«Os documentos eclesiásticos - manuais de confissão, estatutos sinodais, colectâneas de casos de consciência - que dão listas de profissões interditas, ilicita negociata, ou de ofícios desonrosos, inhonesta mercimonia, fazem quase sempre figurar entre eles o comércio. Neles se retoma uma frase duma decretal do papa S. Leão Magno - por vezes atribuída a Gregório Magno - segundo a qual "é difícil não pecar quando se tem como profissão comprar e vender". S. Tomás de Aquino sublinhará que "o comércio, considerado em si mesmo, tem um certo carácter vergonhoso" - quamdam turpitudinem habet. Eis o mercador rejeitado, segundo parece, pela Igreja, juntamente com as prostitutas, os jograis, os cozinheiros, os soldados, os magarefes, os taberneiros, aliás como os advogados, os notários, juízes, médicos, cirurgiões, etc.»
- Jacques Le Goff, "Mercadores e Banqueiros da Idade Média"Não deixa de ser curioso, tanto quanto elucidativo, verificar até que ponto a idade Moderna constituiu uma reviravolta completa na hegemonia social de determinadas profissões e ofícios. Ou melhor, de como uma hierarquia consagrada cedeu passo a uma oligarquia profissional. Com efeito, na véspera, durante e depois de 1789, a ilicita negociata e a inhonesta mercimonia mediavais tornam-se o principal filão de recrutamento da classe política que destronará a nobreza e o clero das suas posições predominantes. Após a revolução, o labéu da ilicita negociata, numa espécie de vingança longamente ruminada, passará a ser infligido à Igreja. Quanto ao "ofício desonroso", rapidamente, é convertido em "ofício inhumano", e arregimentará toda uma massa amorfa de operários mirmitónicos e desterrados, que marcham, doravante, ao ritmo da emergente, frenética e triunfante revolução industrial.
Os imundos de ontem tornam-se, assim, as elites de hoje.
2 comentários:
Começou tudo com o burguês, esse burgesso.
Acho que a Idade Média estava mais avançada do que hoje.
Enviar um comentário