quinta-feira, março 27, 2008

Palavras com raiz - 2. Regra

Do latim "regula", Regra tem como raiz etimológica "rego", que significa guiar, dirigir, fixar os limites ou fronteiras, encaminhar, comandar. Aliás, do mesmo "rego" provém "rex" - rei, soberano, chefe, senhor, protector. Regra e Rei são, portanto, radicalmente aparentados.
Porém, a regra não é exactamente a mesma coisa que a lei. Nem na semântica, nem na história, nem, ainda menos, na etimologia. A regra é anterior, mais vasta e excede a própria lei. Tal qual o Rei, por exemplo, é duma instância anterior e superior ao mero tribunal e à simples polícia. A regra estabelece e fixa caminhos, configura mapas e fronteiras: a lei, mais que reforçá-los ou alterá-los através de códigos escritos, vigia-os, policia-os. Assim, a função principal da regra é orientadora; a da lei é repressiva. A regra rege, a lei obriga.
Se tivessemos que definir a nossa civilização, desde a Antiguidade até hoje, nestes termos, descobriríamos facilmente que o predomínio da regra foi sendo usurpado pelo predomínio da lei. Significa isto que, à medida que foi sendo menos regrada, a sociedade foi-se tornando mais legalizada e policiada. O que não é difícil de entender, basta levarmos em conta o seguinte axioma: "quanto mais desregrada é uma sociedade, mais leis e polícias exige". Ou, dito analogicamente, quanto mais doente está um organismo, mais médicos e enfermeiros precisa; ou quanto pior funciona uma máquina, mais mecânicos, reparações e oficinas reclama.
São palcos por natureza da regra a família, a religião, a escola, o exército, a profissão; são recintos típicos da lei os tribunais, as procuradorias, as polícias e as penitenciárias (incluindo, justamente, nestas os manicómios).
Assim, a regra implica um sistema de policompetências - há uma regência/competência familiar, há uma regência/competência religiosa, há uma regência/competência escolar, uma regência/competência militar e uma regência/competência profissional. Conforme transita por estes domínios, o cidadão, desde o berço à sepultura, aprende, introjecta e cultiva determinadas regras. Regras, essas, que imbricam mais em virtudes, valores e costumes de ordem cultural do que em códigos severos de ordem artificial/legal. Ao contrário, a lei, sobretudo a lei das sociedades onde o legalismo urde a hegemonia social absoluta, impõe uma monocompetência: a lei compete ao Estado. Dito por outras palavras, a regra é administrada por todos, segundo uma hierarquia; a lei é administrada por Um - o Estado Todo poderoso, segundo uma burocracia.
Também, enquanto a finalidade da regra é formar cidadãos autónomos, responsáveis, possuidores e administradores dum auto-domínio, o objectivo da lei, ao inverso, promove cidadãos dependentes, irresponsáveis, sujeitos à administração central e sob vigilância.
É evidente que uma sociedade burocratizada é muito menos livre que uma sociedade hierarquizada. Como é indiscutível que o desregramento constitui apenas o cavalo de Tróia da repressão. E no entanto, pasme-se, são as sociedades burocratizadas, onde o desregramento orquestrado apenas justifica e promove o fortalecimento do aparato repressor e policial, que clamam a liberdade como sua padroeira rainha. O que não admira: sempre foi na boca de escravos que medraram as cantigas.
Entretanto, quando eu digo "nação" refiro um todo organizado hierarquicamente sob um primado da Regra - um Rex; quando eu digo Estado, denuncio um super-esquema burocrático, de dinâmica intrinsecamente totalitária, concentracionária e panta-absorvente, sob o império da lei. O Estado funciona à maneira da aranha-lobo: inocula o seu veneno através da propaganda, dissolve e liquefaz através dele todas as regras, absorve de seguida todos os espaços socio-políticos, convertendo-os numa teia legal que, em corolário, segrega e onde se reproduz.
Somos testemunhas vivas, se bem que desatentas e ofuscadas, de todo este processo. Quando, por exemplo, citando um caso recente e em vias de banalizar-se, o desregramento duma escola é invocado como motivo para intervenção da polícia e dos tribunais, ou seja, quando a corrosão das regras serve de pretexto à ingerência da longa patorra da Lei, está-se a surpreender em flagrante todo esse tortuoso enredo. Note-se como os mesmos -burocratas do aparelho de Estado - que promoveram e instauraram a destruição das regras na escola (tanto quanto na família) vêm depois, em clamores escandalizados e pudibundos, convocar a intervenção urgente e exemplar do Estado. Num ápice deveras conveniente e programado, o problema da falta de regra transforma-se num problema de falta de lei: um défice de civismo dos cidadãos degenera rapidamente em défice de polícia. Não custa muito adivinhar que, brevemente, se instalarão câmaras de vigilância nas salas de aula, como se vêm instalando nas auto-estradas, centros comerciais, aeroportos, estádios, etc. Logo reforçadas a detectores de metais, vigilantes, pulseiras de segurança e sabe o diabo mais o quê. Nada disto é inocente. Não é puro acaso. O desregramento a martelo traficado por liberdade puro néctar em que todos estes bufarinheiros e vendedores da banha-da-lei se desunham não é acidental. Dito ainda com maior precisão, o desregulamento que é - permanente e persistentemente - insuflado na nossa sociedade (e que se traduz na dissolução da família, da religião, da escola, do exército e das profissões ), apenas prepara tudo para a absorção completa pelo Estado. Um Estado - uma hiper-burocracia sociofágica - que, estilhaçadas todos os limites e fronteiras que a Regra estabelecia, numa ultrapassagem permanente e desenfreada de todos os marcos, lateja agora em ímpetos e furores para-nacionais, globais, planetários. Um Estado que propositadamente desregula para depois reprimir e obrigar. Este desregulamento tem no mercado o seu agente catalizador. É um facto. Como podia tê-lo (e já experimentou usá-lo, em tandem) na classe, na crença ou no pedigree. Porque, além do mais, o Estado corporiza essa capacidade maléfica de instrumentalização desmedida puramente materialista, mundana, artificial. Ou seja, desregulada, mecânica, execranda, porque desligada de qualquer vínculo ao sagrado, sem qualquer respeito à História, nenhuma atenção ao Cosmos, nem a mínima consideração pelo indivíduo. Uma mera exorbitância e proliferação de meios sem qualquer princípio nem fim.
Se me pedissem para traduzir numa única palavra esta anti-Regra vulgarmente conhecida por Estado, eu não hesitaria: O Mal. Uma monstruosidade contra a qual o combatente ideal teria que congregar a coragem dum Cristo e a tenacidade dum Hércules.


PS: faltou dizer, além de muitas coisas, que na antiguidade grega a palavra "lei" dizia-se, principalmente, nomos. Já a palavra "regra" dizia-se "metron" (que significa também "medida"). Ora, "to metron" -"haja regra" ou "haja medida" -, era o primeiro mandamento do oráculo de Delfos e, inerentemente, da civilização grega. Que, diga-se, só tinha dois. O segundo era o célebre "conhece-te a ti mesmo", que alumiava Sócrates. O que me autoriza, desde logo, a concluir: uma civilização é tanto mais elevada e avançada quanto menos leis e polícias ostenta. Ou seja, quanto menos desmedida é.

16 comentários:

Nuno Adão disse...

Muito bem mortal Dragão, muito bem!

Cumprimentos

Anónimo disse...

Cumpre um alto serviço cívico ao compor este texto, sábio Dragão!
Ana

Anónimo disse...

Ultimamente o Dragão tem andado a raiar o sublime.

Anónimo disse...

Brilhante como é normal.

Isabel

zazie disse...

Que texto magnífico.

Anónimo disse...

Tal qual, caríssimo.

Está-se a fezer um genuíno estado de Excepção schmittiano, só que o Leviatão, cada vez mais robotizado, pouco terá de humano.

Ora, perante o Inumano, o meu caro bem pode lembrar aquela do Heidegger: -"Só um Deus nos pode salvar."

Não é preciso o velho Héracles. O Deus cristão é suficiente, se é Real.

Não se esqueça que um equivalente semântico do Metron grego é o mesmo Logos.

O Corcunda disse...

Só não tenho esperança na sua conversão, porque não é possível converter aquilo que já é. Não é uma questão de prece, nem de querer tornar o Dragão num "glutão das hóstias" (até porque essa gula é um pobre substituto para a fome de Fé), só que é raro ver tão simples e precisas apologias do fim da divindade e poder do Homem pelo Homem como esta.
Lembrou-me Donoso Cortés. Onde o termómetro religioso (metafísico, extra-humano) está elevado, a repressão é mínima.
Mas há um problema que se segue ao texto. Será possível reavivar o eudemonismo moral clássico sem entrar em diálogo ou mesmo aceitar o papel da Revelação? Agora que só temos o Oráculo de Belline e a Alcina Lameiras, vai ser difícil...
Lama, para não dizer pior.

josé disse...

Belíssimo texto. Devia ser remetida à AR.

Ao cuidado dos legiferantes furiosos que por lá andam. De todos os lados.

Mas com pouca utilidade, certamente.

Além disso, este texto, para o Sócrates é sânscrito.

Anónimo disse...

Caro Anónimo da 1.13,
Não é preciso Deus, um milagre basta.

Caro Corcunda,
diga-me cá, S.Tomás não dialogou com Aristóteles?
Então, se S.Tomás dialogou com Aristóteles, eu dialogo com S.Tomás. Qual é o problema? E quem diz o Tomás de Aquino, diz o Bernardo de Claraval ou aquele Pedro Damião engraçadíssimo, ou até aqueles Padres gregos lá do fundo. Agora com o fariseu Paulo é que não há diálogo possível. O primeiro grande revolucionário moderno, o bufarinheiro do "homem novo", a não ser como emético poderoso não vejo que outro interesse poderá ter.
Mas isto são alergias de cada qual.

Deixo-lhe antes uma pergunta mais interessante: Que acha daquele livrinho -"A Hierarquia Celestial" - atribuído a um Pseudo-Dionísio qualquer coisa? Considera que aquilo teve alguma influência no cristianismo?...Posso dialogar com ele?
E já agora, ó meu jovem amigo, zanga-se muito comigo se eu lhe confessar que, à sua querida "razão revelada", prefiro a "acção revelada"?

Afinal não foi uma questio, foram três. Uma trindade, portanto.

Anónimo disse...

Brilhante a linha de pensamento bem como a actualidade do mesmo.

Anónimo disse...

Superior.

Anónimo disse...

Não sabia o Dragão «fã» de Rothbard!

lol

dragão disse...

"Rothbard"? - O que é isso?

Algum burguer novo da McDonnald's?...

Anónimo disse...

Aqui vao o link:

http://en.wikipedia.org/wiki/Murray_Rothbard

:)

josé disse...

No mesmo local onde li o nome de Rothbard ( que também não conhecia), pode ler-se o seguinte, para gáudio de alguns bloggers do Blasfémias:

"Church as a political model: Nearly all of the elements of modern Liberty prefigured in her: Election, Representation, Equality, Tradition, Absence of arbitrary power, Local self-government, Money for the poor, Humanity in punishment, Deliverance of slaves, no Legislator, Trial by one's peers".
(J. Rufus Fears (ed.), Selected Writings of Lord Acton: Essays in Religion, Politics and Morality, vol. III, Liberty Classics: Indianapolis, 1988, p. 612).

If I understand him well what he says is: if you want to build a liberal society look at the Catholic Church!

É do Portugal Contemporâneo.

Anónimo disse...

meden agan, pá, esse é que estava no frontão do templo de Delfos. Para os romanos havia ainda uma coisa chata: o mos maiorum, afinal a mãe de todas as regulae e leges. Chaire!