Existem não sei quantos jornais diários gratuitos, que, sempre que posso e consigo deitar a unha, leio com a maior das atenções e enlevos. São dois progressos significativos nos transportes públicos: ar condicionado e pasquim à borla. Posso até citar aqui os nomes dos três que julgo principais: "Metro", "Destak" e "Global". Pois bem, há uma segunda coisa que me fascina nestas folhas de couve: apesar de, aparentemente, serem diversas, trazem sempre as mesmas notícias. Que, de resto, não diferem muito (de facto, não diferem nada) do cerne daquelas que aparecem nos outros jornais mais pingarelhofónicos, porque pagos pelo otário que os lê. Deve ser a isto que se chama "liberdade de expressão". A mesma que custou tanto a conquistar e que urge defender a todo o custo contra toda uma vasta conspiração de gambosinos particularmente activos, ubícuos e ferozes. Quer dizer, depois de ler o "Metro", ao debulhar o "Destak", descubro que, tirando o título do caderno e a arrumação e decoração das notícias, é a mesmíssima coisa. Idem aspas para o "Global" (O "Público", o "DN", o "JN", e por aí fora, telejornais e radiojornais incluídos). E isto todos os dias. Como é que eles conseguem? Eu até sei como eles conficcionam a coisa, mas convém armar ao cândido.
Porém, eles não só conseguem, como a malta chupa aquilo todos os dias e acha, creio bem, perfeitamente normal. Pelo menos, não escuto por aí queixas de relevo. Donde que o prodígio é duplo: não só eles conseguem escrever e publicar todos a mesma coisa, como aqueles que os lêem conseguem ler e escutar por todo o lado essa mesma coisa e nem pestenejar (quanto mais reclamar). Dão mais valor ao que lhes passa pelo intestino grosso do que ao que lhes passa pela fina inteligência. Finíssima, aliás. Praticamente transparente.
Dito isto, vamos aos tremoços. Era uma daquelas notícias do dia, que tive a oportunidade vibrante de ler primeiro no "Global", logo a seguir no "Destak" e, finalmente, no "Metro". Foi uma manhã em cheio, portanto. Daquelas de Bingo. E rezava assim: "Crise financeira provoca corrida aos abortos". Bem, as palavras talvez não fossem exactamente estas, talvez não dissessem "corrida", certamente que diziam "interrupção voluntária da gravidez", mas a ideia era esta. Sem tirar nem pôr. Em nada falto à fidedignidade.
Ao ler aquilo confesso que me ocorreu, instantâneo, um comentário que, a custo, lá consegui conter no cerro dos dentes e evitar que desembestasse em praga sonora e audível a toda a composição de zombis onde, por sórdido decreto e suprema ironia da mesma entidade inefável (esse filho da puta do Destino), vagava, a uma hora completamente imprópria, saliente-se. Passo agora, sucintamente, a nomear o comentário propriamente dito: "Crise financeira, o caralho!" E não, a palavra não foi "pénis", nem "órgão sexual masculino", ou "falo": foi mesmo "caralho", sem tirar nem pôr, e com exclamação (que só não foi tripla porque, repito, a cerca da dentuça funcionou).
E caralho faz todo o sentido. Porque se há um principal responsável pelo fenómeno ele é, certamente, o caralho. A crise financeira é que não. Em África, a crise financeira (e se á astronómica aquela crise) provoca nascimentos em catadupa; no Terceiro Mundo, duma forma geral, a mesma coisa; no Portugal da Antigamente, sequestrado por todos aqueles fassistas que o mantinham esquálido e famélico, à míngua de progresso, democracia e economíscaros, idêntico quadro. Portanto, a crise financeira não pode ser responsável por uma coisa e o seu contrário. Ou bem que causa excesso de filhos ou bem que provoca excesso de não-filhos, vulgo abortos.
É claro que a coisa pode ser colocada em termos económicos. É um vício corrente e recorrente nestes dias. Deve ser até a isso que chamam "liberdade de pensamento" (pensar sempre tudo sob a mesma perspectiva redutora ou liliputona ) e funciona, estou certo, em perfeito e glorioso tandem com a célebre "liberdade de expressão". Resultaria, assim, em qualquer coisa como: entre a plástica às mamas, a lipoaspiração das bordas do cu, as férias nas Caraíbas e a criancinha, a cabra emancipada, exposta às angústias do orçamento, teria que optar. Fúnebre encenação, convenhamos, onde dificilmente o feto alcançará sequer o pódio das prioridades. Nesta altura do ano, não é mesmo difícil vislumbrar o ilustre casal no pleno e cabal exercício da proverbial divisão de tarefas: ele, o lava-loiças, a correr à auto-estrada mais próxima a descartar-se do cãozinho, e ela, a estica-peles, a desarvorar para a maternidade mais próxima para desembaraçar-se do embrião inoportuno. Isto é mais frequente do que se pensa. Nestes moldes e noutros ainda mais rastejantes. Porém, continua a não ser, nem nunca foi, uma questão de crise financeira. Também não é uma crise moral, como alguns proxenetas da virtude gostam de proclamar. Vem de mais fundo que simples maquilhagens e coifaduras, tenham elas o aparato e o alarido de sumptuosas bagatelas como "governo", "política", "economia" ou até "civilização". Vem de mais de dentro. E o pior é que não germina dum tumulto, dum caos passageiro ou duma contradição ocasional: brota dum vazio, íntimo, dum nada entranhado, dum deserto, duma esterilidade absoluta de sentimentos autênticos. Não é consequência de crise financeira nenhuma: as crises financeiras não afectam verdadeiramente as pessoas, só afectam os negócios. Querem o verdadeiro nome da coisa? Crise - mais que crise, catástrofe! - afectiva.
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