terça-feira, março 11, 2008

Para todos e para ninguém



O Luís, uma agradável surpresa, teceu uns meritórios comentários a um postal meu. Fê-lo nos comentários do Cocanha, onde a Zazie, naqueles ímpetos suicidários que ocasionalmente a visitam, expusera a peça; mas eu, se não se importa, respondo-lhe aqui.

Pois bem, em primeiro lugar a questão literária. Diz o Luís que eu exagero ao considerar o Nietzsche do melhor que a literatura alemã tem. Está no seu pleno direito. Repare que literatura é uma questão essencialmente de gosto e não adianta muito discuti-la. Se me acenar com o Hölderlin, o Kafka ou o Thomas Man não me demove nem um milímetro. E bastava o Frederico ter escrito apenas o Zaratustra, como o Cervantes o D.Quixote, o Swift as Viagens ou Homero a Odisseia. Mas bem mais interessante do que ficarmos para aqui a regatear, escutemos o que diz o próprio Nietzsche da sua prestação "literária":
(Numa carta a Von Stein, em 1882)
«Wagner, uma vez, disse que eu escrevia em latim e não em alemão, o que é verdadeiro e até soa muito bem aos meus ouvidos. Eu não posso ter por qualquer alemão mais que um certo interesse exterior, visto que, se V. considerar o meu nome, verá nele, sem dúvida, a minha origem polaca. Com efeito: os meus antepassados eram nobres dessa nacionalidade e até a mãe de meu avô pertencia a ela. Fiz do meu semi-germanismo uma virtude e esforço-me por dominar a arte do idioma germânico mais do que é possível a um alemão.»
E noutra carta, agora a Erwin Rohde, em 1884, escreve ele:
«A ti, como homo litteratus, quero fazer uma confissão: creio ter levado, com o meu Zarathustra, o idioma alemão à sua perfeição máxima. Depois de Lutero e de Goethe, ficara ainda para dar um terceiro passo. Repara bem e diz-me se alguma vez viste tão unidos no nosso idioma, a força, a flexibilidade e a musicalidade. Lê Goethe, depois de uma página do meu livro, e sentirás que aquele ondulatório que Goethe atava como um desenhador, não lhe era estranho, tão pouco como escultor do idioma. Venço-o, na viril severidade das linhas, ainda que sem cair, como Lutero, na aridez e na secura.
O meu estilo é uma doença, um jogo de simetrias de todas as espécies, e um saltar e zombar destas mesmas simetrias. Chega até à escolha de vogais.
Perdão! Acautelar-me-ei de fazer esta confissão a qualquer outro. Mas tu disseste-me uma vez, e creio que foste o único a fazê-lo, o prazer que encontravas na minha linguagem.»

Como vê, o próprio Nietzsche concorda comigo. Comigo e consigo. Já que o Luís, num postal bastante louvável que publicou no seu blogue até concorda connosco: «o que o torna [ao Nietzsche] possivelmente o maior filósofo e um dos maiores escritores do século XX (porque entre as duas entidades havia nele uma ténue fronteira).» Só não subscreveria a data. No restante abraço-o fraternalmente (até porque não seria mais século, menos século que estragaria a festa).
Posta a literatura, passemos à filosofia.
Basicamente é o epílogo do meu postal. Afirma o Luís que "discorda da atribuição que aí faço a Nietzsche". Na verdade, não a entende. Nessa medida, ela para si não faz sentido. É diferente de discordar. Se um dia a entender, eventualmente até poderá discordar ainda com mais intensidade. E propriedade. Mas até lá não concorda nem discorda: estranha-a. E a função dela, em parte, é mesmo essa: intrigar o caminhante. Entendo, todavia, o seu estranhamento e registo-o com agrado. Até porque o manifesta em moldes perfeitamente aceitáveis, claros, compreensíveis.

Agora, repare: não foi por acaso que eu comecei um postal sobre Nietzsche a falar em Jesus Cristo. Faz parte do enigma. Quer ouvir o resto? Nada como colocar a questão no local devido, ou seja, no abismo: e se eu lhe disser que suspeito seriamente que Jesus era bem mais nietzschiano que paulista? Nietzsche, pelo menos, acreditava nisso.
Além disso, se bem me lembro, distinguiu "cristão" de "cristianismo". Disse que o "primeiro Cristão foi também o último e morreu na cruz". Uma esfinge, este Nietzsche. Será que um dos problemas dele era considerar que a doutrina matava a acção? Que a Fé na Palavra do Justo fora usurpada pela fé nas "luzes" das Estradas de Damasco? Que o fariseu arrependido judaízara a tragédia absolutamente grega da cruz?
O certo é que situar Nietzsche é tão difícil e recôndito quanto situar o Reino de Deus, segundo as palavras de Jesus: «Ninguém poderá afirmar: "ei-lo aqui" ou "ei-lo ali"...» Tal qual Este está em toda a parte e não está em lugar nenhum, aquele escreveu para todos e para ninguém. Quem tiver ouvidos que ouça, quem tiver olhos que veja.
Saúdo-o com estima e despeço-me.

2 comentários:

joshua disse...

Jesus é uma totalidade de se entranhar. Paulo judaizou na medida em que sistematizou e atribuíu orgânica e ADN à espessura humana do Filho do Homem, Senhor a Quem todos os joelhos se dobram no Cosmos.

O cristianismo, que não os cristãos, entroncou nas velhas disputas dicotómicas Alma/Corpo, Ideal/Real e a Pessoa totalizadora e assumptora da experiência contraditória e unificada do humano, ficou imensas vezes, que não todas, simplesmente latente como um Sal Vivo em suspensão.

O Sabor de Cristo, também graças à língua literária rugosa e contrastiva de Nietzsche, pode agora ser Integração e Paladar nossos.

PALAVROSSAVRVS REX

Anónimo disse...

Quem tiver ouvidos que ouça, quem tiver olhos que veja.

Salve Ilustre Dragão