segunda-feira, janeiro 22, 2024

Anabismotomia da revolução - 4. O poço dos heterozelos


Heterozelo  significa  Parcialidade. De "hetero" - outrocontrário, oposto; e zelos - ebulição, zelo, ardor, inveja.

Da parcialidade resultam vários fenómenos: o partido, a partidarite, o partidário, por exemplo, só para citar alguns casos decorrentes da revolução. Em França, como na Rússia, como em Portugal. A fórmula mais conhecida e, ainda hoje, operante dessa fenomenologia chama-se "direita" e "esquerda", isto é, uma mundovisão horizontal e rasurante da política. O edifício reduzido ao rés-do-chão. Eufemismo para entulho.

Filosofia é uma palavra grega e a sua essência também. E não pode ser desligada dum veículo seu determinante: a própria Língua Grega. Ora, nesta acontece um fenómeno muito curioso e significativo: as palavras são, não raro, polissemânticas - ambivalentes e ambíguas. O exemplo sugestivo que costumo citar: pharmacon - significa remédio, mas também significa veneno. Idea, de igual modo, significa ideia (forma do pensamento), mas também aparência, forma exterior. Ou seja, de certa forma, sentidos opostos coexistem no mesmo termo. Dir-se-ia, pois, que a própria linguagem transporta consigo a virtualidade de equilíbrio ou desequilíbrio, de excesso ou temperança. Se tomarmos o termo apenas num dos lados da acepção, estaremos a ser parciais; se o abarcarmos por inteiro, estaremos a ser completos; ou imparciais. Se o determinarmos apenas como "remédio", esquecendo que também é um veneno, correremos sério perigo por imprudência; se determinarmos que é apenas um veneno, corremos o risco de cometer um desperdício por ignorância. Assim, se eu disser que um significado é mau e outro é bom, fharmacon será absolutamente bom ou mau consoante o significado que eu lhe atribuir. Em contrapartida, se eu entender que fharmacon é bom ou mau, na sua inteireza, conforme o equilíbrio ou tempero que eu fizer das suas faculdades (de veneno ou remédio), então será bom se não houver nem excesso de uma componente nem doutra, mas um equilíbrio adequado. Deste modo, no primeiro caso estaremos nas imediações duma posição dualista; no segundo de uma atitude realista. A primeira é, simultaneamente, parcial e abstraccionista - porque se abstrai da realidade integral do objecto (neste caso, a palavra), para a submeter a um pre-conceito ideal (que se ajusta ao seu particular interesse) do sujeito (o que classifica) - bom, ou mau. É igualmente uma posição totalitária porque toma a parte pelo todo (coincidindo, assim, este todo abstracto com uma redução ou mutilação do todo real). E é, identicamente, uma posição absoluta (sendo que absoluto - ab-solto - significa desligado) porque desliga a parte do todo, divinizando aquela e demonizando este.
Ora, a posição dualista, que se manifesta geralmente nos racionalismos/idealismos, de Platão ao idealismo alemão (desde Kant a Hegel e seus derivados), habita também, por regra, os territórios das utopias, tanto quanto algumas terraplenagens alternativas (entenda-se, "libertinismos" ou ego-deificações). Ao contrário, a posição realista integra e manifesta, invariavelmente, uma ordem, estrutura ou hierarquia funcional. Não se trata aqui também de incorrer numa estreita esquemática dualista, considerando uma posição especialmente boa e outra especialmente má. Convém que se retenha apenas que cada uma delas revela determinadas tendências e determinadas apropriações.  E que o desequilíbrio acentuado para qualquer uma das posições ocasiona problemas específicos. Como a História tem demonstrado à exaustão.
Assim, para efeito do que aqui tratamos, a Revolução e os seus avatares, (Paris, Moscovo ou, em modo sórdido e nano, Lisboa) enferma, por dinâmica intrínseca e atestado por exaustiva comprovação empírica, desse dualismo e é, em simultâneo, absoluta e totalitária. Primeiro, porque se justifica num Todo absolutamente mau e corrompido com o qual a parte revolucionária rompe, rasura e propõe recriar ad nihil - "para trás de nós, o abismo; em frente,  a salvação e o paraíso reconquistado!". Não por acaso, o absolutismo revolucionário imita, perversamente, a Divindade do génesis, edificando a partir da treva, seja a treva do feudalismo, da religião católica, do czar opressor, ou do obscurantismo salazarífico. Em segundo lugar, porque a parte revolucionária, ao assumir-se como a representação exclusiva da totalidade, destitui o restante de qualquer direito, legitimidade, ou, sequer, dignidade histórica. Tanto quanto destrui-lo materialmente, procura apagá-lo mentalmente. Liquida-o no presente e liquida-o no passado, no terreno e na memória. Tudo passa a resumir-se a uma lenda negra, onde a demonização perpétua devém sustentáculo essencial e justificação sempiterna para todo o processo revolucionário e pós-revolucionário subsequentes. Assim, quaisquer falhas, desilusões ou descarrilamentos destes serão  sempre compensados com o recurso ao papão do passado, ao fantasma do putativo horror de recurso. Cumpre os quesitos de branqueador, tira-nódoas e bode expiatório com retroactivos. Demais,  o revolucionário é sempre, por necessidade operacional, um demagogo, isto é, um condutor do "povo", um demonauta. Triunfa na medida em que transmite e multiplica - melhor, prolifera - o seu transtorno ( a sua mania) ao maior número de pessoas. Poderíamos até dizer que, desde a revolução francesa, o revolucionário constitui, muito provavelmente, o primeiro modelo de empresário do espectáculo. No caso de Paris, 1789, avulta mesmo a hipótese de  o grande catalisador (e sucesso) para a agitação e mobilização popular terá passado por converter uma pequena exibição ou happening ocasional - a execução pública -, cada vez mais rara e frouxa (os suplícios e execuções vinham diminuindo preocupantemente nos últimos tempos do ancient régime), num autêntico festival pop (quiçá o primeiro de que há memória) - uma trepidante feira-matadouro,  em alucinante ritmo de abate ininterrupto, entrada gratuita, vários palcos (do tribunal ao cadafalso) e decapitações ululantes, precedidas de cortejos festivos, sob algazarras de dichotes e vitupérios. Iremos mesmo testemunhar, entre enojados e perplexos, como, rapidamente, a revolução e os seus artistas (entre funâmbulos, prestidigitadores, contorcionistas, trapezistas e palhaços) se entrega por completo ao mero entretenimento popular, à diversão e afagamento espalhafatoso da turba. A certa altura, vai alto o Terror, e percebe-se até uma certa angústia entre os animadores culturais de serviço: entram a suspeitar seriamente que a sua própria sobrevivência depende da manutenção e avivamento da excitação lúdica da plateia. É visível como entram em pânico quando principiam a avistar-se os primeiros sinais de tédio, enjoo e cansaço da parte desta. Fora o espectáculo, não havia (nem eles tinham) mais nada. Adivinhava-se o anticlímax e as vociferantes e descabeladas reclamações pelo esgotamento dos efeitos intoxicantes, pela droga decepcionante. O fiasco, a pateada, o linchamento, enfim... E o mais curioso deste teatro do absurdo a céu fechado para balanço é que o efeito  narcótico duraria enquanto os magarefes empresários conseguissem manter o público na ilusão de que era também o actor principal, o protagonista da mise-en-scène. Eis, pois, a lógica suprema e absoluta: the show must go on! Uma proto-broadway de carniceiros. Reis, nobres, clérigos, cabeças avulsas, toutiços aleatórios já não bastam: os magarefes desatam a matar-se uns aos outros. O parcialismo, tanto quanto absolutista, tende à atomização. Princípio desagregante do Todo inicial, não demora a descobrir todos seus sucedâneos em toda a parte. A depuração, a purga social é sempre uma peregrinação do infinito, esse totem tribal dos novos tempos antropófagos. De resto, a Revolução é como Cronos: devora os próprios filhos, tanto quanto arrota os próprios pais. Mas é também como Erisícton: uma fome perpétua que, depois de ingurgitar meio mundo, culmina na autofagia. Arvorada em nome da Natureza, atenta contra ela e acaba levada à loucura, por castigo dela, Deméter, de seu verdadeiro nome.

Mas esta carne-oficina e esta carnofacção não vinha apenas das filosofias e arredores. Tal qual o racionalismo e o dualismo não resultava apenas da postura platónica e neo-platónica. Lá muito de trás, da herança persa, posteriormente pelo maniqueísmo, cruza-se, numa espécie de síntese, com o platonismo e o Apocalipse de João, esse livro de cabeceira da Idade Média. Não será apenas o sono da razão que povoará de monstros: é a razão monstruosa que povoará o homem, à conquista dos céus. E dos infernos. Essas dimensões a que alguns chamavam, coxeantemente, infinitos. Só que agora com contornos de infinita dor e infinito prazer (engodando e atraindo a hiena farejante que é o libertino, lá ao fundo)... Ganhará contornos bem definidos, no estertor da Antiguidade e romper da Idade Média, com Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), na sua Civitas Dei (Cidade de Deus):
  «Porque os que estarão nas penas (do inferno) não saberão do que se passa dentro do regozijo do Senhor; mas os que estiverem nesse regozijo, saberão o que se passa lá fora, nas trevas exteriores.»
Regozijo, alegria, felicidade, o que quer que se traduza, fica um estranha e inquietante  pergunta: parte do regozijo celeste dos corpos bem-aventurados e ressuscitados no Céu tem alguma coisa a ver com ao suplício eterno de outros corpos reencarnados no inferno? A dor duns que gera prazer noutros... Confesso que não sei responder.
Mas o certo é que o Inferno cristão, à semelhança das execuções públicas, foi-se amenizando na sua severidade dualista...Foi-se tornando mais realista e equilibrado: congeminou-se e introduziu-se o Purgatório. O paroxismo desiludido com o Ano Mil, acabou por desviar o "medo do Fim" para a "demanda do milénio". As seitas milenaristas, e de algum modo revolucionárias, atravessarão a Europa. Encontramos a última já em pleno século vinte, algo exótica e auto-denominada de III Reich. Mas esta não é decerto a principal correnteza da Revolução.
Diz-se que o mundo, mais que a política, tem horror ao vácuo. A verdade é que à medida que o Inferno celeste e as suas penas e terrores, aparentemente, se iam desvanecendo e suavizando nas memórias, na essência, iam-se apenas transferindo. Aliás como tudo o que outrora morara no Céu. Foi-se mudando para a Terra. Pervertido, nanificado, absurdizado, às parcelas, mas não obstante... E assim o inferno não desapareceu: materializou-se. Parece que, segundo as sensibilidades da época, era a única parte interessante da Cidade de Deus. E como disse mais tarde um filósofo: vale mais um mau sentido do que sentido nenhum, então nada como carregar no mau até ao péssimo. E se para cima não se vislumbra sentido nem caminho, então vamos para baixo, para o averno das profundezas. É a torre da Babilónia na mesma, só que na direcção oposta, dos subterrâneos, como certos poços maçónicos. Toda a vertigem da Queda agora erigida a vingança, a desforço, não já despejo mas tomada, reocupação por arrombamento.  Imitatio Lucifer. O senhor das Luzes. Civitas Demo (ou Civitas lex). Que vai, finalmente, moldar, a barro, cuspo e sangue, o seu cidadão. Em forma de marionete. Mecânica, amoral, impiedosa. 


 «É preciso então preferir a dor, cujos efeitos não podem enganar e cujas vibrações são mais activas. Mas, objecta-se aos homens encasquetados nesta mania, esta dor aflige o próximo; será caridoso fazer mal aos outros para se deleitar a si mesmo? Os velhacos respondem-nos a isto que, acostumados, no acto do prazer, a importar-se consigo em tudo e nada com os outros, estão persuadidos de que é muito simples, segundo os impulsos da natureza, preferir o que eles sentem ao que não sentem de modo nenhum. Que nos fazem, ousam dizer, as dores ocasionadas sobre o próximo? Sentimo-las? Não; pelo contrário, acabámos de demonstrar que da sua produção resulta uma sensação deliciosa para nós. A que título lhe evitaríamos uma dor que nunca nos custará uma lágrima, quando é certo que desta dor vai nascer um prazer muito grande para nós? Já alguma vez experimentamos um único impulso da natureza que nos aconselhe a preferir os outros a nós, e cada um não está para si no mundo? »
          - Marquês de Sade, in "Filosofia na Alcova"

E talvez mais uma redução a considerar na farmacopeia revolucionária: a redução da luta pelo poder a uma luta pelo prazer... Entendido este como acima diagnosticado: como o poder fazer mal/causar dor aos outros. 


5 comentários:

muja disse...

Pois. Eu já tinha para mim aqui alambicado uma redução parecida: que o móbil, a causa final, é sempre um princípio destrutivo qualquer. Tudo o mais é atavio verborroso e pretexto para tal.

Essa do poder sádico nunca me saiu. Não tenho alambique para isso, julgo eu. Nem grande inclinação para essas espeleologias antropo(i)lógicas...

Anónimo disse...

« A dor duns que gera prazer noutros... Confesso que não sei responder. »

Agostinho não diz que "gera prazer" mas sim que "saberão disso".

Estas ligações podem ser úteis:

http://edwardfeser.blogspot.com/2016/11/can-schadenfreude-be-virtuous.html

https://www.newadvent.org/summa/5094.htm

Vivendi disse...

Já conseguimos chegar a uma conclusão.
A revolução liberal foi uma revolução baseada no sadismo.
Cortar cabeças foi a apoteose.

dragão disse...

Anónimo,

as ligações só confirmam o gozo. Infelizmente.

Um santo gozo, ao que diz o santo.

Da Suma, atenho-me, por economia e princípio, às questões filosóficas. Tem sido um bom princípio e estou, mais que nunca, justificado a perseverar nesse higiénico caminho.

Agradeço-lhe, todavia, a dica. Corrigi, entretanto, a minha benevolência.

Anónimo disse...

“Não será apenas o sono da razão que povoará de monstros: é a razão monstruosa que povoará o homem, à conquista dos céus. E dos infernos“ - feito o diagnóstico, só resta acrescentar que o fármaco está em equilibradas doses de racionalismo e suaves doses de idealismo, por forma a balizar o homem na dimensão da lucidez e desviá-lo/tolhê-lo do infinito de medonho que existe na sua mente.
A mundanização é um veneno, a ausência ou desprezo pelo espírito uma doença. O insano nunca pensou ou ponderou as consequências!
Anónimo da poesia