Talvez seja um sinal dos tempos: mas até o ouro da nossa época é negro.
Imagine o leitor uma daquelas tribos que vivem, em regiões remotas, perdidos na natureza e nos ritos ancestrais, no meio de árvores e passarinhos, sem telemóveis, nem automóveis, nem cinemas, nem restaurantes, enfim, um daqueles cus de Judas onde a democracia ainda não chegou e a tirania não quer saber. Que horror, não é?
Mas agora imagine um horror ainda maior. Eu sei que é difícil, mas tente. Por exemplo: imagine que descobriam petróleo lá no tal cu de Judas, em pleno quintal da tal tribo... Muito petróleo; quiçá, a maior jazida do mundo.
Pois...De repente, como que por artes mágicas, a tirania interessa-se muito, lembra-se que aquilo existe, e a democracia, não menos ávida, fica ansiosa por conhecê-los. É a corrida ao ouro. Negro, o ouro. E não menos negra a corrida.
Dum dia pró outro, a tribo vai ter o prazer de conhecer o Progresso e a Evolução. De chofre. Sem pré aviso nem opção de recusa. Como tantas outras tribos antes deles.
Foi exactamente isso que sucedeu ali prós lados da Sibéria, lá nos fundos da Rússia, onde viviam, sossegados, os Khant e agora, ainda vivem, cada vez em menor número, mas já nada sossegados - nem felizes, por sinal.
Os russos civilizados e civilizadores descobriram o petróleo e os Khant descobriram o vodka. O resultado:
"As outrora sauáveis tribos da região Siberiana, de pastores de renas, estão a socumbir ao alcoolismo e ao suicídio, enquanto o seu modo de vida está a ser obliterado pela busca e exploração do petróleo"
«Com cada vez menos renas para apascentarem, com cada vez menos terrenos de caça, com cada vez menos rios poluídos onde pescarem, desesperados, os Khant enforcam-se.»
São os danos colaterais do progresso e da civilização. Não é novidade nenhuma. Já estamos habituados. E como eles desaparecem mansamente, sem tiros nem bombas, não fazem notícia de telejornal e vão ser bem aventurados no céu.
Isto, já vem acontecendo há uns anos. (Desde 1960, quando os Soviéticos descobriram o petróleo naquela área).
Só que, ultimamente, parece que o Wall Street Journal, esse periódico que, como todos sabemos, é especialista em filantropia antropológica, desenterrou a questão e relançou o alerta, clamando ao mundo para atentar neste patriomónio valiosíssimo da humanidade (as tais tribos) que está a ser ignobilmente devastado pela ganância petrolífera russa.
Este alerta humanitário, de pronto, motivou uma resposta agreste do "Pravda", onde se duvida abertamente da boa fé e caridosa intenção desta homilia.
O que ressalta deste princípio de tese americana (quer dizer, puramente democrática), é que os russos estarão a colonizar os Siberianos. Ora, isso contamina qualquer democracia (ainda pra mais, recente) e abre espaços às piores conjecturas e assombrações.
Campeões da descolonização no século passado, os americanos transitaram para este como paladinos globais da democracia e, de há um ano a esta parte, como intransigentes redentores dos povos oprimidos com subsolo muito rico em petróleo.
Ora, os Siberianos cumprem todos os requisitos: estão a ser colonizados, espoliados e, pormenor determinante, têm debaixo dos pés uma das maiores reservas petrolíferas do mundo. Será que vão ser também redimidos e libertados? Será mais um caso para Super-Bush? Os russos, pelo seu porta-voz oficioso, desconfiam. Paranóia deles, está bem de ver. Ou consciência pesada. Ou, pelo sim pelo não, ir prevenindo.
É claro, espero que compreendam, que tudo isto não passa dum mero exercício de ficção surrealista com algum cinismo irónico à mistura. Até porque é pura coincidência o facto desta questão só ter sido levantada agora, quando os americanos se instalaram (não muito confortavelmente, é certo) no Afeganistão.
Entretanto, também apareceram os chamados "activistas da causa Khant". Cansados de beber vodka e estiolar mansamente, nada nos garante que não passem a atitudes mais enérgicas e drásticas. Se começarem a explodir coisas, lá nos fundos da Rússia, não se admirem. Ou admirem-se. Não me venham é com histórias que já perceberam o que é que a CIA andou a fazer a partir das bases afegãs... coisas do estilo treinar "movimentos de libertação ou independentistas siberianos", porque eu não acredito. Toda a gente sabe que a CIA não faz coisas dessas.
A Chechénia? A Albânia? O Afeganistão do tempo da ocupação soviética? Ora, não me lixem. Ainda ficam mais paranóicos que os russos, que já só falam em «abater os aviões da Nato que violarem fronteiras"; no novo míssil RS-18, que pode atingir qualquer lugar em qualquer continente a uma velocidade hipersónica; na prioridade do relacionamento Rússia-Irão, etc.
É, de facto, um mundo cada vez mais seguro.
Concordo com o povo: Quem semeia ventos não deve, concerteza, cultivar climas amenos. Pois não?!...
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