontologia profissional à prova de bala, não sei, francamente não sei, onde já teríamos todos, enquanto projecto colectivo, ido parar.

A sério: É uma bandalheira a esmo? Completa e nunca acabada. Das mais toinas e luxuriantes que imaginar se possa.

E tem toda esta choldra o barrete que merece? Bem justinho!

PS: Mas ninguém negue a tremenda coesão nacinhal: entre os "órgãos de soberania" é uma corrida ombro a ombro na demanda do pódio do aviltamento da função. Já levam meio século nisto.

8 comentários:

Anónimo disse...

Recordo-me que o Caro Dragão, já num post antigo, brincava com a democracia """representativa""", devendo a "representação" remeter-nos mais para actores numa comédia ou numa tragédia.
Não posso ser só eu a notar a coincidência de dois fenómenos: com a "representação" democrática, chega-nos também, finalmente, a perda da soberania.
Voltamos sempre ao mesmo: entre saber quem manda e deixar de saber quem manda, optámos pela segunda. Para quem manda é muito mais confortável.
É um pouco como o império amaricano: põe e dispõe dos protectorados como os antigos impérios europeus não conseguiam, mas pode ser negar a sua condição imperial porque não tem a bandeira nem os tambores no terreno.

Miguel D

dragão disse...

É uma comédia bufa e não saem disso.

Figueiredo disse...

«...Desde um extremo ao outro do espectro partidário português, estes partidos são todos iguais no seu conservadorismo de regime.
Fingem se combater uns aos outros, só para enganar os Portugueses mais distraídos.
Porém, estão alinhados, todos e ainda que em estilos diversificados, sob as mesmas batutas que controlam a imposição do sistema político-constitucional ainda vigente...» - Alberto João Jardim in «A Tomada da Bastilha

Fonte: https://www.aofa.pt/rimp/PR_Alberto_Joao_Jardim_Documentacao.pdf

Anónimo disse...

Figueiredo, já estás bêbado, cabrão!

passante disse...

Os venezianos, antes de serem levados à falência pelo Vasco da Gama, tinham a "sereníssima república" ("serena" por "soberana", não eram só eles, uma italianice que não tenho curiosidade de aprofundar).

Nós cá já passámos a serenidade, já vamos na república catatónica.



dragão disse...

«Nós cá já passámos a serenidade, já vamos na república catatónica»

:O)))))))

Eu devia premiar certos comentários que raiam o sublime.

passante disse...

Considero-me premiado, obrigado. É devido ao elevado mote dado pelos posts ;-)

Estive para acrescentar qualquer coisa acerca de termos problemas de necrofilia (os principes e a bela adormecida, etc.), mas abstive-me.

Vivendi disse...

"República catatónica" ***** (5 estrelas)