Revisitando, muito a propósito da interessante conversa na caixa de comentários anterior, um postal de Maio de 2012...
«Mas escutai as misérias dos homens;
escutai como, no começo, eram eles ignorantes e os tornei cientes e
senhores da sua inteligência. Digo isto sem qualquer censura aos
humanos, mas só para vos mostrar como nasceram do coração as minhas
dádivas. No começo, eles olhavam e não viam, escutavam e não ouviam,
passavam a vida alongada e néscia como sombra de fantasias. (...) Viviam
em cavernas, nas eternas trevas dos profundos antros, como formigueiros
fervilhando. Faziam tudo sem entendimento, até eu lhes ensinar o
nascimento e o acaso das estrelas mais difíceis de avistar. Para eles
inventei o número, suprema sabedoria, e a arte de juntar as letras,
memória de todas as coisas e infatigável mãe das Musas.»
- Ésquilo,
"Prometeu Agrilhoado"
Este, quanto a mim,é um dos textos mais espantosos e fascinantes da
nossa cultura. Em primeiro lugar, dá-nos conta duma evolução inaugural
que coincide com uma progressão efectiva: a mera matéria animal adquire
uma característica humana - o cavernícula torna-se homem. Mas repare-se
que não é apenas uma questão de um intelecto ou espírito que lhe é
concedido - é uma sensibilidade, um entendimento e uma inteligência.
Quer dizer, é o aparato completo do pensamento que a filosofia,
durante quase três milénios, não mais cessará de avaliar e prospectar
nos seus limites e realizações, aparato esse, pormenor ainda mais
importante, que lhe permite uma autonomia existencial e uma elevação
acima da natureza. Isto é, concede-lhe uma emancipação da matéria bruta e
uma capacidade de atenuação das leis e voragens da necessidade. Afinal,
a dádiva é uma dádiva divina, oriunda directamente do coração de uma
forma de ser superior. E não é por acaso que Prometeu, para pagar a
elevação do homem se veja ele próprio, por castigo, rebaixado à condição
anterior daquele. E cá voltamos nós ao paradoxo: o preço da ascensão do
Homem é a queda de um Deus. Episódio que, de certa forma, se repetirá
mais tarde: quando também para resgate do Homem decaído, um Deus
aceitará o Calvário e o suplício da Cruz.
Entretanto, esta ideia de dávida divina como ignição antropológica
também está presente noutra das principais fontes do pensamento
medieval. o Génesis. Aí pode ler-se: «então o Senhor Deus formou o
homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o
homem transformou-se num ser vivo.»
De novo, a entidade divina intervém sobre a matéria bruta: conforma-a,
ordena-a, anima-a. Este animá-la é, em simultâneo, dotá-lo de vida e de
espírito (e note-se que no latim spiro significa respirar, como anima
significa alma). Para Aristóteles, por exemplo, os animais são dotados
de alma - e "animal" denota isso mesmo, algo que respira, que está
animado -, mas apenas de uma "alma vegetativa", quer dizer, não possuem
intelecto activo, sòmente dispõem de intelecto passivo. E não apenas os
animais, alguma gente também (e não, não estou a ser sarcático: em
rigor, no De Anima, Aristóteles demonstra isso mesmo: que os homens são
[animais] racionais - melhor dizendo, lógicos-, mas nem todos são
inteligentes. E é esta diferença fundamental - e abissal, entre razão e
inteligência, bem como respectivos objectos, que até aos dias de hoje
todas as alforrecas intelectuas continuam, por paixão e impotência, a
não discernir. Até porque a maior ambição da imbecilidade, tanto quanto a
proliferação e o império, consiste na hegemonia).
Bom, mas o que importa registar para o tema desta nossa demanda, é, em
ambos os momentos fundantes, o carácter exógeno da especificação humana.
Essencialmente, o Homem é obra de algo exterior à estrita matéria e à
ordinária operação da natureza. O Homem é, bem distintamente, algo de
extraordinário, de prodigioso, tal qual aparece descrito por Sófocles,
na Antígona. "Muitos são os prodígios do cosmos, mas o antropos é o mais
extraordinário de todos". Máxima que a tradição fundada no Génesis
conduzirá a um extremo limite: "Deus disse: Façamos o ser humano à nossa
imagem, à nossa semelhança..."
Ora, esta antropovisão reinará na tradição antiga e medieval, com
cambiantes variadas, como veremos adiante. Todavia, chegados ao século
XIX, o conceito de evolução terá sofrido uma revolução completa, e em
vez duma antropovisão exógena celebrar-se-á uma antropovisão endógena:
dum ser humano como mero resultado das operações naturais, súbdito não
já de regras da ordem inteligível, mas de singulares leis da estrita
função mecânica e, inerentemente, material. Ou seja, na origem, do
homem, assume-se que nada houve que o elevasse ou enobrecesse acima dos
outros seres vivos. Por conseguinte, à falta dum princípio superior,
adoptam-se, por meios capciosos, princípios reles em cujo nome se
autoriza a engendração de fins soberbos e sumptuosos: através da
ciência (ela agora o novo - e usurpador imaginem de quem - prodígio dos
prodígios) pode fabricar-se geneticamente uma raça pura de semi-deuses
(arianos, judeus, anglosandeus, enfim, o que se queira e a hegemonia da
macacada dominante do momento permita e patrocine). O extraordinário,
doravante, não está mais no princípio: está no exclusivo meio e promete
os mais prodigiosos fins. Só que a palavra que no grego traduz
prodigioso - deynos - também significa "terrível", "funesto",
"perigoso", "mau". E, como o século XX demonstrou à exaustão e o século
XXI parece ainda ir provar com mais exuberância, nada de extraordinário
ou digno de admiração prevaleceu.
...
PS: Dinossauro é uma palavra e um conceito cada vez mais sugestivo.
Também ele era um "deynos" -um deynos-saurio (um sáurio terrível,
assombroso)... À semelhança de Hamlet, deviamos meditar-lhe sobre as
ossadas.