quinta-feira, janeiro 11, 2024

Breve pausa para aferição semântica

 Imaginemos a seguinte experiência de campo: um dos meus caros leitores, Deus o proteja, era confinado durante 12 meses à ala de furiosos dum hospital psiquiátrico. Deparava-se com toda uma fauna característica: dois ou três Napoleões, um luso Elvis, meia dúzia de esquizofrénicos consumados, uma pitada de borderlinners e outros tantos paranóicos compulsivos. Constataria de pronto toda uma profusão de ideias, concepções e até teorias que o deixariam estupefacto. Repararia também, não sem uma certa dose de espanto, que, per si, até nem seriam destituídas de lógica e coesão interna. Algumas regras silogísticas seriam até menos maltratados do que pelos jornalixeiros e politiqueiros do momento. Não obstante, o ambiente de delírio, fantasia assanhada, em suma, de loucura completa seria, mais que evidente, penoso e deprimente de partilhar e assistir. Ora, a questão é esta: ao fim de um ano de convívio intenso e estrénuo debate, admitindo que sobrevivia ao internato, escapando de algum modo ao homicídio ou ao suicídio, o que é que acham que aconteceu - o leitor, heróico e pundonoroso, conseguiu recuperar os doidos para a realidade, ou tornou-se num deles, aderindo, por contágio e cansaço mental, à alienação?

E todavia, a parte mais engraçada disto é que, na verdade, os furiosos da ala psiquiátrica protagonizam, em rigorosos termos, a completa privatização da realidade. São, dito à boa maneira das bestas protestantes, consciências absolutas. Foram mais longe que a simples desnacionalização dos meios e indústrias de produção de ideias: instalaram-se, de armas e bagagens, na desrealização. Em suma, não comunicam nem comungam de qualquer realidade colectiva, comunitária. Assim, o que vou dizer a seguir nem sequer é apenas sarcástico e irónico (é literal!): constituem, acima do grau avançado que todos os dias se escava e burila mais um pouco no Oxidente, o estado de perfeição do liberalismo. A realização em acto pulcro das suas totais potencialidades. Tanto mais quanto, para cúmulo da virtude, conseguem o atávico prodígio de viver completamente desligados da realidade pública, mas totalmente subsidiados, cevados e vestidos por ela. Quero com isto sugerir que para contrabalançar à via do socialismo, que é o caminho da servidão, os liberais (neo, paleo, puto, xuto, etc, o que queiram), nos oferecem o caminho do hospício? O que é que acham?

E vem isto a propósito de quê? Ah, permitam que aponte: a "profusão de ideias", de que fala um estimado comentador amigo dos poetas. Pois, meu caro amigo: as ideias dos malucos não são as ideias da filosofia. E quando eu refiro ideias são mesmo ideias fundadas na realidade, o tanto menos privada e particular que consigo conceber. Ou seja, Universal... melhor ainda: Cósmica. No grego "falso" diz-se "pseudo". Este é, pois, um critério muito simples, óbvio e inegociável: pseudo-ideias não são ideias. Falta-lhes o Ser. 

E fazem favor agora, os caros leitores, todos, de terem para comigo a caridade de não cobrar em excesso a maldade de encerrar alguém, feito cobaia, numa ala furiosa do manicómio. Até porque, hão-de fazer-me justiça, podia ter sido muito pior, o laboratório... Calculem idêntico estágio na actual administração dos Estados Unidos. 



10 comentários:

Anónimo disse...

Uma alegoria ao jeito Platão!
Qual afinal será o tamanho da caverna?
Não estaremos já a viver ao vivo e a cores nessa real-alegoria?
Como existem filósofos apodados de malucos, não serão também as suas ideias malucas?

Assim só lhe posso dizer que já me encontro confinado num manicómio a céu aberto. Como tenho em má conta a natureza humana digo que muito poucos conseguiria recuperar dessa “prisão” e, pelo espírito e cristalização das minhas convicções, evoluía a ermita numa qualquer esquina.
Anónimo da poesia

passante disse...

Toda a civilização se baseia na negação da realidade - o pessoal não quer passar fome, frio, morrer de feridas triviais, etc.

Mas também já estão a abusar um bocado. Um dia destes põem-nos a andar na rua a fazer o pino, porque os sapatos magoam o chão ou melhora a irrigação do cérebro, ou outro disparate que calhar e nem sequer se concebe hoje.

dragão disse...

«Como existem filósofos apodados de malucos, não serão também as suas ideias malucas?»

Pergunta pertinente. Caso eu tivesse apodado filósofos de malucos. O que eu disse é que as ideias de malucos não são ideias filosóficas, na medida em que são absolutamente privadas. Se existem casos desses na história da filosofia, é caso para averiguação. Embora, no caso afirmativo, eu lhe chame história da filosofobia.

dragão disse...

«Toda a civilização se baseia na negação da realidade»

Em parte, se substituir "negar" por "combater", tendo a concordar (no plano irónico da coisa)...

Não sei se concordará que hoje em dia já se chegou àquele ponto em que a realidade se baseia na negação da civilização. Baseia, edifica e orienta.

Figueiredo disse...

Vai fazer 50 anos do golpe de Estado efectuado pela OTAN em 25 de Abril de 1974 que impôs a Portugal e aos Portugueses o regime liberal/maçónico.

Há 50 anos que este País é um manicómio em auto-gestão, que está a dar as últimas e em lenta direcção para o cadafalso.

Anónimo disse...

Figueiredo, larga o vinho, filha da puta!

Anónimo disse...

« ... quando eu refiro ideias são mesmo ideias fundadas na realidade. »

Quando há um Tradição de pensamento suficientemente forte, como horizonte transcendente de Comum referência, até os filósofos podem disputar entre si sobre o que é ou não é "realidade".

(Um Logos comum, como diria o velho Heraclito.)

Quando não há, até grandes poetas podem recear muito pela sua saúde mental (Pessoa).

Anónimo disse...

Disse o estimado:
“Com a agravante de, para cúmulo, no caso da filosofia moderna, as boas na aparência serem geralmente más na essência”. Portanto há filósofos a intoxicar o “amor à sabedoria”, a produzir ideias malucas. Assim, mesmo que as consideremos falsas (eu considero), não posso negar a sua existência e perniciosidade, bem como uma produção igual a cogumelos em ambiente húmido.
Donoso Córtes aponta bem o sentido daquilo que pretendo transmitir.

E já agora, o caminho proposto pelos liberais é também o da servidão, de outra forma, bem certo, mas não deixa de o ser. Servidão ao dinheiro e ao materialismo.
Anónimo da poesia.

dragão disse...

«Portanto há filósofos a intoxicar o “amor à sabedoria”»

Se não amam a sabedoria podem ser chamados filósofos?

De modo geral, até estamos de acordo. Eu serei apenas um bocadinho mais acerbo na terminologia, porque entendo que tem havido um erro crasso, ao longo da civilização europeia, em discutir com vígaros, relapsos e contumazes, como se de interlocutores sérios se tratasse.

Anónimo disse...

Não deviam, mas a realidade é que por uma grande turba de gente são considerados filósofos.

Assim só vejo três caminhos:
1. Debater com eles por forma a expor-lhes a vigarice e ou insânia.
Um caminho muito exigente, extenuante e de empreitada interminável.
2. Exterminá-los ou encarcerá-los num manicómio.
Um caminho tenebroso porque sempre que se acaba com um mal surgem pelo menos dois novos.
3. Ignorá-los ou desprezá-los, concentrando energias no relevante.
Um caminho montanhoso pois, por força da acção maior ou menor consoante o número de fiéis desses manhosos, o sobe e desce será permanente.
Anónimo da poesia