domingo, fevereiro 28, 2010

Liberdade de Expressão - IV. Whisky de Sacavém




Mas se o ser, como ensinava Aristóteles, se diz em múltiplos sentidos, a Liberdade de Expressão, essa, pode ser avaliada, pelo menos, em duas dimensões, a saber, a qualidade de expressão e a quantidade de expressão.
Ora, neste nosso tempo de ruídos, grunhidos e seringas palrantes há, mais que a tendência, o imperativo categórico de considerar que dizer muito, palrar carradas de tanto, entornar-se por inúmeros púlpitos, palcos e pedestais, é dizer alguma coisa e é ser muito livre a todas as horas e minutos. Confunde-se liberdade com mera incontinência crónica; mascara-se opinião com mero despejo; trafica-se a mais gritante ignorância e, não raro, a mais rotunda falta de educação ou resquício de vértebra moral como sendo expressão de alguma coisa. Na verdade, a expressão duma ausência não exprime coisa nenhuma nem significa nada que seja. Assim sendo, não é livre nem deixa de o ser: pura e simplesmente, não é. É zero ou abaixo disso. E todavia, protagoniza, às escâncaras, o mais ubíquo dos fenómenos actuais, com devido patrocínio, impingência e promoção de meia dúzia de agências globosas. Mais até que avanço desbordante, adquire já contornos de enxurrada. "Podeis dizer tudo o que vos apeteça, desde que não digais coisa nenhuma", constitui o lema. É a cultura do solta-aleive como antídoto para a sempre indesejável inflamação da inteligência. Castra-se hoje a mente através da saturação noticiosa, como dantes se procurava exaurir através da escassez. Só que com bem maior perversidade e eficácia. A vítima da logocastração dispensa até torcionários sempre dispendiosos: automutila-se. Acaba esterilizada no seu próprio verbo hipersalivado. Sucumbe ao seu próprio vesúvio emissor. Enquanto palra, não pensa. Enquanto debita, não reflecte. Enquanto pasta notícia, ou gargareja sensação, ou cospe palpite, não digere (nem, vagamente, assimila). Quanto mais imerge no palanfrório desatado, mais se impermeabiliza a qualquer tipo de ponderação, equilíbrio ou ideia. Em bom rigor, nem opiniões ostenta, porque, à falta de esqueleto próprio, nem cabide ortopédico tem onde pendurá-las. Se tanto, resume-se ao esfregão mental, à amálgama de desperdícios de plantão a óleos, sordidezes e gorduras de garagem ou estação de serviço mediática. Porque se não despeja, convencem-no todos os dias, não existe. Mas se não absorve, pior ainda: não tem.
Jóquei da fervura do instante, surfista da poeira do momento, janota do último ruído a vapor, flana à esquina do acontecimento (quanto mais escandaloso, melhor) com a virtude da rameira e a perseverança do colibri. Tudo comenta, mas nada entende; tudo ingurgita, mas nada retém. Sob sequestro opressivo duma actualidade em constante metamorfose, entrega-se à tarefa digna duma danaide: encher uma cisterna sem fundo com um crivo por balde.
Contudo, este primado da quantidade não impera apenas no universo mediático: a própria literatura, a música, as artes enfim, também já cumprem os seus preceitos campeões. Ainda mais formatada e passevitada que a "expressão jornalística" anda a "expressão artística". Confundem-se até, expressão política, jornalística, artística e até científica, num puré uníssono, numa papa milupa comum. Cumprem o mesmo critério editorial: os mesmos que determinam quem escreve nos jornais ou aparece nas televisões, condiciona e filtra quem escreve nos romances, nos compêndios e CDs, ou seja, quem é catapultado nas editoras e embandeirado nos media. Mas não se pense que são apenas os donos do harém quem torce e distorce a seu bel-prazer: os próprios eunucos policiam-se, emulam-se, lambuzam-se, envazelinam-se, promovem-se e catam-se uns aos outros. No fundo, tudo se degrada doravante a mera xaropada publicitária, e não é apenas o jornal que se relaxa a pasquim imarcescível: é a própria linguagem literária (onde podemos incluir a "científica", na sub-cave) que estiola ao nível da mera bacoralalia efervescente de slogans, receitas, telegramas e anedotas. De tal modo que, se a ficção mediática raramente excede a prosopopeia ranhosa, já a literária, por seu turno, sem vergonha nem remorso, desalambica-se pelo algeroz duma contínua onomatopeia dodot.
Catalogar, assim, como liberdade de expressão todo este entulho da mera quantidade de expressão é não só rotundamente falso: é absolutamente obsceno. Pois, de facto, constitui, com todas as letras, o seu oposto. E tanto quanto atesta da ausência de expressão (porque destituição completa de autoria, autenticidade, originalidade, personalidade e autonomia), também procura, em perfeita sincronia, o seu extermínio.
Basta atentar como na realidade, por regra moderníssima (e ainda há pouco tempo podemos testemunhar um episódio desse tartufo jaez), são os grandes açambarcadores, armazenistas e empreiteiros -em suma, são os maiores falsários e mixordeiros - da "quantidade de expressão" (ou seja, e dito com propriedade, os inesgotáveis agentes, tarefeiros e moços de frete da "inexpressão") quem geralmente brama, em tom seráfico e descabelado, pela liberdade de expressão. Quer dizer, são os apaniguados - frenéticos e furiosos - do ruído (seja ele instalado, seja em ardores de instalação) quem mais barafusta pela redenção da música.
Não sabemos, com a segurança e clarividência que só Deus possui, onde mora a verdade. Mas duma coisa podemos ter a certeza absoluta: não vive em casa da propaganda. A não ser que ao matadouro já se chame residência. O que, bem vistas as coisas, neste mundo às avessas, cumpriria até toda a lógica.

Aquilo que denominamos como facções, na realidade, são meras erupções dum único fenómeno: a contrafacção. Da verdade. Mas, não obstante, representa o pão nosso desta "democracia de sacavém". Quem é como quem diz, esta zurrapa a imitar, rascamente, uma qualquer destilaria anglo-saxónica.




sábado, fevereiro 20, 2010

Liberdade de Expressão - III.





«Ora, tem de admitir-se que a afirmação da liberdade é hoje particularmente difícil. A resistência requer grandes sacrifícios; por aqui se explica o número excessivo daqueles que preferem a coacção. E, todavia, uma história autêntica só pode ser feita por homens livres. A história é o selo que o homem livre imprime ao destino. Nesse sentido, ele pode, sem dúvida, actuar como representante; o seu sacrifício conta para os outros.»
- Ernst Jünger, "Der Waldgang" (trad. port. "O Passo da Floresta")


Depois, há aquilo que diz, se não estou em erro, o nosso Pessoa (como podia ter dito eu, ou, ainda mais originariamente, Aristóteles), e que as pessoas hodiernas deviam mandar emoldurar à porta de casa:
«Aos activos falta, habitualmente, a actividade superior: refiro-me à individual. Eles são activos enquanto funcionários, comerciantes, eruditos, isto é, como seres genéricos, mas não enquanto pessoas perfeitamente individualizadas e únicas; neste aspecto, são indolentes. A infelicidade das pessoas activas é a sua actividade ser quase sempre um tanto absurda. Não se pode, por exemplo, perguntar ao banqueiro, que junta dinheiro, qual o objectivo da sua incansável actividade: ela é irracional. Os homens activos rebolam como rebola a pedra, em conformidade com a estupidez da mecânica. Todos os homens se dividem, como em todos os tempos também ainda actualmente, em escravos e livres; pois quem não tiver para si dois terços do seu dia é um escravo, seja ele, de resto, o que quiser: político, comerciante, funcionário, erudito.»

Quero com tudo isto significar o simplesmente óbvio: há liberdade de expressão quando existem homens livres. É a existência do homem livre que garante a liberdade de expressão, e não a mera permissão dum qualquer estado, decreto, polícia ou entidade fiscalizadora. A liberdade, seja de expressão seja do que for, não resulta duma concessão, mas duma essência. A liberdade em regime de parque nunca é liberdade, mas cativeiro mais ou menos suavizado.
Ao homem intrinsecamente livre a última coisa que lhe ocorre é reclamar pela liberdade de expressão. Exerce-a e arca com as consequências, sabendo de antemão que, hoje como ontem e se calhar sempre, a liberdade será tudo menos inconsequente. Na verdade, reivindica ou reclama algo quem o não tem. Ora, se o não tem, o mais que alcançará será a prótese, o postiço, o faz de conta. Ou, na maior parte dos casos, a simples maquilhagem.
Capacitem-se duma vez por todas: Não há sociedades livres; há indivíduos livres. O que pode haver ou não, no âmbito colectivo, é sociedades saudáveis, que são sociedades onde a liberdade não tem a cabeça a prémio e o pensamento não está sob vigilância permanente de crescentes e profissionais hordas de procustos, prebostes e magarefes. Sanidade, essa, que, como está bem à vista de quem não for ceguinho nem alinhe em cegadas, não é, decididamente, o caso das sociedades modernas.
Por isso, e sintetizando, falar em "liberdade de expressão" para jornalistas é o mesmo que falar em "amor livre" para prostitutas. Sendo o seu ganha pão, marisco e conta bancária -ou seja, sendo o abastecedor da sua gamela, de preferência e urgência o mais dourada possível - a sua expressão será tudo menos livre. Situar-se-á até, por regra, nos antípodas disso. Isto é, em vez de "liberdade de expressão" deveria designar-se "necessidade de expressão".

Liberdade e vida são sinónimos.

«Mergulhe Zeus o meu corpo no profundo e tenebroso Tártaro e nas horrendas voragens da Necessidade! De nenhum modo conseguirá roubar-me a vida!»
- Ésquilo, "Prometeu Agrilhoado"

Quereis Liberdade de Expressão, mesmo? Olhai Sócrates! Olhai Cristo! Olhai, enfim, Prometeu.



quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Liberdade de Expressão. II


Liberdade de Expressão

«Deus disse: "Faça-se luz"» e etc.

Há quem diga que o primeiro exercício de liberdade de expressão foi também o último.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Ironias do diabo

Lembram-se da pergunta (em parte retórica) "mas devem a quem"?

Lendo esta notícia (não é só na justiça portuguesa que há fugas de informação por encomenda) - Goldman Sachs in new storm over secret deal to mask Greek debt - talvez se enriqueça o panorama mental.


Agora reparem no actual frenesim mediático em torno do Primeiro-Ministro cá da nacinha. Acham que esta gentinha, dos jornais aos blogues, está minimamente preocupada com Portugal? Antifássistas instantâneos, democratas da farinha amparo, ultrapasteurizados da política, já nem uma vaga noção de séria independência ou genuíno patriotismo os habita. No mundo, quase todos, mimetizam - na metáfora e na perfeição - aqueles prostitutozitos forçados da Casa Pia cheios de vaidade nas suas prendas salariais e na importância mais o favor do respectivo pederasta. E depois, cobertos de tanta riqueza, mental e patrimonial, desdenham e snobam dos que não alinham, esses simplórios pindéricos. Reparem ainda no pretexto "fracturante" para tanta excitação: Liberdade de Expressão. Parece-vos que é um dos problemas graves da nação?
Mas, mais intrigante ainda, como é que pessoas do desnível deste José Sócrates chegam a primeiro-Ministro? Mas não excepcionalmente, senhores: por regra imperial e quase absoluta!... Espantoso?! Mais espantoso ainda: já amarinham à Presidência da Comissão Europeia. Ou acham que o Barroso é melhor que esta abécula porta-fatos Sócrates? E o Constancio vai para onde? Devemos ficar orgulhosos com tais ascensões meteóricas? Devíamos ter inveja? Devíamos era ter vergonha, isso sim. Eu tenho.
Mas quem é que os planta, a estes espécimes daninhos, nesses vasos? E porque é que os planta, providencialmente armadilhados com um leque muito conveniente de rabos de palha?
Pois, é como quem planta bombas-relógio por controle remoto. Quando lhes convém, accionam o engenho (neste caso, o engenheiro) e lá se instala o desejado efeito.
Se não é exactamente isso que está a acontecer, imita muito bem. A quinta-coluna lança o mote, a malta, viciada no dominó e na salganhada, vai atrás.
Querem derrubar o Sócrates? Nem por isso. Eles próprios nem sabem claramente porque é que ladram. Recebem o estímulo, acatam a ordem e desatam no basqueiro que lhes compete. Repito, uns por profissão, outros por imitação, ou mero oportunismo. Aparentemente, anima-os a mais angélica das intenções; na realidade, são meros instrumentos tácticos duma estratégia muito mais vasta. Uma estratégia que, tudo o indica, neste momento tem o euro na mira e, quase aposto, visa, entre outros fitos mais obscuros, manter o dólar como "moeda global".
Para os europeístas que acharam que a Europa devia ser constituída sobre as fundações de Mamon, isto é, sobre os alicerces duma moeda, é muitíssimo bem feito. E é bom que se vão compenetrando: esta ficção dura enquanto os anglo-saxónicos quiserem. Que é o mesmo que dizer-lhes, a estes homens de palha, que quem os promove também os desmonta, que quem os carrega também os despenha. Se calhar, no tribunal divino, compete ao diabo a acusação.
A verdade, essa, é que nada do que parece é.



segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Cibertasca - O Regresso.


Nem vos conto o que foi a minha reentrada na tasca –aliás, cibertasca. Andámos à porrada, nem mais. O caso, de resto, nem era para menos. Parece que me contradigo, mas é só impressão vossa. O que é facto é que eles, refodidos com a minha diáspora, rosnaram: “olha o peneiras, o blogomerdas voltou”, e eu, que fervo em pouca água e ainda em menos vinho vociferei: “olha, os cabrões mansos continuam refugiados em tábuas!” Aleive puxa insulto, insulto reboca impropério, sarcasmo arrasta calúnia, e em menos de nada, engalfinhados num ameno sarrabulho, já tínhamos escavacado parte da mobília ao Armindo Taberneiro, um ganancioso de merda, diga-se, que em vez de tomar partido por uma das partes, de dar e levar também como Deus manda, só carpia e gemia, só uivava –feito sirene lancinante- enfim, só choramingava o recheio do estabelecimento e tentava pusilanimemente deitar água na fervura, atirando com baldes dela à molhada. Aquilo enfureceu-nos ainda mais, especialmente ao Dinossauro, que estava de bengala, bem dura por sinal, e considerou o pano encharcado que o outro, com pontaria de sniper, lhe endereçara às trombas como uma afronta pessoal. Uma falta de respeito de todo o tamanho. Ofendeu-se mesmo todo, com quantos melindres tinha. Perfilou-se hirto e de olhar incendiado, fulminejabundo. Eu ia até para lhe desfechar com mais uma cadeira nos costados, mas estaquei também, ciente da gravidade da situação. Estacámos todos, aliás, subitamente petrificados, entupidos de súbita reverência. Fez-se silêncio, um silêncio sepulcral, enquanto o pano encharcado, depois de lhe conspurcar as ventas, resvalou lentamente e inobilizou-se, por fim, com um lúgubre “plop”, no chão pouco asseado do estabelecimento.

-“Chega um homem a uma idade destas, para levar com um pano encharcado na tromba!... – Como que crocitou, soturno. –“Andou um homem a combater no ultramar, agora no inframar e já não tarda muito no Além-terra e a paga que tem é um pano encharcado nas fuças!... ”

Íamos até para ter pena do gajo, quando, sem que nada o fizesse prever, irrompeu pelo antro o Finuras aos gritos de “Venham depressa!Venham ver!...”

Instintivamente, fomos. Um brado daqueles prometia variedades. Excepto o Dinossauro, bem entendido, que continuava perplexo com o pano.

Era o Animal Feroz. Estava a atacar a menina Liberdade. O Animal Feroz, aproveito para informar, é o ratito hamster do bordel Europa e, por alguma razão que se desconhece, experimenta uma vertiginosa atracção pela menina Liberdade, a mais eclética e palerminha das funcionárias do estabelecimento. Mas, talvez por isso mesmo, das mais procuradas e lambuzadas pela clientela. O costumeiro é que sempre que o Animal Feroz (assim alcunhado por obra baptista do Ildefonso Caguinchas) , escapa do recinto gradeado onde urde constantes planos de evasão, corre na direcção da menina Liberdade, com sérios e lúbricos intuitos de lhe amarinhar pelas pernas acima e gozar por elas abaixo (suspeita a grande maioria dos espectadores, excepto o Caguinchas, que, em aleive erudito, proclama a certeza mais completa e absoluta). Desta vez, deixem que vos conte, o Animal Feroz, aproveitando um instante desatento da tratadora - a Carla Bocadoce, como se veio mais tarde a apurar-, esgueirara-se solertemente e, com boa velocidade e superior desembaraço, encetara uma louca perseguição à sua tradicional vítima. Alvo de tão minúscula se bem que descomedida obsessão, a menina Liberdade esbaforira-se com grande alarido. Após atribulado rali pelo interior do albergue, acabara por vir cá para fora aos gritos e, simultaneamente de poleiro e torre de menagem (neste caso a deux, mas contrafeita) na mesa ao canto da esplanada, debulhava-se agora num pânico altamente cómico, embora pungente. Um grupo de clientes habituais, entre gajos do sexo feminino e gajas do sexo masculino, tripulados por um comité de proxenetas profissionais bestialmente iracundos (que a generosidade, tansice e proficiência da menina Liberdade é lendária e sustenta, de uma forma ou doutra, todo um mar de gente), organizava já uma manifestação espontânea, em protesto contra os recorrentes tormentos da desgraçada às patitas ínfimas - mas velozes e contumazes - da cruel microbesta. Um abaixo-assinado, daqueles tesos, circulava entre as abespinhadíssimas hostes, convocando ao encarceramento urgente e inediato da alimária opressora. Enquanto isso, a menina Liberdade lá ia imitando as ambulâncias, à medida que o Animal Feroz, num avanço sôfrego, depois de tomar de assalto uma das cadeiras, sondava agora, com indisfarçável gula e não menos fogoza arte, um acesso expedito à mesa apetecida.

Diante de tão grotesco espectáculo, onde o surrealismo e o rilhafoles se entrelaçavam em perfeita sincronia, toda a tasca, digo cibertasca, desatou num fartote de riso. Que redobrava a cada nova peripécia do circo chão.

-“Ai, socorro! Acudam! Lá vem ele, o Animal Feroz!...” – Uivava a menina aflita.

- “Que arrogância! É inaudito!... Irra, que besta... fascista!! Salazarento!!” – Barafustavam os manifestantes, tremebundos e noctiluzes de indignação cívica.

- “É um atentado flagrante ao estado de direito democrático! – Denunciava, em tom gosmoso, um dos proxenetas mais veteranos, às varandas, janelas e postigos circunridentes. Nunca esquecendo os terraços e águas-furtadas, claro está.

Nisto, recobrado do seu amuo entorpecente, arrima-se à porta o Dinossauro e, intrigado pela ridícula barafunda, pergunta:

- “Mas afinal o que é que se passa?...”

Responde-lhe o Caguinchas, com aquele seu dom de síntese característico:

- “São os chavalecos e as barbies, ou os barbies e as chavalontras, já não se percebe bem: querem mamar na Liberdade e o Animal Feroz não deixa!

- “Humm... – Fez o Dinossauro, pensativo. – Suspeito que só a águia Vitória poderá salvá-los.”

- “Sim –corroborei eu. – Ou, em último caso, o gato Tareco.

Porém, este meu último comentário foi abafado por um grande bruá que eclodira entretanto. Todo um clamor ufano e entusiástico sacudia agora os manifestantes. Murmúrios pariam interjeições. Até que, no auge da excitacinha, feito arauto à naçãozona, o decano dos alcaiotes, mais conhecido pelo Chupa-cabras da Marmeleira (ou Toucinho Semiótico II, para os amigos), cacarejou em truanesco delírio:

-“ É ele, camaradas, digo companheiros! Já se avista, e vem a todo o galope, montado no seu amigo Tonto: o LONE-RANGEL! Vai dar cabo do Animal Feroz!...”



domingo, fevereiro 14, 2010

Para que conste

Quero informar os estimados leitores e os outros também que nada tenho que ver com as caixas de comentários deste blogue. Durante o período de silêncio em que comemorei os seis anos desta nave absoluta e convictamente pirata, aconteceu desaparecerem as caixas da Haloscan. Comecei por imaginar uma teoria da conspiração, mas, às tantas, apercebi-me que a haloscan estava a proceder a não sei que upgrades e passava a cobrar não sei que maquias. Considerei de pronto enviá-los ao grandessíssimo caralho que os fecundasse e tratei de agir em conformidade. Como devem ter reparado, as caixas desapareceram durante um período considerável de dias. Depois, misteriosamente, apareceram estas. Nada fiz, nem nada tenciono fazer acerca das mesmas. Mesmo lê-las, não garanto. Até aos 10 exemplares, ainda vá, mas acima disso já não me parece coisa natural. Sinceramente, isto não é nem pretende ser "um blogue de referência". Neste país, e no mundo em geral, é bem sabido o que mais fulgurantemente atrai chusma: o desastre, o escândalo, a feira, em suma, o ajuntamento mirone. O basbaque soberano funciona por simpatia e atracção universal. Nada sendo, nunca está. Apenas coalesce instintivamente. Apenas adere à molhada, com volúpia pegajosa. Nada aqui habita que possa interessar tão homegéneo tipo de fauna. E tudo farei para que essa regra de ouro se mantenha. Nem que para isso tenha que recorrer a silêncios cada vez mais retumbantes. Há uma filosofia antiga que eu jamais deveria ter abandonado: distância é bonita e eu gosto. Por conseguinte, e que fique bem claro, nos postais escrevo eu e assumo o que escrevo, sendo notório que continuo onde sempre estive e estarei; no espaço dos comentários, escreve quem quiser e o que lhe der na real telha. Lisonja ou vitupério, para mim, é igual: já percebi que isto da blogosfera pouco mais ultrapassa que o egódromo turba-gaseificado. Os papagaios de hoje serão sempre os cágados raivosos de amanhã. E Macacus mutantis.
Entretanto, para os indefectíveis da ordem, aqui fica a minha garantia: um dia calar-me-ei para sempre, nada de mais certo e seguro. Mas amanhã, se Deus quiser, ainda não será a véspera desse dia.

Aproveito ainda, já que estamos em maré dialogante, para abordar um assunto recorrente das caixas de comentários. Perguntam-me muitas vezes, com lógica e propriedade, "mas então, que fazer?"
Viciadas na incivilização do espectáculo, do barulho e do espavento histriónico, cinematográfico, as pessoas tendem a imaginar milagres, revoluções, filmes e movimentações tumultuosas, ou quaisquer outras receitas ou panaceias urgentes. Do pensamento-rápido germina a solução fácil. Mas, no fundo, a verdadeira acção não decorre no mundo, com os seus chiqueiros e folclores contínuos, mas dentro de nós próprios. A vossa alma é o vosso real campo de batalha, ou ainda não percebestes, ó gente de fraca fé, que é por ela que estais e vale a pena lutar?
Que fazer, então, meus amigos? Diz-se numa única palavra: resistir. Não deixar que o que é mais baixo e rasteiro nos confisque aquilo que O mais elevado nos deu. A melhor forma de ajudar os outros é não nos perdermos a nós próprios. A verdadeira acção não é doutrina: é exemplo.



sábado, fevereiro 13, 2010

Regime de procissão (rep)

Como, para não variar, aqui se anunciava há um ano atrás:

Logo a seguir a Abril de 1974, tentaram sujeitar o país ao "Partido Único". Trinta e quatro anos depois, transpostas inúmeras e caricatas peripécias que seria agora fastidioso enumerar, alcançaram-no. Acordámos, um belo dia, não direi súbita porque lenta e merecidamente, subjugados sob a patorra duma seita cleptocrata única. Uma hidra de duas cabeças, qual delas a mais vácua, formada, via alporquia de cortelho, por um Governo que desgoverna e uma Oposição que promove. Ou seja, um governo que faz oposição ao país e uma oposição que faz promoção ao governo.
Isto já não vai a lado nenhum, muito menos a eleições dignas desse nome. O povo não tem por onde escolher, apenas ratifica. E o regime já nem é de república nem de monarquia: é de procissão.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Stand up pulhitics

Uma marcha solene de papagaios louros, macacos de importação e outros palhadinos coquetes, a cavalo numa petição verdadeiramente cómica, vai tomar de assalto o Palramento e convocar à restauração (no sentido de pastagem, naturalmente) a praga que lá habita. É o regime das amplas liberdades que periga, proclamam. O estado de direito democrático que periclita, lacrimejam em sobressalto. Ah, e é, em especial, a "liberdade de expressão", essa santa, que fenece sob tortura, atestam. Consigo até imaginar o cartaz com que dourarão tão intrépida embaixada peticioneira: "Fascismo, nunca mais!"
Bem, cumpre-me reconhecer, diante dum tal exército, já só uma coisa pode salvar o "animal feroz" que os amofina e, aos comandos duma das principais confrarias de malfeitores residentes, vai depredando este infortunado país: É, num golpe de asa e génio, o temível "fascista", devidamente escoltado pela inefável Esther Miklinizivschlepingeetc, vir a público exibir a sua ascendência judaica, mai-lo respectivo brevet e alvará, e, assim, devidamente blindado, descontar toda esta excitação fóbica como mais um lamentável epifenómeno de anti-semitismo atávico, recorrente e arreigado.
E é ver como toda esta chusma, num ápice miraculoso, perde logo os fornicoques revolucionários e manda às urtigas os ardores liberdadeiros.
De facto, só lembraria ao diabo: ver a nossa putativa liberdade de expressão a ser gloriosamente defendida por um rancho folclórico de papagaios.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Circuito Vicioso ou Do Mercado... de Escravos




«As 20 Maiores Dívidas Externas do Planeta.»

Não vou discutir critérios, nem curiosidades. Ocupamos um honroso 9º lugar, na peugada de naçoas tão ilustres como a Suíça, o Reino Unido, a Holanda, a Bélgica, a Dinamarca e mais umas quantas. Atrás de nós, embora solidárias e firmes no pelotão da frente, pedalam, entre outros, a Alemanha e os Estados Unidos, só para citar as cifras mais astronómicas: 5.208 e 13.454 triliões de dólares, respectivamente.
Pois bem, queria apenas deixar à consideração geral duas ou três notas, assim em jeito de aperitivo.

1. Dir-se-ia que o tão cantado Ocidente, depois da falência moral, enfrenta a falência económica. Afinal, vendeu a alma para quê?

2. Devem todos aqueles imensos balúrdios, cujos números até causam vertigens, mas ... devem a quem?

Diz o provérbio que "quem não tem dinheiro não tem vícios". Ao que eu acrescentaria: e quem tem o dinheiro, fabrica-os. E coloca-os a render.

É que os "países", tal qual as "pessoas", compram (e pagam) a crédito. Se bem que na verdade, tanto quanto na realidade, não compram nem pagam: vendem-se. Individual e colectivamente.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Sem vaselina

Depois da treta da crise, da treta da gripe e da treta do Haiti, eis que volta a super-treta do défice. O que vale é que estes deserdados mentais engolem qualquer supositório. Basta que lho apresentem em forma de notícia e lho enfiem pela boca abaixo. É que o orifício mais adequado e mais abaixo está geralmente ocupado pelo imarcescível bacamarte da realidade. Sem vaselina.
Mas disso não se fala. É segredo.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Sem Rei nem rota


Em tempo de naufrágio, cada qual agarra-se ao destroço flutuante que lhe bóia mais próximo e faz dele a sua jangada. Depois, a jangada torna-se a sua ilha. Dele e de quantos por lá se recolham, em desespero e refluxo. E, à medida que o seu número cresce, a ilha absorve o universo.

Ora, se o naufrágio dum navio constitui catástrofe de monta, o naufrágio duma nação e de todo o seu povo configura a tragédia completa. Em vários actos.

Porque o naufrágio dum país não se resume ao desmantelamento do navio pela tempestade e pelos recifes: prossegue depois na sucessiva destruição das jangadas, que vão devindo cada vez mais precárias e exíguas. Até que não reste mais que um mar de gente à deriva num mar de estilhas. O naufrágio duma nação torna-se assim, pior que a simples catástrofe, numa lenta agonia, num prolongado estertor, em suma, numa tragédia que nunca mais acaba.

A nau que Portugal foi, hoje já não é. Ao ritmo das marés e das luas, vão-se esfarelando as jangadas, vão-se irrisando as ilhas num coalho sórdido de arquipélagos chochos, vão-se engalfinhando e injuriando os náufragos, num rilhafoles pegado e sempreviçoso. Perdido o navio, qualquer armário velho serve, qualquer tabuado à deriva adquire contornos de embarcação. Juntem-se dois nadadores num destes batelões do acaso e logo um arvora ao capitão. E o outro ganha instantanemente artes e cédulas de timoneiro.

Perdido o todo, perdida a noção de todo, de pertença e comunidade dum todo, as partes ficam entregues às suas contingências. E aos devaneios de pavilhão ou fantasias de boleia no primeira embarcação que passe. Sonham agora não já apenas com alguém que os salve, mas, sobretudo, e resumido, com alguém que os adopte.