«Aos activos falta, habitualmente, a actividade superior: refiro-me à individual. Eles são activos enquanto funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como seres genéricos, mas não enquanto pessoas perfeitamente individualizadas e únicas; neste aspecto, são indolentes. A infelicidade das pessoas activas é a sua actividade ser quase sempre um tanto absurda. Não se pode, por exemplo, perguntar ao banqueiro, que junta dinheiro, qual o objectivo da sua incansável actividade: ela é irracional. Os homens activos rebolam como rebola a pedra, em conformidade com a estupidez da mecânica. Todos os homens se dividem, como em todos os tempos também ainda actualmente, em escravos e livres; pois quem não tiver para si dois terços do seu dia é um escravo, seja ele, de resto, o que quiser: político, comerciante, funcionário, erudito.»
Por activo, no texto em epígrafe, entenda-se não a actividade como a entenderia um Aristóteles - de realização da potencialidade própria, de diferenciação autárquica e autónoma -, mas como o activo é entendido modernamente: atarefado, laborioso, frenético. Primado daquilo que eu já aqui referi como Primeira Lei da Ratafísica Desantropológoica: "No ser desumano, a velocidade é directamente proporcional à desorientação - quanto menos sabe para onde vai, mais depressa corre." É por isso que a nossa sociedade contemporânea, embora pareça cada vez mais excitante, astuta e dinâmica, na verdade e no fundo, é cada vez mais indolente, preguiçosa e marasmática. À medida que as próteses materiais se multiplicam, complicam e desmesuram, a inteligência atrofia-se, o espírito nanifica-se, a coragem dissolve-se. O prazer alarve serve apenas de máscara à acédia de andróides ocos e neurasténicos. A volúpia do progresso funciona apenas como auto-hipnose de histriões amnésicos, fazendo caretas ao espelho para entreter o vazio.
Pode até parecer que estamos a ser dirigidos e manipulados por criaturas pérfidas, sobreastutas e hiperactivas. Pode até ser que isso aconteça ao nível da superfície. Mas, na verdade e lá bem no fundo, é uma pura conspiração de imbecis. De mentecaptos. Já não dirigem coisa nenhuma. Perdidos os travões, banalizado o acelerador, desconhecido o volante, despistam-se ao sabor do relevo, da meteorologia e dos acidentes. Vão para onde a cangalhada os leva. Se me perguntassem quem está no cockpit, ou que raio preside aos comandos da nave, eu sentir-me-ia cada vez mais inclinado a responder: Ninguém. Nada.
Mataram os deuses e agora, em seu lugar, celebram e idolatram Sísifo, servente perpétuo do seu calhau, condenado ao absurdo infinito, pelo Olimpo acima e do Olimpo abaixo.
PS: O autor da citação acima? - Nietzsche, pois claro. Um dos profetas do nosso malfadado tempo.
12 comentários:
"quem não tiver para si dois terços do seu dia é um escravo, seja ele, de resto, o que quiser: político, comerciante, funcionário, erudito"
este gajo era uma besta
então agora com um horário de trabalho de 40 hooras semanais um gajo já é livre
ele só tem uma desculpa: na época dele ainda não existia a TVI
então agora com um horário de trabalho de 40 horas semanais um gajo já é livre
Mas acaso foi o Nietzsche que fez a campanha da Intersindical da luta pelas 40 horas de trabalho ?
Amigo Dragão
http://www.brasilbrasileiro.pro.br/delenda_min.pdf.pdf
Antes de mais, censuro o aplauso que o caro Dragao dispensa ao Nietzsche neste caso. Aqui o Nietzsche, se nao esta a plagiar o Aristoteles, naturalmente que sem a gravitas do Estagirita, e pelo menos pouco original. refiro-me sobretudo a estas palavras que o Dragao cita:
"A infelicidade das pessoas activas é a sua actividade ser quase sempre um tanto absurda. Não se pode, por exemplo, perguntar ao banqueiro, que junta dinheiro, qual o objectivo da sua incansável actividade: ela é irracional. Os homens activos rebolam como rebola a pedra, em conformidade com a estupidez da mecânica. Todos os homens se dividem, como em todos os tempos também ainda actualmente, em escravos e livres"
Passando a frente. O Dragao, que disse que o Marx foi a bosta do Hegel (de quem tambem nao e propriamente amiguinho, ehe), nao reconhecera porventura que esta frase do Nietzsche lembra algumas frases do seu maldito:
"A liberdade, por conseguinte, é o direito de fazer e empreender tudo aquilo que não prejudique os outros. O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em direção a outro é determinado pela lei, assim como as estacas marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. Trata-se da liberdade do homem como de uma mônada isolada, dobrada sobre si mesma."
"Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para o seu interesse particular na sua arbitrariedade privada e dissociado da comunidade. Longe de conceber o homem como um ser genérico, esses direitos, pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um marco exterior aos indivíduos, uma limitação da sua independência primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação das suas propriedades e das suas individualidades egoístas."
E o Carlinhos lembra nestas passagens, talvez num registo mais ordinario, as sabias palavras de Aristoteles sobre o lugar da "economia" (da ordem domestica da necessidade) na ordem politica e no desenvolvimento de uma vida humana feliz, florescente. Para o Estagirita, uma vida dedicada ao ao dinheiro e uma vida de escravatura, uma vida subordinada aos apetites pessoais e presa pelo fragil fio das vicissitudes da vida comercial.
Ainda bosta? E o Hegel ter sido um Joao Baptista do Darwin acho uma tese revoltante!
Modernista
É isso mesmo.
Excelente post!
Caro modernista,
concedo-lhe liberdade plena para não concordar com o meu aplauso, mas rogo-lhe que não mo censure. Olhe que é um belo e merecido aplauso.
E tome lá que lhe dou eu:
«Lembremos, por fim, em terceiro lugar, a admirável descoberta de Hegel, que abalou todos os hábitos da lógica, esta criança mimada, quando começou a ousar ensinar que as ideias específicas saem umas das outras: princípio que preparou os espíritos da Europa para o último grande movimento científico, para o darwinismo; porque sem Hegel não teria havido Darwin.»
(in Gaia Ciência §357)
Quanto a esse outro subproduto do Hegel, o Marx, um dia destes eu dou-lhe o tratamento conveniente em postal. Agora, digo-lhe já que acho excessivamente audacioso sobrepor conceitos de Nietzsche com conceitos de Marx. São -não direi de planetas - mas de galáxias diferentes. Um tipo que pode confrontar com Marx é Sade. Sendo que Sade é muito mais honesto.
Ahahaha... nao me rogue, Dragao: voce e que e soberano. Princeps legibus solutus est. Censura de 'desempoderado' nao fere...
Venham la os murros ao Marx... em ultima analise, tambem vou saborear essa porrada. Ja passei por aqui o suficiente para ver que nestes mares a pirataria e a bruta mas tambem a moda antiga, com codigo de honra e tudo o mais. A mim so me irritam os pulhas primarios que batem muito quando o adversario ja esta de cocaras a comer terra... e o Marx e vitima do triunfalismo barbaro.
Ja agora: longe de mim sugerir qualquer forte parentesco entre Marx e Nietzsche. Isto e sobretudo afinidade de circunstancia. Les grands esprits se rencontrent... ehehehehe!
Modernista
Ah, e verdade:
A subordinacao do Hegel ao Darwin continua a ser revoltante. La por ser do Nietzsche... que tambem se fartou de dizer disparates e alarvidades, embora eu lhe perdoe isso tudo por causa da honestidade e coragem. Nunca duvidei que a sua citacao bona fide fosse verdadeira. E ate lhe digo que acho a passagem do Nietzsche, que nao conhecia, bem simpatica, pelo menos em termos relativos...
Modernista
É o contrário, modernista: é a subordinação do Darwin ao Hegel.
Acaba de dar-me um excelente mote.
a praga hegeliana ainda está viva.
eu que o diga
lol
ehehe
Andas com muita laraxa, ó bacano. Vamos a ver o que sai no 1º de Maior
":OP
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