A turba acorre ao infanticídio como converge para qualquer desastre na auto-estrada. Ao agitado, ávido perpétuo, convoca-o a contemplação voluptuosa da desgraça, excita-o a chafurdice na miséria alheia. Convence-se que é seu dever postar-se ali de plantão, de basbaque, à coca de pormenores escabrosos, de tripas e postas, que o façam repugnar e insurgir-se muito, inflamar-se e consumir-se por combustão espontânea. Aproveita para jactar aquilo que não tem: coragem e, muito menos, compaixão. Anseia por execrar um qualquer mais execrável que ele – um desqualificado infame que, no seu opróbrio vertiginoso, a faça, por momentos, guindar-se aos píncaros da tribuna e da sobranceria. Lá bem no fundo, turvamente, pressente que a lotaria do destino escolheu o outro como o poderia ter escolhido a ele. Que gostaria agora de massacrar o ignóbil arguido tal qual, mergulhado na ratoeira das circunstâncias e da desalmação, poderia também ter feito sabe Deus o quê à criancinha tragada pelo mistério e esquartejada pela boataria. Isto que o irmana é, intimamente, também aquilo que o indigna, que o pôe fora de si, a bramar e a cuspir ao vento, para se expurgar de toda a conivência, ou pior: de toda a comunhão. Por isso, numa velada exasperança, compensa essa empatia visceral com uma antipatia aparente, exagerada. Urra e descabela-se, num furor desengonçado e fictício. Vocifera à passagem das câmaras. Pormenor, aliás, sintomático e revelador: Mal se sente focado, ou meramente em plano de fundo, desata no folclore de carpideira a soldo, de possesso por encomenda, e redobra nos bramidos, nos guinchos, nas injúrias e ameaças ao veículo que passa. É o eterno figurante que almeja tornar-se protagonista. Exibe-se em espalhafatos de gorila zangado, ou, sendo fémea, de saguim estrídulo. No resto do tempo rumina, opina, pasta e fala ao telemóvel. Transmite relatórios in loco, manda SMSs aos amigos que, com muita pena sua, não poderam vir. Imita, à sua pequena escala, o jornalista sobreactivo (minto: o jornalista é que o imita a ele; o jornalista é que é, cada vez mais, um labrego armado com um microfone e uma câmara de filmar). Mas, sobretudo, julga, acusa e condena. Animam-no ímpetos de verdugo, de magarefe justiceiro, de facínora santo e redentor. Tanto quando espreitar, quer espezinhar, cuspir, vituperar, para se sentir acima, para sacudir de si a mancha, todo e qualquer vínculo que o possa indiciar ou aparentar à abominação. Despe-se de qualquer familiaridade ou comunidade com ela, e vai queimar a roupa no alto dum salgueiro, como, diz a lenda, fazem os lobisomens para esconjurarem o fado.
Debalde. Pior mesmo que nascer sem dinheiro, no mundo de hoje, é nascer sem alma. Nesse aspecto soberano, o mundo de hoje, afinal, não se distingue do mundo de sempre.
Entretanto, os media comandam a assuada, fazem de picadores na arena. O boato amplificado e mega-repetido para toda a paróquia traveste-se de notícia. Os doutores da informação, pivôs de serviço, levam o diz-que-disse a todo o país e às comunidades no estrangeiro. Até Angola e Moçambique ficam a saber. Para isso tiraram o curso, os doutores. Para bradar a toda a parte, com engenho e arte. Os repórteres no terreno, esses, alimentam a caldeira, catalizam e dinamizam a histeria, chafurdam e gargarejam mais que todos. Guiados por batedores locais, espreitam os polícias que, por sua vez, aproveitam para se dar ares misteriosos. Repórteres e polícias espiam-se, competem, disputam a titularidade na investigação. Alguns populares mais expeditos também. Mas são os repórteres quem lidera o arraial. Registam e transmitem todo e qualquer murmúrio ou desabafo. Impedidos de interrogarem pessoalmente os suspeitos, de espremê-los até á última gota, vingam-se e interrogam toda a restante família e quem quer que lhe apareça à frente. Sabedora deste vórtice colector, a população acorre a prestar declarações, a dizer de sua justiça, a vazar os seus palpites. Mas desengane-se quem pensa que são só os mamíferos lá do sítio e arrabaldes. Não, adicionem-lhes excursões de terras longínquas, espontâneos de toda a espécie, mirones peregrinos em romaria e, por todo o país, à hora do telejornal, do Director da Judiciária ao Ministro, passando pelo Cardeal patriarca, não há quem não queira dar uma palavrinha, declarar, meter colherada. Rebentam análises em todas as praias. Como um buraco negro, o écran tudo absorve e desdobra numa dimensão paralela. A turba no terreno prolonga-se e multiplica-se, através duma rede de canais e tentáculos, na turba no sofá. Não são só os da beira da estrada que vociferam e vituperam o assassino que passa: são também os domésticos, à distância, nas salas de jantar, aos rosnidos, clamores e juras por sangue redentor, por retaliação imediata, demolidora, peremptória. Não são só os observadores atentos no terreno que reparam, perspicaz e argutamente, que o fulano alegadamente malvado, tio da vítima, não muda de camisa há três dias; é também a chusma domiciliada a contra-gosto, que corrobora e disseca. Não tarda muito e dissertarão, todos eles, eruditos, sobre a marca, etiqueta e teor em fibra da mesma. Entra-se nos domínios da decifração de augúrios.
Há que reconhecê-lo: O linchamento televisivo –como as execuções na praça pública, do antanho – une definitivamente as alminhas numa comunhão nacional. O fenómeno só encontrará talvez paralelo na fraternidade que acompanha o golo, em casa e no estádio, em jogos decisivos da selecção.
Agora imaginem o quanto não vale todo este pagode em ponto de rebuçado, neste estado fértil da pasta encefálica, para efeito de injecções publicitárias?!...Quanto não cobram os bandarilheiros da TVI (ou da SIC, ou da RTP) para colocarem o toiro bem a jeito dos senhores cavaleiros –da Nokia, Sagres, GM, etc – plantarem os seus rebordados ferros?!...
Têm sido declamados vários cenários, todos eles repugnantes. Alguns, do mais repugnante que possa imaginar-se. Em todo o caso, nenhum, nem os piores, tão repugnantes quanto o proxenetismo do asqueroso em que mergulhou a comunicação social deste país. Contemplá-la no seu chafurdar permanente, diário, insaciável, mais que transportar-nos à náusea garantida, confere à palavra "necrofagia" toda uma nova e ainda mais deprimente dimensão. Uma necrofagia espectacular...Exibicionista.
quinta-feira, setembro 30, 2004
sexta-feira, setembro 24, 2004
A Polarquia ou Feudalismo esotérico
Tem-se falado muito, ultimamente, de sociedades secretas. Cooptam, as ditas cujas, toda a gente sabe. Mas se ainda fosse só a Maçonaria e a Opus Dei...
Segundo reza a constituição, Portugal é uma república. Mas como a constituição, por estas bandas, é essencialmente decorativa, para inglês ver, isso não significa nada. Depreende-se que é uma república porque não tem rei, soberano coroado, titular em exercício dinástico. E, no entanto, se é verdade que, em rigor, Portugal não é uma “mon-arquia”, porque não é governada por “um” rei, não é menos verdade que é uma “poli-arquia”, ou seja, é “governado” por “muitos” - reizinhos, é claro. Reis no diminutivo. Temos, assim, uma república sui generis: Uma república infestada de reis diminutos. Num certo sentido, uma república feudal; um território fraccionado, escaqueirado, numa mirídade de pequenos reinos ou feudos, um condómino fechado, hermético, com múltiplos inquilinos régios. Mas isto a todos os níveis. Não é só o próprio presidente da putativa República portuguesa que está convencido que é a rainha de Inglaterra, ou o pândego da Madeira que se julga majestade insular, ou os presidentes de Conselho de Administração das empresas estatais e outras que estão convencidos de que foram divinamente investidos, ou os presidentes das Câmaras e dos clubes de futebol que se sentem entronizados. Não; é mais vasto, é mais grave, vem por aí abaixo, alastra em todas as direcções e sentidos; rodopia, turbilhoneia, exorbita. É endémico e epidémico. A realeza desfila por todo o lado, ubíqua, ungida, eleita ou meramente ejaculada. Dá-se um pontapé numa pedra e salta de lá uma dinastia completa, com planos magistrais, babélicos, para a reestruturaçãoção do universo e arredores; com teorias mirabolantes acerca de tudo e mais alguma coisa, mas especialmente sobre as conspirações da arbitragem e o penteado dos futebolistas. Já não falando nas respectivas cortes, sempre numerosas, famintas, sabujabundas, a reptar viscosamente em redor. Quais toupeiras invertebradas a cheirar a migalha, a sobra, o espólio... Porque, como é óbvio, cada rei nunca se contenta em ser só rei: quer ser imperador de outros reis, ambiciona expandir-se, contrair vassalos. Em suma: é um beija-mão, um beija-pé, um beija-cu compulsivo e generalizado. Onde menos se espera, lá estão meia dúzia de prostrados a velar a majestade impante e a inalar o chulé que desliza em ascenção ao trono. E são aos milhares os snobes, escudeiros e patos bravos, é toda uma nova-nobilarquia apócrifa, anódina e chunga, mas poderosa, ubíqua, que, se não leva o rei na cabeça, transporta-o de certeza na barriga. Quer dizer, tanto levam a vaidade estampada nos chifres, como, em gestação, na pança. E com que basófia jactam o bandulho proeminente!...
Se não acreditais, julgais que zombo, então espreitai na RTP, na RDP, na TAP, nos CTT, na CML, e em múltiplos outros ninhos da mesma espécie...São pais, mães, filhos, sobrinhos, primos, amigos, afilhados, noras, cães, gatos, piriquitos, canários, piolhos púbicos, são linhagens rascas em réplica subalterna, mas multiplicada, de linhagens snobes; são estirpes rafeiras à sombra de pedigrees olímpicos. Se os de cima entram pela porta da frente, pela passadeira aveludada da maçonaria, da opus dei, da opus gay, do raio que os parta, os de baixo enfiam-se de roldão pela porta do cavalo, à boleia de tios e padrinhos, de pais e avós, mas sempre por hemodiálise social. Quer dizer, por cooptação sanguínea, como membros dilectos mais que duma sociedade, dum pequeno reino ou feudo secreto. E, para mais, à boa maneira dos Bourbons e quejandos, todos eles, os de cima mas sobretudo os de baixo, casam uns com os outros, procriam empresarialmente, entregam-se à endogamia organogrâmica.
É de arrepiar, pois é: O cabrão do país está entregue a uma estirpe retorcida e metastizada de feudalismo esotérico. Deus nos acuda!
Segundo reza a constituição, Portugal é uma república. Mas como a constituição, por estas bandas, é essencialmente decorativa, para inglês ver, isso não significa nada. Depreende-se que é uma república porque não tem rei, soberano coroado, titular em exercício dinástico. E, no entanto, se é verdade que, em rigor, Portugal não é uma “mon-arquia”, porque não é governada por “um” rei, não é menos verdade que é uma “poli-arquia”, ou seja, é “governado” por “muitos” - reizinhos, é claro. Reis no diminutivo. Temos, assim, uma república sui generis: Uma república infestada de reis diminutos. Num certo sentido, uma república feudal; um território fraccionado, escaqueirado, numa mirídade de pequenos reinos ou feudos, um condómino fechado, hermético, com múltiplos inquilinos régios. Mas isto a todos os níveis. Não é só o próprio presidente da putativa República portuguesa que está convencido que é a rainha de Inglaterra, ou o pândego da Madeira que se julga majestade insular, ou os presidentes de Conselho de Administração das empresas estatais e outras que estão convencidos de que foram divinamente investidos, ou os presidentes das Câmaras e dos clubes de futebol que se sentem entronizados. Não; é mais vasto, é mais grave, vem por aí abaixo, alastra em todas as direcções e sentidos; rodopia, turbilhoneia, exorbita. É endémico e epidémico. A realeza desfila por todo o lado, ubíqua, ungida, eleita ou meramente ejaculada. Dá-se um pontapé numa pedra e salta de lá uma dinastia completa, com planos magistrais, babélicos, para a reestruturaçãoção do universo e arredores; com teorias mirabolantes acerca de tudo e mais alguma coisa, mas especialmente sobre as conspirações da arbitragem e o penteado dos futebolistas. Já não falando nas respectivas cortes, sempre numerosas, famintas, sabujabundas, a reptar viscosamente em redor. Quais toupeiras invertebradas a cheirar a migalha, a sobra, o espólio... Porque, como é óbvio, cada rei nunca se contenta em ser só rei: quer ser imperador de outros reis, ambiciona expandir-se, contrair vassalos. Em suma: é um beija-mão, um beija-pé, um beija-cu compulsivo e generalizado. Onde menos se espera, lá estão meia dúzia de prostrados a velar a majestade impante e a inalar o chulé que desliza em ascenção ao trono. E são aos milhares os snobes, escudeiros e patos bravos, é toda uma nova-nobilarquia apócrifa, anódina e chunga, mas poderosa, ubíqua, que, se não leva o rei na cabeça, transporta-o de certeza na barriga. Quer dizer, tanto levam a vaidade estampada nos chifres, como, em gestação, na pança. E com que basófia jactam o bandulho proeminente!...
Se não acreditais, julgais que zombo, então espreitai na RTP, na RDP, na TAP, nos CTT, na CML, e em múltiplos outros ninhos da mesma espécie...São pais, mães, filhos, sobrinhos, primos, amigos, afilhados, noras, cães, gatos, piriquitos, canários, piolhos púbicos, são linhagens rascas em réplica subalterna, mas multiplicada, de linhagens snobes; são estirpes rafeiras à sombra de pedigrees olímpicos. Se os de cima entram pela porta da frente, pela passadeira aveludada da maçonaria, da opus dei, da opus gay, do raio que os parta, os de baixo enfiam-se de roldão pela porta do cavalo, à boleia de tios e padrinhos, de pais e avós, mas sempre por hemodiálise social. Quer dizer, por cooptação sanguínea, como membros dilectos mais que duma sociedade, dum pequeno reino ou feudo secreto. E, para mais, à boa maneira dos Bourbons e quejandos, todos eles, os de cima mas sobretudo os de baixo, casam uns com os outros, procriam empresarialmente, entregam-se à endogamia organogrâmica.
É de arrepiar, pois é: O cabrão do país está entregue a uma estirpe retorcida e metastizada de feudalismo esotérico. Deus nos acuda!
quarta-feira, setembro 22, 2004
E de repente...A Retoma!
Notícia de abertura dum telejornal de ontem...
A “pivô”, em êxtase semi-orgástico:
«Portugueses correm aos bancos a endividar-se. No último mês, bancos emprestam para cima de “não sei quantos” milhões de euros em crédito à habitação. Que maravilha! Sinais da retoma, hurra!...»
Devemos todos rejubilar, entoar hossanas e agradecer o maná que, pelos vistos, começa a jorrar dos céus!...
E eu, que já não percebo nada de coisa nenhuma, pergunto: retoma de quem? Do país ou dos bancos? O país são os bancos, ou os empreiteiros? Vamos todos comprar casas e isso significa o quê? Que andamos todos a dormir debaixo da ponte? Que por nos endividarmos ficamos melhores, mais livres, mais felizes? Que estivemos a ressacar, de castigo, e agora o traficante já nos concede o beneplácito de outra dose? Que devia mudar-se o nome do país de “portugal” para “Otariolândia”?
Se a notícia fosse “portugueses correm a assaltar os bancos” eu ainda acreditaria nalguma espécie de retoma. Uma retoma justa, diga-se de passagem, urgente, necessária: a dos portugueses a retomarem o seu dinheiro, pois claro. Ao menos sempre íam comprar mais casas, carros e telemóveis a pronto. Já que não servem para mais nada...Os portugueses, quero eu dizer.
A “pivô”, em êxtase semi-orgástico:
«Portugueses correm aos bancos a endividar-se. No último mês, bancos emprestam para cima de “não sei quantos” milhões de euros em crédito à habitação. Que maravilha! Sinais da retoma, hurra!...»
Devemos todos rejubilar, entoar hossanas e agradecer o maná que, pelos vistos, começa a jorrar dos céus!...
E eu, que já não percebo nada de coisa nenhuma, pergunto: retoma de quem? Do país ou dos bancos? O país são os bancos, ou os empreiteiros? Vamos todos comprar casas e isso significa o quê? Que andamos todos a dormir debaixo da ponte? Que por nos endividarmos ficamos melhores, mais livres, mais felizes? Que estivemos a ressacar, de castigo, e agora o traficante já nos concede o beneplácito de outra dose? Que devia mudar-se o nome do país de “portugal” para “Otariolândia”?
Se a notícia fosse “portugueses correm a assaltar os bancos” eu ainda acreditaria nalguma espécie de retoma. Uma retoma justa, diga-se de passagem, urgente, necessária: a dos portugueses a retomarem o seu dinheiro, pois claro. Ao menos sempre íam comprar mais casas, carros e telemóveis a pronto. Já que não servem para mais nada...Os portugueses, quero eu dizer.
A Educação do Povo
As revoluções, mesmo quando antecedidas do prefixo “pseudo” (quase todas, portanto), fazem-se invariavelmente acompanhar dum cardápio de ideias peregrinas. Todas elas urgentes, todas elas magníficas, todas elas prioritárias. Uma dessas, aquando da primavera Abrileira cá do burgo, era: “temos que educar o povo!”
Uma série de romeiros iluminados, regressados dos exílios dourados na estranja ou dos piqueniques selvagens nas colónias, acolitados por chusmas de marxistas-leninistas instantâneos, em patrocínio da Farinha Amparo, tomaram-se de brios e entusiasmos, e propuseram-se ir educar o povo, a massa ígnara, bruta e analfabeta.
Como sempre nestas aventuras, tomaram por princípios e axiomas meros preconceitos. A saber, 1. Que o povo era educável; 2. Que o povo queria ser educado; 3. Que eles reuniam e congregavam sob o substracto córneo das suas sapientes trunfas o know-how bastante para educar o povo.
Havia também um eufemismo muito usual por altura destas balbúrdias: confundia-se “educação” com “lavagem ao cérebro”. Ou melhor, dizia-se “educar”, mas, no fundo, queria dizer-se “lavar”. Eles, abençoados pela História, tinham que desencardir o povo, que escorria merda e surro de quase cinquenta anos.
Ora, sempre que uma caterva de luminárias se decide a educar quem quer que seja, e sobretudo o “povo”, a primeira coisa que faz é arranjar um modelo (de preferência de importação, são sempre os melhores). Em se tratando daquela região europeia situada a oeste de Espanha, pior um pouco. A discussão, de séculos, nunca é “quem somos ou quem devemos ser”, mas sim “quem copiamos ou quem devemos copiar”. Se na aparência poderão passar por homens ao observador menos atento, na essência não enganam: são verdadeiros macacos de imitação. Encontrareis excepções a esta regra, mas, certamente, não nas elites –políticas, culturais, sociais, industriais –, lá do sítio. Aí, a macaquice, jurada e jactante, é condição de acesso. Vivem à coca da casa do vizinho e do que o vizinho lá mete. O país inteiro, por osmose, como os seus átomos constituintes, espia o resto do bairro/mundo e roi-se de inveja das Franças, das Escandinávias, das Inglaterras ou das Américas. Que povos educados, a transbordar civismo e boas maneiras! Que maravilha de pessoas! Que inteligências amestradas, atestadas de higiene e sentido do dever fiscal! Que trabalhadores ordeiros e laboriosos!
A unanimidade quanto à superioridade do que é estrangeiro não podia ser maior. As divergências, essas, animadoras de polémicas virulentas e vociferações descabeladas, germinam desse dogma básico e encarniçam-se à volta da tal questão fulcral e de importância transcendente, ou seja: Sendo certo que só existimos se copiarmos, quem vamos então imitar. Isto predetermina tudo.
Por alturas da grande convulsão primaveril, a diferença é que o leque de escolha era ainda maior do que é hoje. Não só os belos povos ocidentais podiam servir de paradigma, como também uma série de outros, da Albânia à Cochinchina, despertavam a cobiça e os ímpetos emuladores dos fogosos endoutrinadores da plebe. O difícil era a escolha. Quase todos os povos eram melhores que o nosso, mais limpos e imaculados. Bastava ir ao Atlas geográfico. Ao nosso, repito, emporcalhava-o, inquinava-o até aos ossos – e à medula dentro dos ossos – a longa noite fascista. Era fascista como podia ser outra coisa qualquer. A palavra caíu-lhes no goto; dignificava e canonizava a sedição, beatificava o tumulto, justificava toda a parafrenália de medidas drásticas e emergências médicas.
Também o povo, há que reconhecê-lo, era pólvora seca, anelante, à espera de faísca. Aliás, essa, é sempre a sua postura predilecta: barril a clamar rastilho. Ainda para mais, xenómano a ressacar desde há mais de quarenta anos sem o chuto de estrangeirina no dígníssimo cu, agradeceu, merejado em êxtase, mal experimentou o valente coice dos novos mestres. Foi vê-lo a levantar voo, retropropulsionado, como se foguetões o catapultassem. Foi à lua e veio. De caminho deu uma espreitadela à União Soviética e descuidou-se todo pelas calças abaixo. Ainda hoje tresanda ao susto, ainda hoje expia o trauma.
A ideia de copiar a União Soviética, claro está, era a mais peregrina de todas. Por isso mesmo, à época, triunfou no concurso e surgiu, resplandecente, meteórica, como a mais fascinante e sublime. O povo soviético, na perspectiva de então, emergia nimbado de fulgores e virtudes, açambarcava medalhas olímpicas e exportava bailarinos. Era, pois, de todo conveniente imitá-lo o quanto antes.
O que sucedeu depois já todos sabem. Para vermos até que ponto era brilhante essa tese, basta dar, hoje, uma volta pelo paraíso de trolhas em que se tornou a nação: os ex-virtuosos e fulgurantes licenciados soviéticos, suprassumo da educação, cartam agora baldes de massa e formiguejam pelos andaimes acima e, de quando em vez, dos andaimes abaixo. Triste fim para um império tão luminoso.
Mas uma ideia peregrina nunca anda só. Abortada a fotocópia soviética, enveredou-se pela imitação da gleba europeia e, ultimamente, lançam-se olhares de maravilha e cobiça à gleba americana.
Entretanto, as funções elementares da escola –coisas como ensinar a ler, a escrever e a contar-, desvaneceram-se sob uma catadupa de novas pedagogias, avançadas psicofolias e mirabolantes reestruturações ou paixonetas, cada qual mais mentecapta e mentecaptizante que a anterior. Os níveis de analfabetismo da pátria não esmoreceram por aí além – continuamos os menos alfabetizados de todos. Em contrapartida, os de analfabrutismo dispararam, em todas as direcções, e colocam o país, senão no comando destacado do Primeiro Mundo, certamente muito próximo disso. Uma miríade de especialistas debruçam-se sobre coisa nenhuma e montam comissões de volta de cada palha. O resultado?
É manifesto: Aos poucos, em fornadas anuais e sucessivas, os licenciados da pátria, cobaias de sucessivas Sextas Divisões de dinamização cultural, vão fazer companhia aos ex-soviéticos, a cartar massa pelos andaimes acima e, ocasionalmente, em voo picado, dos andaimes abaixo.
Não se trata duma injustiça: é, de facto, o nível da sua licenciatura, o alcance da sua educação. Num país que passa o tempo, numa compulsão obsessiva, a alcatroar terras, a erigir caixotes de betão e a terraplenar tudo o resto, outro destino não seria de esperar. Depois, é preciso não esquecer que desde que trolhas atávicos, por via do sortilégio de licenciatura à pressão, em patrocínio da farinha Amparo, tiveram acesso às cadeiras docentes e, nos últimos trinta anos, se refastelaram nelas a seu bel-prazer, produzir algo mais que trolhas, suas réplicas e decalque, seria impensável. A não ser por obra e graça do divino Espírito Santo.
Moral da história: Os políticos não educaram o povo, porque o povo não se auto-educa. E o Espírito Santo, de facto, obra, mas cobra juros.
Uma série de romeiros iluminados, regressados dos exílios dourados na estranja ou dos piqueniques selvagens nas colónias, acolitados por chusmas de marxistas-leninistas instantâneos, em patrocínio da Farinha Amparo, tomaram-se de brios e entusiasmos, e propuseram-se ir educar o povo, a massa ígnara, bruta e analfabeta.
Como sempre nestas aventuras, tomaram por princípios e axiomas meros preconceitos. A saber, 1. Que o povo era educável; 2. Que o povo queria ser educado; 3. Que eles reuniam e congregavam sob o substracto córneo das suas sapientes trunfas o know-how bastante para educar o povo.
Havia também um eufemismo muito usual por altura destas balbúrdias: confundia-se “educação” com “lavagem ao cérebro”. Ou melhor, dizia-se “educar”, mas, no fundo, queria dizer-se “lavar”. Eles, abençoados pela História, tinham que desencardir o povo, que escorria merda e surro de quase cinquenta anos.
Ora, sempre que uma caterva de luminárias se decide a educar quem quer que seja, e sobretudo o “povo”, a primeira coisa que faz é arranjar um modelo (de preferência de importação, são sempre os melhores). Em se tratando daquela região europeia situada a oeste de Espanha, pior um pouco. A discussão, de séculos, nunca é “quem somos ou quem devemos ser”, mas sim “quem copiamos ou quem devemos copiar”. Se na aparência poderão passar por homens ao observador menos atento, na essência não enganam: são verdadeiros macacos de imitação. Encontrareis excepções a esta regra, mas, certamente, não nas elites –políticas, culturais, sociais, industriais –, lá do sítio. Aí, a macaquice, jurada e jactante, é condição de acesso. Vivem à coca da casa do vizinho e do que o vizinho lá mete. O país inteiro, por osmose, como os seus átomos constituintes, espia o resto do bairro/mundo e roi-se de inveja das Franças, das Escandinávias, das Inglaterras ou das Américas. Que povos educados, a transbordar civismo e boas maneiras! Que maravilha de pessoas! Que inteligências amestradas, atestadas de higiene e sentido do dever fiscal! Que trabalhadores ordeiros e laboriosos!
A unanimidade quanto à superioridade do que é estrangeiro não podia ser maior. As divergências, essas, animadoras de polémicas virulentas e vociferações descabeladas, germinam desse dogma básico e encarniçam-se à volta da tal questão fulcral e de importância transcendente, ou seja: Sendo certo que só existimos se copiarmos, quem vamos então imitar. Isto predetermina tudo.
Por alturas da grande convulsão primaveril, a diferença é que o leque de escolha era ainda maior do que é hoje. Não só os belos povos ocidentais podiam servir de paradigma, como também uma série de outros, da Albânia à Cochinchina, despertavam a cobiça e os ímpetos emuladores dos fogosos endoutrinadores da plebe. O difícil era a escolha. Quase todos os povos eram melhores que o nosso, mais limpos e imaculados. Bastava ir ao Atlas geográfico. Ao nosso, repito, emporcalhava-o, inquinava-o até aos ossos – e à medula dentro dos ossos – a longa noite fascista. Era fascista como podia ser outra coisa qualquer. A palavra caíu-lhes no goto; dignificava e canonizava a sedição, beatificava o tumulto, justificava toda a parafrenália de medidas drásticas e emergências médicas.
Também o povo, há que reconhecê-lo, era pólvora seca, anelante, à espera de faísca. Aliás, essa, é sempre a sua postura predilecta: barril a clamar rastilho. Ainda para mais, xenómano a ressacar desde há mais de quarenta anos sem o chuto de estrangeirina no dígníssimo cu, agradeceu, merejado em êxtase, mal experimentou o valente coice dos novos mestres. Foi vê-lo a levantar voo, retropropulsionado, como se foguetões o catapultassem. Foi à lua e veio. De caminho deu uma espreitadela à União Soviética e descuidou-se todo pelas calças abaixo. Ainda hoje tresanda ao susto, ainda hoje expia o trauma.
A ideia de copiar a União Soviética, claro está, era a mais peregrina de todas. Por isso mesmo, à época, triunfou no concurso e surgiu, resplandecente, meteórica, como a mais fascinante e sublime. O povo soviético, na perspectiva de então, emergia nimbado de fulgores e virtudes, açambarcava medalhas olímpicas e exportava bailarinos. Era, pois, de todo conveniente imitá-lo o quanto antes.
O que sucedeu depois já todos sabem. Para vermos até que ponto era brilhante essa tese, basta dar, hoje, uma volta pelo paraíso de trolhas em que se tornou a nação: os ex-virtuosos e fulgurantes licenciados soviéticos, suprassumo da educação, cartam agora baldes de massa e formiguejam pelos andaimes acima e, de quando em vez, dos andaimes abaixo. Triste fim para um império tão luminoso.
Mas uma ideia peregrina nunca anda só. Abortada a fotocópia soviética, enveredou-se pela imitação da gleba europeia e, ultimamente, lançam-se olhares de maravilha e cobiça à gleba americana.
Entretanto, as funções elementares da escola –coisas como ensinar a ler, a escrever e a contar-, desvaneceram-se sob uma catadupa de novas pedagogias, avançadas psicofolias e mirabolantes reestruturações ou paixonetas, cada qual mais mentecapta e mentecaptizante que a anterior. Os níveis de analfabetismo da pátria não esmoreceram por aí além – continuamos os menos alfabetizados de todos. Em contrapartida, os de analfabrutismo dispararam, em todas as direcções, e colocam o país, senão no comando destacado do Primeiro Mundo, certamente muito próximo disso. Uma miríade de especialistas debruçam-se sobre coisa nenhuma e montam comissões de volta de cada palha. O resultado?
É manifesto: Aos poucos, em fornadas anuais e sucessivas, os licenciados da pátria, cobaias de sucessivas Sextas Divisões de dinamização cultural, vão fazer companhia aos ex-soviéticos, a cartar massa pelos andaimes acima e, ocasionalmente, em voo picado, dos andaimes abaixo.
Não se trata duma injustiça: é, de facto, o nível da sua licenciatura, o alcance da sua educação. Num país que passa o tempo, numa compulsão obsessiva, a alcatroar terras, a erigir caixotes de betão e a terraplenar tudo o resto, outro destino não seria de esperar. Depois, é preciso não esquecer que desde que trolhas atávicos, por via do sortilégio de licenciatura à pressão, em patrocínio da farinha Amparo, tiveram acesso às cadeiras docentes e, nos últimos trinta anos, se refastelaram nelas a seu bel-prazer, produzir algo mais que trolhas, suas réplicas e decalque, seria impensável. A não ser por obra e graça do divino Espírito Santo.
Moral da história: Os políticos não educaram o povo, porque o povo não se auto-educa. E o Espírito Santo, de facto, obra, mas cobra juros.
segunda-feira, setembro 20, 2004
Um português intemporal
Da sua biografia não se sabe muito. Ao certo, pensa-se que nasceu por volta de 1465. Mas Gil Vicente é Gil Vicente. Não imita gregos nem troianos. Se Camões, ao reino, lhe puxa o lustro, Gil Vicente, segurando-o por pinças, mostra-lhe o espelho. Mas, como em toda a obra de génio, não é um espelho que abarque apenas o rosto, a figura e a indumentária. Vai mais fundo: abarca o mundo, abarca a alma, a vida e a morte.
No século XVI, esse século da descrença, reina o gigante Pantagruel de Rabelais e andam à solta os diabos de Vicente. Cínicos, sarcásticos, impiedosos, estes, ainda hoje assolam o país e o mundo. São intemporais, habitam a alma humana, como intemporal é a obra desse nosso ilustre compatriota, remetida a um mui conveniente esquecimento por parte daqueles que ainda hoje, diante do espelho, sairiam retratados na perfeição.
Num país de poetas, poetinhas e poetizas, é a própria poesia que sai brindada com um valente pontapé no cu. O qual, refira-se, lhe assenta muito bem.
«Entra hum Diabo com uma tendinha diante de si, como bufarinheiro, e diz:
Diabo:
Eu bem me posso gabar,
e cada vez que quiser,
Que na feira onde eu entrar
Sempre tenho que vender
E acho quem me comprar.
E mais vendo muito bem,
Porque sei bem o que entendo;
E de tudo quanto vendo
Não pago siza a ningém
por tratos que ando fazendo.
Quero-me fazer à vela
Nesta sancta feira nova.
Verei os que vem a ell,
E mais verei quem m’estrova
De ser eu o maior della.
Tempo:
Es tu também mercador
Que a tal feira t’offereces?
Diabo:Eu não sei se me conheces
Tempo:Falando com salvanor,
Tu diabo me pareces.
Diabo:
Fallando com salvos rabos,
Inda que me tens por vil,
Acharás homens cem mil
Honrados, que são diabos,
Que eu não tenho nem ceitil,
E bem honrados te digo,
E homens de muita renda,
Que tem divedo comigo.
Pois não me tolhas a venda
Que não hei nada contigo.
Tempo (ao Seraphim):
Senhor, em toda maneira
Acudi a este ladrão
Que ha de danar a feira.
Diabo:
Ladrão? Pois haj’eu perdão,
Se vos meter em canseira.
Olhae ca, anjo de bem,
Eu, como cousa perdida,
Nunca me tolhe ninguem
Que não ganhe minha vida,
Como quem vida não tem.
Vendo dessa marmelada
E ás vezes grãos torrados,
Isto não releva nada;
E em todolos mercados
Entra a minha quintalada.
Seraphim:
Muito bem sabemos nós
Que vendes tu cousas vis.
Diabo:
Hi ha de homes ruins
Mais mil vezes que não bôs,
Como vós mui bem sentis.
(...)
E mais as boas pessoas
São todas pobres a eito;
E eu por este respeito
Nunca trato em cousas boas,
Porque não trazem proveito.
Toda a glória de viver
Das gentes hé ter dinheiro,
E quem muito quiser ter
Cumpre-lhe de ser primeiro
O mais ruim que puder.»
- Gil Vicente, “ Auto da Feira”
No século XVI, esse século da descrença, reina o gigante Pantagruel de Rabelais e andam à solta os diabos de Vicente. Cínicos, sarcásticos, impiedosos, estes, ainda hoje assolam o país e o mundo. São intemporais, habitam a alma humana, como intemporal é a obra desse nosso ilustre compatriota, remetida a um mui conveniente esquecimento por parte daqueles que ainda hoje, diante do espelho, sairiam retratados na perfeição.
Num país de poetas, poetinhas e poetizas, é a própria poesia que sai brindada com um valente pontapé no cu. O qual, refira-se, lhe assenta muito bem.
«Entra hum Diabo com uma tendinha diante de si, como bufarinheiro, e diz:
Diabo:
Eu bem me posso gabar,
e cada vez que quiser,
Que na feira onde eu entrar
Sempre tenho que vender
E acho quem me comprar.
E mais vendo muito bem,
Porque sei bem o que entendo;
E de tudo quanto vendo
Não pago siza a ningém
por tratos que ando fazendo.
Quero-me fazer à vela
Nesta sancta feira nova.
Verei os que vem a ell,
E mais verei quem m’estrova
De ser eu o maior della.
Tempo:
Es tu também mercador
Que a tal feira t’offereces?
Diabo:Eu não sei se me conheces
Tempo:Falando com salvanor,
Tu diabo me pareces.
Diabo:
Fallando com salvos rabos,
Inda que me tens por vil,
Acharás homens cem mil
Honrados, que são diabos,
Que eu não tenho nem ceitil,
E bem honrados te digo,
E homens de muita renda,
Que tem divedo comigo.
Pois não me tolhas a venda
Que não hei nada contigo.
Tempo (ao Seraphim):
Senhor, em toda maneira
Acudi a este ladrão
Que ha de danar a feira.
Diabo:
Ladrão? Pois haj’eu perdão,
Se vos meter em canseira.
Olhae ca, anjo de bem,
Eu, como cousa perdida,
Nunca me tolhe ninguem
Que não ganhe minha vida,
Como quem vida não tem.
Vendo dessa marmelada
E ás vezes grãos torrados,
Isto não releva nada;
E em todolos mercados
Entra a minha quintalada.
Seraphim:
Muito bem sabemos nós
Que vendes tu cousas vis.
Diabo:
Hi ha de homes ruins
Mais mil vezes que não bôs,
Como vós mui bem sentis.
(...)
E mais as boas pessoas
São todas pobres a eito;
E eu por este respeito
Nunca trato em cousas boas,
Porque não trazem proveito.
Toda a glória de viver
Das gentes hé ter dinheiro,
E quem muito quiser ter
Cumpre-lhe de ser primeiro
O mais ruim que puder.»
- Gil Vicente, “ Auto da Feira”
A Caverna
Jesus, que era cego e não via o mal, dizem, morreu por nós, que somos cegos e não vemos o bem.
O mal, o bem...De comum, aos sábios genuínos de todas as épocas, ficou uma convicção: apenas um deles existe.
Outros, mais esotéricos, entendem que Ele, o mal não o via pois escondia-se detrás do Bem; nós, ao Bem, não o vislumbramos, pois eclipsa-o o Mal.
Em milhares de anos o sol não nos ensinou nada. Continuamos a achar que é ele que viaja, quando quem viaja somos nós e a nossa visão junto connosco. O dia e a noite, o verão e o inverno, para o sol não existem.
Jesus via para lá do Mundo. Nós vivemos fechados nele. A tudo isso, Platão profetizou-o, na forma de uma alegoria: a da Caverna.
O mal, o bem...De comum, aos sábios genuínos de todas as épocas, ficou uma convicção: apenas um deles existe.
Outros, mais esotéricos, entendem que Ele, o mal não o via pois escondia-se detrás do Bem; nós, ao Bem, não o vislumbramos, pois eclipsa-o o Mal.
Em milhares de anos o sol não nos ensinou nada. Continuamos a achar que é ele que viaja, quando quem viaja somos nós e a nossa visão junto connosco. O dia e a noite, o verão e o inverno, para o sol não existem.
Jesus via para lá do Mundo. Nós vivemos fechados nele. A tudo isso, Platão profetizou-o, na forma de uma alegoria: a da Caverna.
sexta-feira, setembro 17, 2004
As Opções Nacionais
Imaginemos o senhor “fulano de Tal”.
O azar persegue-o. Crivado de dívidas, com as finanças numa lástima e sem fontes de rendimentos, o abismo espreita-o, o desespero atormenta-o...
A pergunta é um daqueles problemas éticos e resume-se a isto:
Deve o sr. “Fulano de Tal”, para resolver o seu problema, com a maior urgência, correr a
a) Suicidar-se?
b) Prostituir-se?
c) Vender-se? (O sangue, os órgãos, por exemplo)
d) Arrendar-se? (Para experiências científicas ou testes farmacêuticos)
e) Leiloar-se? (Em hasta pública)
Se qualquer uma das soluções é aberrante para o “sr. Fulano de Tal”, então porque não é aberrante para o vosso próprio país?
O azar persegue-o. Crivado de dívidas, com as finanças numa lástima e sem fontes de rendimentos, o abismo espreita-o, o desespero atormenta-o...
A pergunta é um daqueles problemas éticos e resume-se a isto:
Deve o sr. “Fulano de Tal”, para resolver o seu problema, com a maior urgência, correr a
a) Suicidar-se?
b) Prostituir-se?
c) Vender-se? (O sangue, os órgãos, por exemplo)
d) Arrendar-se? (Para experiências científicas ou testes farmacêuticos)
e) Leiloar-se? (Em hasta pública)
Se qualquer uma das soluções é aberrante para o “sr. Fulano de Tal”, então porque não é aberrante para o vosso próprio país?
Maquiavelismo a martelo
Comecem por tentar identificar o autor do que abaixo se transcreve...
«Não há nada que torne um príncipe tão estimado como concluir com êxito grandes e magníficas empresas e dar exemplos dignos de ficarem na memória. No nosso tempo, temos Fernando de Aragão, presentemente rei de Espanha, ao qual se pode chamar príncipe novo, pois de pequeno rei se transformou, por glória e fama, no primeiro rei da cristandade. Se analisarmos os seus feitos, achá-los-emos a todos grandes e a alguns, até extraordinários. (...) Por outro lado, enquanto se preparava para maiores empreendimentos, e a fim de se servir sempre da religião, começou a praticar uma santa crueldade, ao expulsar os marranos do seu país e ao despovoá-lo deles: não se poderia encontrar exemplo de piedade mais digno nem mais singular.»
“Marrano” –oriundo do castelhano, onde significa “suíno”, “porco” –, no português designava, antiga e injuriosamente, os árabes e judeus que viviam na Península Ibérica. Eis, portanto, com todas as letras, uma declaração anti-semita. Ao facto, certamente pouco carinhoso, de “expulsar” e “despovoar” de semitas um país, o autor classifica mesmo como “santa crueldade”.
Entretanto, o que não deixa de ser curioso é que esse mesmo autor, Nicolau Maquiavel, (na sua idolatrada e famigerada obra – donde provém a passagem em epígrafe- “O Príncipe”), constitui, por regra, literatura de cabeceira da grande maioria dos filo-semitas da nossa praça. Distingue-os, pelos vistos, ao mestre dos discípulos, uma espécie de refinamento: para aquele, com sinistra coerência, todos os semitas são “marranos”, merecedores de “santa crueldade”; para estes, por torcionário capricho, há os semitas maus e os semitas bons. Naturalmente, só os primeiros devem ser sujeitos à “santa crueldade”.
É, claramente, um maquiavelismo sintético. Destilado. Extraído por condensação da amálgama mal fervida do mosto e da zurrapa.
«Não há nada que torne um príncipe tão estimado como concluir com êxito grandes e magníficas empresas e dar exemplos dignos de ficarem na memória. No nosso tempo, temos Fernando de Aragão, presentemente rei de Espanha, ao qual se pode chamar príncipe novo, pois de pequeno rei se transformou, por glória e fama, no primeiro rei da cristandade. Se analisarmos os seus feitos, achá-los-emos a todos grandes e a alguns, até extraordinários. (...) Por outro lado, enquanto se preparava para maiores empreendimentos, e a fim de se servir sempre da religião, começou a praticar uma santa crueldade, ao expulsar os marranos do seu país e ao despovoá-lo deles: não se poderia encontrar exemplo de piedade mais digno nem mais singular.»
“Marrano” –oriundo do castelhano, onde significa “suíno”, “porco” –, no português designava, antiga e injuriosamente, os árabes e judeus que viviam na Península Ibérica. Eis, portanto, com todas as letras, uma declaração anti-semita. Ao facto, certamente pouco carinhoso, de “expulsar” e “despovoar” de semitas um país, o autor classifica mesmo como “santa crueldade”.
Entretanto, o que não deixa de ser curioso é que esse mesmo autor, Nicolau Maquiavel, (na sua idolatrada e famigerada obra – donde provém a passagem em epígrafe- “O Príncipe”), constitui, por regra, literatura de cabeceira da grande maioria dos filo-semitas da nossa praça. Distingue-os, pelos vistos, ao mestre dos discípulos, uma espécie de refinamento: para aquele, com sinistra coerência, todos os semitas são “marranos”, merecedores de “santa crueldade”; para estes, por torcionário capricho, há os semitas maus e os semitas bons. Naturalmente, só os primeiros devem ser sujeitos à “santa crueldade”.
É, claramente, um maquiavelismo sintético. Destilado. Extraído por condensação da amálgama mal fervida do mosto e da zurrapa.
Panegíricos não, carago!...
Alguns leitores deste blogue, possessos não sei de que mau espírito, parecem determinados em querer arruinar-me com a reputação. Além de se darem ao trabalho de deixar aí comentários, nas caixas apensas, o que eu já acho duma caridade e bonomia digna dum S.Francisco de Assis (o único santo taumaturgo que sabia falar com os animais), vão ao ponto, humilhante, de juntarem elogios aos comentários. Já não é o primeiro. Outros, ainda mais sádicos que estes, vão ainda mais longe e dão-se ao desfrute de panegiricar a meu respeito lá nos próprios blogues deles. Nada disto é bom augúrio.
Se a ideia é desmoralizarem-me, alegrem-se: estão a consegui-lo.
Apesar de tudo, como manda mais a cortesia que o desalento, aqui deixo a resposta, que torno pública na esperança de desencorajar futuras reincidências.
Meu caro "é claro que posso estar enganado" (esperemos que não),
Dou de barato os lisonjeiros e certamente imerecidos louvores -aliás, depois que a Zazie, apesar do imenso buço, me chamou "filósofo" fiquei para todo o sempre deslumbrado e insensível a quaisquer outros encómios.
O que importa é o seguinte: ainda não esqueci aquele termo que você deixou aí, num comentário anterior, ou seja: "lemmings". Qualquer pessoa que use esse termo naquele contexto desperta de pronto a minha curiosidade e interesse. Trago-o, por conseguinte, debaixo de olho.
Quanto ao que escrevo, como já deve ter reparado, não tem por alvo a multidão, muito menos a matilha, mas o indivíduo. Congratulo-me de ter encontrado mais um. Não é importante que concorde comigo. É importante que pense. Se tira algum prazer do que eu escrevo então quer dizer que o prazer que tive em escrever -e razão essencial do que escrevo-, encontrou eco algures, no imenso vazio blogosideral. Afinal, há por aí mais planetas habitados. A minha tese confirma-se.
Vem até a propósito aquela questão que um certo amigo meu me colocou há tempos –“Ó Dragão, achas que há vida inteligente noutros planetas?”
Ao que respondi “Espero bem que sim, ó Caguinchas. Porque neste já não há quase nenhuma!...”
Permita-me que termine com um aviso: atenção aos “lemmings”. Dois cuidados se impõem, ouso prescrever: Não ir atrás, nem, tão pouco, ficar à frente. Pior que ir a reboque só mesmo ser levado pela enxurrada.
Considere-se bafejado pela minha elevada estima e consideração (mas não repita a gracinha, senão vou ter que lhe rogar um monte de pragas, e olhe que pragas minhas são verdadeiros apocalipses!...)
Dragão
Se a ideia é desmoralizarem-me, alegrem-se: estão a consegui-lo.
Apesar de tudo, como manda mais a cortesia que o desalento, aqui deixo a resposta, que torno pública na esperança de desencorajar futuras reincidências.
Meu caro "é claro que posso estar enganado" (esperemos que não),
Dou de barato os lisonjeiros e certamente imerecidos louvores -aliás, depois que a Zazie, apesar do imenso buço, me chamou "filósofo" fiquei para todo o sempre deslumbrado e insensível a quaisquer outros encómios.
O que importa é o seguinte: ainda não esqueci aquele termo que você deixou aí, num comentário anterior, ou seja: "lemmings". Qualquer pessoa que use esse termo naquele contexto desperta de pronto a minha curiosidade e interesse. Trago-o, por conseguinte, debaixo de olho.
Quanto ao que escrevo, como já deve ter reparado, não tem por alvo a multidão, muito menos a matilha, mas o indivíduo. Congratulo-me de ter encontrado mais um. Não é importante que concorde comigo. É importante que pense. Se tira algum prazer do que eu escrevo então quer dizer que o prazer que tive em escrever -e razão essencial do que escrevo-, encontrou eco algures, no imenso vazio blogosideral. Afinal, há por aí mais planetas habitados. A minha tese confirma-se.
Vem até a propósito aquela questão que um certo amigo meu me colocou há tempos –“Ó Dragão, achas que há vida inteligente noutros planetas?”
Ao que respondi “Espero bem que sim, ó Caguinchas. Porque neste já não há quase nenhuma!...”
Permita-me que termine com um aviso: atenção aos “lemmings”. Dois cuidados se impõem, ouso prescrever: Não ir atrás, nem, tão pouco, ficar à frente. Pior que ir a reboque só mesmo ser levado pela enxurrada.
Considere-se bafejado pela minha elevada estima e consideração (mas não repita a gracinha, senão vou ter que lhe rogar um monte de pragas, e olhe que pragas minhas são verdadeiros apocalipses!...)
Dragão
quarta-feira, setembro 15, 2004
Taxidermia
Fruto de um interesse taxiológico e, porque não dizê-lo, também taxidérmico, constato o seguinte: blogues de esquerda reclamam para si o estatuto de combate ao domínio da direita na blogosfera. Esta, em contrapartida, pela voz soluçante dos seus, queixa-se amargamente do império da esquerda na mesma região, donde a urgência de uma cruzada, ou pelo menos de um levantamento. Pelo que tenho visto, francamente, não sei se é a tal esquerda ou a tal direita quem predomina nestes subúrbios. Uma coisa é certa: Não é a inteligência.
terça-feira, setembro 14, 2004
Os Utopistas do Mercado
«O mais importante efeito indirecto da presidência de Reagan foi a absolvição das desigualdades económicas nos Estados Unidos e o surgimento de uma cultura empresarial capaz de ignorar os custos sociais da sua actividade com a consciência tranquila. Como escreveu Godfrey Hodgson, “A estaganação dos rendimentos americanos e o crescimento das desigualdades foram essencialmente consequência das acções dos gestores das grandes empresas, tanto directamente nas empresas industriais, como indirectamente no sector financeiro, devido a modas intelectuais por este adoptadas. A desregulamentação política libertou os braços dos gestores. O clima político encorajou-os a prestar menos atenção às considerações não económicas. Os negócios impuseram maior desigualdade. A doutrina conservadora racionalizou tudo isto.”
As liberdades dos executivos numa economia desregulamentada –para contratar e despedir, para contrair e adiar, para se auto-atribuírem opções de acções e bónus magnânimas – não eram encaradas como privilégios numa variante peculiar de capitalismo. Eram o exercício de direitos humanos inalienáveis. O capitalismo americano era a liberdade em acção. A estrutura do mercado livre americano coincidia com os imperativos dos direitos humanos. Quem ousa condenar as crescentes desigualdades e o colapso social que os mercados livres provocam, quando os mercados livres não são senão a expressão económica do direito à liberdade individual? (...)
Nos Estados Unidos, após o aumento da influência do poder neoconservador, a autoridade dos direitos tem sido usada para proteger o funcionamento do mercado livre do escrutínio público e do desafio político. A ideologia dos direitos tem sido usada para legitimar este recente sucessor do capitalismo liberal americano.
Ao moldar uma cultura política na qual os imperativos do mercado livre, os interesses dos negócios e as exigências da liberdade humana deixaram de se distinguir, a presidência americana traçou o quadro não apenas para George Bush, mas também para Bill Clinton.(...)
Como outras ideologias do iluminismo, a utopia do mercado inspira nos seus seguidores um menosprezo sobranceiro pela história. Nunca se cansam de nos dizer que as ideias têm consequências. Não repararam que essas consequências raramente são as esperadas; e nunca são só essas.»
- John Gray, “False dawn”
Os utopistas do Mercado são a espécie mais serôdia, rasteira e frustre de utopistas. O seu é um mundo afunilado, liliputizado à balbúrdia duma feira de nabos e chicharros. Até a sua argumentação lembra o grazinar de peixeiras, tentando camuflar o fedor do peixe estragado sob o vau da algazarra. Para estratégia, convenhamos, tem as suas vulnerabilidades: nada garante que a dor e a inflamação dos ouvidos inibam ou distraiam fatalmente o olfacto do passante.
Resta-lhes, para desfastio, o reconforto da velha receita stalinista: repetir uma mentira muitas vezes até que pareça verdade.
A oeste, por conseguinte, nada de novo: é só mais um grupo excursionista ao caos.
As liberdades dos executivos numa economia desregulamentada –para contratar e despedir, para contrair e adiar, para se auto-atribuírem opções de acções e bónus magnânimas – não eram encaradas como privilégios numa variante peculiar de capitalismo. Eram o exercício de direitos humanos inalienáveis. O capitalismo americano era a liberdade em acção. A estrutura do mercado livre americano coincidia com os imperativos dos direitos humanos. Quem ousa condenar as crescentes desigualdades e o colapso social que os mercados livres provocam, quando os mercados livres não são senão a expressão económica do direito à liberdade individual? (...)
Nos Estados Unidos, após o aumento da influência do poder neoconservador, a autoridade dos direitos tem sido usada para proteger o funcionamento do mercado livre do escrutínio público e do desafio político. A ideologia dos direitos tem sido usada para legitimar este recente sucessor do capitalismo liberal americano.
Ao moldar uma cultura política na qual os imperativos do mercado livre, os interesses dos negócios e as exigências da liberdade humana deixaram de se distinguir, a presidência americana traçou o quadro não apenas para George Bush, mas também para Bill Clinton.(...)
Como outras ideologias do iluminismo, a utopia do mercado inspira nos seus seguidores um menosprezo sobranceiro pela história. Nunca se cansam de nos dizer que as ideias têm consequências. Não repararam que essas consequências raramente são as esperadas; e nunca são só essas.»
- John Gray, “False dawn”
Os utopistas do Mercado são a espécie mais serôdia, rasteira e frustre de utopistas. O seu é um mundo afunilado, liliputizado à balbúrdia duma feira de nabos e chicharros. Até a sua argumentação lembra o grazinar de peixeiras, tentando camuflar o fedor do peixe estragado sob o vau da algazarra. Para estratégia, convenhamos, tem as suas vulnerabilidades: nada garante que a dor e a inflamação dos ouvidos inibam ou distraiam fatalmente o olfacto do passante.
Resta-lhes, para desfastio, o reconforto da velha receita stalinista: repetir uma mentira muitas vezes até que pareça verdade.
A oeste, por conseguinte, nada de novo: é só mais um grupo excursionista ao caos.
segunda-feira, setembro 13, 2004
Teorias da Conspiração
Não faz muito tempo que um amigo meu me perguntava: “Ouve lá, ó Dragão, que me dizes tu da “teoria da conspiração tal”. Referia-se, claro está, a uma bela teoria, um daqueles planos maquiavélicos para instalar uma tirania subliminar e manipular o pagode desavergonhadamente. Enfim, o costume das teorias da conspiração. Há para todos os gostos e feitios.
Os meus amigos, criaturas raras, são pessoas inteligentes. Mas, pior ainda que isso, são almas benévolas, que medem os outros por si. É natural, pois, que acabem induzidos em erro. Como acontece nisto das teorias da conspiração.
Foi o que tentei explicar a esse meu amigo. E que aproveito para repetir aqui a quaisquer outros (e certamente raros) interessados.
É como vos digo: Se a generalidade das pessoas e das sociedades primasse pela inteligência, pela atenção, pela sensibilidade às questões fundamentais do que quer que fosse, faria todo o sentido que existissem, a cada esquina, em catacumbas e subterrâneos, grémios de facínoras conluiados, urdindo complexos planos maquievélicos para se apoderarem das mentes e vontades do zé povinho, para subornarem a consciência das elites culturais e para silenciarem todo e qualquer esboço antagónico. Seria garantido. Só que a generalidade das pessoas é estúpida que nem um porta e tão perspicaz quanto um autocarro; as sociedades são ainda piores que as pessoas e só fazem é piorá-las; as elites culturais ou quaisquer outras andam geralmente em saldo e a oferecer-se na beira da estrada a preços de promoção; e os esboços de antagonismo são de um tipo mediamente lobotomizado se mijar a rir. Pelo que, lógica e concretamente, não é preciso plano maquiavélico nenhum, nem complexa e sinistra conspiração alguma: qualquer labrego básico de meia tigela, com meia dúzia de neurónios mal aparafusados, chega ao poder e atropela o que muito bem lhe dá na real gana! De caminho, instaura uma saloiada infame, vende as piores banhas da cobra de que há memória, a última sempre pior que a anterior, e faz as reais necessidades, sólidas e líquidas, sobre todos e quaisquer pruridos racionais (ou quaisquer outros) que lhe contendam com a veneta. Promontório ilustre da perpétua brutidão, emanação caótica e justíssima do povoléu que galopa, conhece – por isso mesmo e de ginjeira –, um pormenor singelo mas crucial: Não é preciso conspiração nenhuma para controlar algo que não existe – o pensamento livre das pessoas.
Os meus amigos, criaturas raras, são pessoas inteligentes. Mas, pior ainda que isso, são almas benévolas, que medem os outros por si. É natural, pois, que acabem induzidos em erro. Como acontece nisto das teorias da conspiração.
Foi o que tentei explicar a esse meu amigo. E que aproveito para repetir aqui a quaisquer outros (e certamente raros) interessados.
É como vos digo: Se a generalidade das pessoas e das sociedades primasse pela inteligência, pela atenção, pela sensibilidade às questões fundamentais do que quer que fosse, faria todo o sentido que existissem, a cada esquina, em catacumbas e subterrâneos, grémios de facínoras conluiados, urdindo complexos planos maquievélicos para se apoderarem das mentes e vontades do zé povinho, para subornarem a consciência das elites culturais e para silenciarem todo e qualquer esboço antagónico. Seria garantido. Só que a generalidade das pessoas é estúpida que nem um porta e tão perspicaz quanto um autocarro; as sociedades são ainda piores que as pessoas e só fazem é piorá-las; as elites culturais ou quaisquer outras andam geralmente em saldo e a oferecer-se na beira da estrada a preços de promoção; e os esboços de antagonismo são de um tipo mediamente lobotomizado se mijar a rir. Pelo que, lógica e concretamente, não é preciso plano maquiavélico nenhum, nem complexa e sinistra conspiração alguma: qualquer labrego básico de meia tigela, com meia dúzia de neurónios mal aparafusados, chega ao poder e atropela o que muito bem lhe dá na real gana! De caminho, instaura uma saloiada infame, vende as piores banhas da cobra de que há memória, a última sempre pior que a anterior, e faz as reais necessidades, sólidas e líquidas, sobre todos e quaisquer pruridos racionais (ou quaisquer outros) que lhe contendam com a veneta. Promontório ilustre da perpétua brutidão, emanação caótica e justíssima do povoléu que galopa, conhece – por isso mesmo e de ginjeira –, um pormenor singelo mas crucial: Não é preciso conspiração nenhuma para controlar algo que não existe – o pensamento livre das pessoas.
sábado, setembro 11, 2004
Do país esotérico
Meu caro José,
Li, com particular gozo, o texto apetitoso que lavraste na Grande Loja do Queijo. Muito te poderia dizer sobre tão tortuoso assunto. Um dia destes, aproveitando o teu providencial exemplo , talvez o faça. Mas, Por agora não; por agora, deixo-te apenas alguns comentários sibilinos e outras tantas perguntas interessantes.
1. Como já Platão explicou, existe o mundo das aparências e o mundo das essências. Na verdade, o das aparências não existe, parece que existe. Hoje em dia, parece também que existe o mundo das eficácias e das conveniências, ali, bem por detrás da Travessa do Faz-de-Conta. Em suma: O que parece que é, regra geral, não é.
2. O regime que foi instituído em 25 de Abril de 1974 parece que é democrático. O que escapa ao vulgo é que esse regime tem uma face exotérica e uma face esotérica. Qual delas a preponderante, falaremos um dia destes.
3. Tenta o seguinte exercício mental: Que misteriosas cumplicidades existirão entre estas duas palavras: “Maçonaria” e “Bloco central”? E, já agora, qual será o par correspondente para a Opus Dei?
4. Sabes qual é a “sorte” ideal para um político português? É ser Opus Dei por parte da mãe e Maçon por parte do pai.
E mais não digo.
Li, com particular gozo, o texto apetitoso que lavraste na Grande Loja do Queijo. Muito te poderia dizer sobre tão tortuoso assunto. Um dia destes, aproveitando o teu providencial exemplo , talvez o faça. Mas, Por agora não; por agora, deixo-te apenas alguns comentários sibilinos e outras tantas perguntas interessantes.
1. Como já Platão explicou, existe o mundo das aparências e o mundo das essências. Na verdade, o das aparências não existe, parece que existe. Hoje em dia, parece também que existe o mundo das eficácias e das conveniências, ali, bem por detrás da Travessa do Faz-de-Conta. Em suma: O que parece que é, regra geral, não é.
2. O regime que foi instituído em 25 de Abril de 1974 parece que é democrático. O que escapa ao vulgo é que esse regime tem uma face exotérica e uma face esotérica. Qual delas a preponderante, falaremos um dia destes.
3. Tenta o seguinte exercício mental: Que misteriosas cumplicidades existirão entre estas duas palavras: “Maçonaria” e “Bloco central”? E, já agora, qual será o par correspondente para a Opus Dei?
4. Sabes qual é a “sorte” ideal para um político português? É ser Opus Dei por parte da mãe e Maçon por parte do pai.
E mais não digo.
quinta-feira, setembro 09, 2004
Uma Tirania Excepcional
Considero execrável qualquer tipo de tirania. Exceptuando talvez uma monarquia, tão absoluta quão esclarecida, onde eu próprio desempenhasse o papel de soberano. Não tenho qualquer dúvida que o país –este coio de invertebrados e imbecis que, por artes de licenciatura, se julgam automáticamente metamorfoseados em semi-deuses –, lucraria imenso com isso. O Marquês de Pombal, estou certo, roer-se-ia de inveja lá no Além. Mas, horror incontornável, não me sobraria tempo para escrever este mirabolante blogue. Por isso, tirem o cavalinho da chuva, escusam de vir com falinhas mansas, que eu não aceito o frete. Oprimir-vos como vocês merecem seria fraca consolação para eu renunciar à minha tranquilidade, ao meu dourado eremitério. A abdicar do meu alegre anonimato, antes prefiro abdicar do trono, antes mesmo de me refastelar nele. A não ser que me deixassem governar e tiranizar anonimamente. Bem, aí talvez reconsiderasse. Já me estou até a ver, registado para a História – laureado de tenebrosas iluminuras, pai de vários impérios – como Dragão, o Anónimo. Não vejo onde é que está o espanto ou a bizarria. Se as empresas podem ser Anónimas, e toda a gente aplaude e se ri muito, porque é que os tiranos, ainda para mais esclarecidos, não podem? Deus seria o vosso Pai no Céu e eu seria o vosso rei algures. Um Mundo quase perfeito.
Senão, vejamos: Que importa o talhe das minhas fuças para o bom ou mau governo da nação?Que tendes vós, meus súbditos irrelevantes, a ver com a maneira como eu me visto, com os filhos que faço, as donzelas que frequente ou as praias donde emito as minhas sábias directivas? Porque hei-de servir eu de objecto desgraçado à vossa sórdida e atávica coscuvilhice, ou motivo predilecto da mais nojenta bufaria? E se eu quiser ir às putas? E se me apetecer embebedar-me, andar à porrada, ou armar sarrafuscas? E porque não hei-de eu partir a tromba aos ministros incompetentes ou aos directores corruptos, em paz e sossego, sem jornalistas a azucrinar-me a paciência e a puta da opinião pública armada em sonsa?! Que tendes vós a ver com isso e com tudo? Porque carga de água me competiria aturar o vosso voyeurismo ranhoso? Para que me interessam as vossas opiniõezinhas, essas excrescências babosas do vosso ego, e as projecções que dele fazeis na pessoa dos outros? Quanto aos palácios, limusines e protocolos, mais os salamaleques e mesuras, a mim e a toda a minha família, passamos bem sem eles. Muito bem mesmo. Quando quisermos ver hienas e chacais vamos ao Jardim Zoológico. De resto, a última coisa que me ocorreria era ir capitanear o vosso Jet-Set, essa quintessência da vossa velhacaria e coirice impenitente. Só de me lembrar dessa corja de larvas sociais até consigo pensar no Pol Phot com alguma ternura.
Senão, vejamos: Que importa o talhe das minhas fuças para o bom ou mau governo da nação?Que tendes vós, meus súbditos irrelevantes, a ver com a maneira como eu me visto, com os filhos que faço, as donzelas que frequente ou as praias donde emito as minhas sábias directivas? Porque hei-de servir eu de objecto desgraçado à vossa sórdida e atávica coscuvilhice, ou motivo predilecto da mais nojenta bufaria? E se eu quiser ir às putas? E se me apetecer embebedar-me, andar à porrada, ou armar sarrafuscas? E porque não hei-de eu partir a tromba aos ministros incompetentes ou aos directores corruptos, em paz e sossego, sem jornalistas a azucrinar-me a paciência e a puta da opinião pública armada em sonsa?! Que tendes vós a ver com isso e com tudo? Porque carga de água me competiria aturar o vosso voyeurismo ranhoso? Para que me interessam as vossas opiniõezinhas, essas excrescências babosas do vosso ego, e as projecções que dele fazeis na pessoa dos outros? Quanto aos palácios, limusines e protocolos, mais os salamaleques e mesuras, a mim e a toda a minha família, passamos bem sem eles. Muito bem mesmo. Quando quisermos ver hienas e chacais vamos ao Jardim Zoológico. De resto, a última coisa que me ocorreria era ir capitanear o vosso Jet-Set, essa quintessência da vossa velhacaria e coirice impenitente. Só de me lembrar dessa corja de larvas sociais até consigo pensar no Pol Phot com alguma ternura.
terça-feira, setembro 07, 2004
Um pasquim supimpa
Hoje, para variar, venho aqui tecer encómios. Desembasbacai e tomai atenção: trata-se duma publicação semanal digna de registo. Acaba de me cair um exemplar nas garras, acompanhado dum remoque depreciativo da senhora Dragão, e eu, como é costume, deleito-me...
Este nobre pasquim diz-me tudo o que preciso saber – que um terço das crianças do mundo são obesas; que a Sonda Cassini-Huygens (puta que a pariu) descobriu duas novas luas de Saturno; que uma nova molécula poderá ser uma arma mais barata contra o paludismo; que a Joana Lemos (quem é esta gaja?...) faz revelações marcantes da sua vida; que Paulo Coelho (suponho que é um emérito Chef de cuisine) está de volta com três novos títulos (novas receitas, certamente); que há ténis robustos a €19.99, Cueca/String “Barriga lisa” a €4.99, Brioche fatiado com pepitas de chocolate a €2.99, Conjunto de iscas e anzóis a €9.99, trolley a €11.99, etc, etc, um mundo de utilidades que nunca mais acaba –, e ainda uma série de dicas e conselhos afáveis sobre dismenorreia (fui a correr mostrar à senhora Dragão), segurança rodoviária e cruzeiros no rio Douro. Fico também a saber, com desgosto, que a Björk não só não foi atropelada por um camião Tir desembestado, como continua a produzir melopeias de gosto mais que duvidoso que terei o maior cuidado em não escutar, nem nesta, nem nas próximas vinte reencarnações. Djavan é outro que tal; da “dance Floor Vol.2”, uma colectánea de “house” comercial (como se houvesse outro tipo senão esse), então, nem vos falo; mas já dá perfeitamente para todos percebermos como esta publicação também suculeja de belas merdas que muito devem interessar aos incontáveis anormais que – para grande azar deste provecto e venerável rincão – cismam, todos os anos, de cá vir nascer. Em resumo: um verdadeiro “Expresso” em versão “compact-paper”, se assim podemos dizer. Mas um “Expresso” digno, que toma banho pelo menos uma vez por semana e não transmite doenças venéreas nem herpes labial. Que não é tóxico nem provoca alergias, pelo menos graves ou incuráveis, e que, acima de tudo, é honesto: não nos pretende impingir nem vender porcarias encapotadas, disfarçadas sob o ouropel de artigo, reportagem ou entrevista. Os produtos à venda estão ali, bem descritos e catalogados, sem subterfúgios, com preços apelativos, já com Iva e tudo. Coisas, algumas delas, até utéis, que dão um jeitaço quando nos acometem ganas de bricolages. Nada de insinuações sonsas nem louvaminhas por encomenda; nada de promoções aberrantes e subreptícias de tipos e produtos completamente imprestáveis, insalubres, de qualidade mais que duvidosa, com a mioleira em adiantado estado de putrefacção e a moral com o prazo expirado há décadas. E como se todas estas vantagens não bastassem, este prodigioso pasquim minimalista ainda culmina com o facto de ser distribuído gratuitamente, ao domicílio, com uma pontualidade religiosa. Um fenómeno, é o que vos digo. Ao contrário do tal “Expresso”, refira-se, que além de nos vender abomináveis merdas, ainda se faz cobrar regiamente por isso. Quando o que devia era indemnizar-nos, por efeitos colaterais e publicidade enganosa. Quem diz o “Expresso”, diz o “Público”, o “DN”, o “24 Horas”, a “Bola”, a "Maria" ou o que quer que seja.
Acresce a tudo isto, que já não é pouco, que folheia-se num minuto, o digno pasquim, deita-se pró lixo em dois e é magnífico para cobrir o chão em dia de pinturas ou embrulhar copos e pratos por alturas de mudanças. Eu não quero outra coisa. Recomendo-o vivamente. É quase terapêutico. Chama-se, como já devem ter adivinhado, “Dica da Semana”, e é um must. Além disso, é o único jornal que deixo entrar cá em casa. Isto, apesar dos protestos da Senhora Dragão que, por ela, não deixava entrar nenhum.
E tem mais um detalhe sensacional: a directora –do formidável pasquim – chama-se Madalena Bettencourt e Silveira. Já viram? Não é uma foleirada qualquer, nada de pinderiquices...É uma Bettencourt e Silveira, que diabo! Coisa fina!... Já havia para aí malta na galhofa, mas agora calaram-se. É bem feito! Quanto a redactores (jornalistas, enfim), nem sinal deles. O que é óptimo. Deve ser escrita automática, como já aconselhavam os surrealistas, esses pândegos. Apenas detectei, de raspão, um mamífero que terminava uma longa apologia dum qualquer criador de cães, amigo ou padrinho dele, com a chancela “M.J.F”.
Aposto que tem um blogue.
Eu também não disse que o pasquim era perfeito.
Este nobre pasquim diz-me tudo o que preciso saber – que um terço das crianças do mundo são obesas; que a Sonda Cassini-Huygens (puta que a pariu) descobriu duas novas luas de Saturno; que uma nova molécula poderá ser uma arma mais barata contra o paludismo; que a Joana Lemos (quem é esta gaja?...) faz revelações marcantes da sua vida; que Paulo Coelho (suponho que é um emérito Chef de cuisine) está de volta com três novos títulos (novas receitas, certamente); que há ténis robustos a €19.99, Cueca/String “Barriga lisa” a €4.99, Brioche fatiado com pepitas de chocolate a €2.99, Conjunto de iscas e anzóis a €9.99, trolley a €11.99, etc, etc, um mundo de utilidades que nunca mais acaba –, e ainda uma série de dicas e conselhos afáveis sobre dismenorreia (fui a correr mostrar à senhora Dragão), segurança rodoviária e cruzeiros no rio Douro. Fico também a saber, com desgosto, que a Björk não só não foi atropelada por um camião Tir desembestado, como continua a produzir melopeias de gosto mais que duvidoso que terei o maior cuidado em não escutar, nem nesta, nem nas próximas vinte reencarnações. Djavan é outro que tal; da “dance Floor Vol.2”, uma colectánea de “house” comercial (como se houvesse outro tipo senão esse), então, nem vos falo; mas já dá perfeitamente para todos percebermos como esta publicação também suculeja de belas merdas que muito devem interessar aos incontáveis anormais que – para grande azar deste provecto e venerável rincão – cismam, todos os anos, de cá vir nascer. Em resumo: um verdadeiro “Expresso” em versão “compact-paper”, se assim podemos dizer. Mas um “Expresso” digno, que toma banho pelo menos uma vez por semana e não transmite doenças venéreas nem herpes labial. Que não é tóxico nem provoca alergias, pelo menos graves ou incuráveis, e que, acima de tudo, é honesto: não nos pretende impingir nem vender porcarias encapotadas, disfarçadas sob o ouropel de artigo, reportagem ou entrevista. Os produtos à venda estão ali, bem descritos e catalogados, sem subterfúgios, com preços apelativos, já com Iva e tudo. Coisas, algumas delas, até utéis, que dão um jeitaço quando nos acometem ganas de bricolages. Nada de insinuações sonsas nem louvaminhas por encomenda; nada de promoções aberrantes e subreptícias de tipos e produtos completamente imprestáveis, insalubres, de qualidade mais que duvidosa, com a mioleira em adiantado estado de putrefacção e a moral com o prazo expirado há décadas. E como se todas estas vantagens não bastassem, este prodigioso pasquim minimalista ainda culmina com o facto de ser distribuído gratuitamente, ao domicílio, com uma pontualidade religiosa. Um fenómeno, é o que vos digo. Ao contrário do tal “Expresso”, refira-se, que além de nos vender abomináveis merdas, ainda se faz cobrar regiamente por isso. Quando o que devia era indemnizar-nos, por efeitos colaterais e publicidade enganosa. Quem diz o “Expresso”, diz o “Público”, o “DN”, o “24 Horas”, a “Bola”, a "Maria" ou o que quer que seja.
Acresce a tudo isto, que já não é pouco, que folheia-se num minuto, o digno pasquim, deita-se pró lixo em dois e é magnífico para cobrir o chão em dia de pinturas ou embrulhar copos e pratos por alturas de mudanças. Eu não quero outra coisa. Recomendo-o vivamente. É quase terapêutico. Chama-se, como já devem ter adivinhado, “Dica da Semana”, e é um must. Além disso, é o único jornal que deixo entrar cá em casa. Isto, apesar dos protestos da Senhora Dragão que, por ela, não deixava entrar nenhum.
E tem mais um detalhe sensacional: a directora –do formidável pasquim – chama-se Madalena Bettencourt e Silveira. Já viram? Não é uma foleirada qualquer, nada de pinderiquices...É uma Bettencourt e Silveira, que diabo! Coisa fina!... Já havia para aí malta na galhofa, mas agora calaram-se. É bem feito! Quanto a redactores (jornalistas, enfim), nem sinal deles. O que é óptimo. Deve ser escrita automática, como já aconselhavam os surrealistas, esses pândegos. Apenas detectei, de raspão, um mamífero que terminava uma longa apologia dum qualquer criador de cães, amigo ou padrinho dele, com a chancela “M.J.F”.
Aposto que tem um blogue.
Eu também não disse que o pasquim era perfeito.
domingo, setembro 05, 2004
A Brava questão entre os abortos que abortam e os "Tios" com dores de feto
Tenho que confessá-lo: Também não acho justo que as meninas esperançosas, fiéis depositárias do másculo sémen, vão despejar os projectos embrionários na retrete. Ainda para mais quando o país, em regressão demográfica, anda deficitário de novas gentes. Compreendo, pois, a indignação de muito boa gente. Gente de coração filantrópico que se condói facilmente com a desdita dos fracos e indefesos. Madres Teresas e Frei Teresos, sempre prontos a acudir aos coitadinhos, Deus Grandessíssimo os proteja. Não senhor, não é forma nem jeito de tratar os espermatozóides de cada um. É mesmo caso para tribunal. Eu, por mim, nem hesitaria: “meritíssimo juíz, protesto! O útero é dessa senhora, mas os espermatozóides eram meus!” Não julguem que brinco. O assunto é sério.
É a caça em regime livre ao embrião, é a foda inconsequente ao desbarato. Espermatozóides das melhores qualidades e proveniências vêem-se assim em risco de acabar triste e miseravelmente os seus dias. Quando ainda mal germinam, e mal se entregam ao milagre da multiplicação celular, eis que já os enviam em viagens peregrinas, sem garrafa nem oxigénio (nem um mero tubito para mergulho em apneia sequer) pelo esgoto imundo abaixo. Uma espermatodisseia execrável, garanto-vos! Infame, do piorio.
Se hão-de lançá-los no mundo, neste vale de portentos e prodígios, neste paraíso à beira céu plantado, neste mar de rosas (e laranjas) – como, aliás, lhes competia e a Natureza, desde os primórdios, lhes destinou –, as megeras, messalinas, ogras malvadas vão lançá-los -aos futuros licenciados, coitaditos-, na retrete. Na latrina, senhores! Quantos génios não nos arriscamos a perder assim? Quantos iluminados, prémios nobel e economistas liberais? Um ror deles certamente. É um luxo e um desperdício a que este país não se pode dar. Lá fora sim, é justo, há uma superlotação que urge combater, uma proliferação alarmante a que urge pôr cobro. Por mim, as holandesas, as inglesas, as americanas - e já agora também as espanholas - podiam abortar todas que não se perdia nada. Direi mais: Era um passo de gigante para a humanidade, uma grande ajuda para todos nós. Mas cá, chiça!...Haja tino.
Por conseguinte, valentes filantropos, almas cristãs de piquete por toda a paróquia, porfiai, fortificai muros e barricadas! Velai, meus amigos, paladinos, baluartes dessa nobre e justa causa! Obstai com todas as forças ao desmancho ignóbil, desnaturado, ao despejo abominável!
Mas, de caminho, aproveitando a embalagem, a campanha entusiasta, não esgoteis toda a vossa energia benfazeja nessa nobre missão. Dedicai também um pouco, uma migalha que seja, do vosso generoso ardor, uma parcela ainda que minúscula das vossas prebendas e mordomias, a fazer com que o mundo se distinga, um pouco que seja, duma retrete. Era de todo conveniente.
Porque se o mundo e a retrete cada vez menos se distinguem, como não hão-de andar confusas as mães já de fraca vocação, percebendo cada vez menos a diferença entre lançar nela os fetos de três ou de nove meses? Até vos dirão, manhosas e sibilantes: “lançá-los na retrete ou no mundo, que diferença faz?”
E deixem que vos pergunte, eu que vos conheço bem, que vos tenho observado na intimidade, aqui entre nós, agora a sério, realmente, à parte esse folclore para entreter o papalvo, que diferença vos faz que elas despejem ali ou acoli?
Vós, que, vaidosamente, vos estais marimbando para os velhos e crianças todos deste mundo (excepto as devidamente apelidadas), para o passado e futuro do país (excepto o que se prende com o vosso umbigo), vós, imagine-se, preocupais-vos, todavia, com os fetos. Os comunas são maus, mas os fetos dos comunas são óptimos; os comunas são bichos sórdidos e anormais que deviam ser esterilizados mas os fetos dos comunas são pessoas com todos os direitos. Quem não é “bem” não presta; mas os fetos, coitadinhos, são excelentes. Vós que vos cagais, de bem alto, nos outros e nos filhos dos outros, abris, no entanto, uma sagrada excepção em se tratando dos fetos dos outros. Que beneméritos! Matar pessoas, deixá-las morrer como calha, onde calha, a tiro, à bomba, a veneno, a eito, em nome do mercado, da prebenda, da mordomia, da seita, é justo, inspiração divina, está perfeito. Agora os fetos é que não, é um massacre, chacina dos inocentes, genocídio!...Em suma, a retrete é prorrogativa vossa, privilégio inalienável? Só vós é que podeis mandar os filhos dos outros lá para dentro? Os respectivos pais e mães não podem?... Soa a putas de estrada a quererem lapidar Madalenas!...
Eu acho que uma cabra que já nem instinto maternal tem é um aborto da Natureza (não me espanta, pois, que aborte). E que vocês, regra geral, sob esse manto santarrão, sois umas boas hienas.
Quanto à pragmática utilitarista de uns e à moralzinha rançosa dos outros, pois podem muito bem todos enfiá-las, em sincronia, no cu. É o local apropriado e, ao menos, é garantido que não engravidarão. Poupar-se-ão assim, seguramente, a riscos, trabalhos e polémicas.
É a caça em regime livre ao embrião, é a foda inconsequente ao desbarato. Espermatozóides das melhores qualidades e proveniências vêem-se assim em risco de acabar triste e miseravelmente os seus dias. Quando ainda mal germinam, e mal se entregam ao milagre da multiplicação celular, eis que já os enviam em viagens peregrinas, sem garrafa nem oxigénio (nem um mero tubito para mergulho em apneia sequer) pelo esgoto imundo abaixo. Uma espermatodisseia execrável, garanto-vos! Infame, do piorio.
Se hão-de lançá-los no mundo, neste vale de portentos e prodígios, neste paraíso à beira céu plantado, neste mar de rosas (e laranjas) – como, aliás, lhes competia e a Natureza, desde os primórdios, lhes destinou –, as megeras, messalinas, ogras malvadas vão lançá-los -aos futuros licenciados, coitaditos-, na retrete. Na latrina, senhores! Quantos génios não nos arriscamos a perder assim? Quantos iluminados, prémios nobel e economistas liberais? Um ror deles certamente. É um luxo e um desperdício a que este país não se pode dar. Lá fora sim, é justo, há uma superlotação que urge combater, uma proliferação alarmante a que urge pôr cobro. Por mim, as holandesas, as inglesas, as americanas - e já agora também as espanholas - podiam abortar todas que não se perdia nada. Direi mais: Era um passo de gigante para a humanidade, uma grande ajuda para todos nós. Mas cá, chiça!...Haja tino.
Por conseguinte, valentes filantropos, almas cristãs de piquete por toda a paróquia, porfiai, fortificai muros e barricadas! Velai, meus amigos, paladinos, baluartes dessa nobre e justa causa! Obstai com todas as forças ao desmancho ignóbil, desnaturado, ao despejo abominável!
Mas, de caminho, aproveitando a embalagem, a campanha entusiasta, não esgoteis toda a vossa energia benfazeja nessa nobre missão. Dedicai também um pouco, uma migalha que seja, do vosso generoso ardor, uma parcela ainda que minúscula das vossas prebendas e mordomias, a fazer com que o mundo se distinga, um pouco que seja, duma retrete. Era de todo conveniente.
Porque se o mundo e a retrete cada vez menos se distinguem, como não hão-de andar confusas as mães já de fraca vocação, percebendo cada vez menos a diferença entre lançar nela os fetos de três ou de nove meses? Até vos dirão, manhosas e sibilantes: “lançá-los na retrete ou no mundo, que diferença faz?”
E deixem que vos pergunte, eu que vos conheço bem, que vos tenho observado na intimidade, aqui entre nós, agora a sério, realmente, à parte esse folclore para entreter o papalvo, que diferença vos faz que elas despejem ali ou acoli?
Vós, que, vaidosamente, vos estais marimbando para os velhos e crianças todos deste mundo (excepto as devidamente apelidadas), para o passado e futuro do país (excepto o que se prende com o vosso umbigo), vós, imagine-se, preocupais-vos, todavia, com os fetos. Os comunas são maus, mas os fetos dos comunas são óptimos; os comunas são bichos sórdidos e anormais que deviam ser esterilizados mas os fetos dos comunas são pessoas com todos os direitos. Quem não é “bem” não presta; mas os fetos, coitadinhos, são excelentes. Vós que vos cagais, de bem alto, nos outros e nos filhos dos outros, abris, no entanto, uma sagrada excepção em se tratando dos fetos dos outros. Que beneméritos! Matar pessoas, deixá-las morrer como calha, onde calha, a tiro, à bomba, a veneno, a eito, em nome do mercado, da prebenda, da mordomia, da seita, é justo, inspiração divina, está perfeito. Agora os fetos é que não, é um massacre, chacina dos inocentes, genocídio!...Em suma, a retrete é prorrogativa vossa, privilégio inalienável? Só vós é que podeis mandar os filhos dos outros lá para dentro? Os respectivos pais e mães não podem?... Soa a putas de estrada a quererem lapidar Madalenas!...
Eu acho que uma cabra que já nem instinto maternal tem é um aborto da Natureza (não me espanta, pois, que aborte). E que vocês, regra geral, sob esse manto santarrão, sois umas boas hienas.
Quanto à pragmática utilitarista de uns e à moralzinha rançosa dos outros, pois podem muito bem todos enfiá-las, em sincronia, no cu. É o local apropriado e, ao menos, é garantido que não engravidarão. Poupar-se-ão assim, seguramente, a riscos, trabalhos e polémicas.
Afinidades electivas
Um dragão, por índole natural e costume empedernido, não está preparado para reagir a elogios, sequer a palavras simpáticas. Habituado ao choro das princesas prisioneiras e aos impropérios dos paladinos resgatadores, fica encavacado ao deparar-se com algo que exceda esse mundo tenebroso e belicista, tecido a lamúrias ou interpelações injuriosas. O Destino designou-lhe essas funções, e não se discute com o Destino. O Livre-Arbítrio, grande balela, é só um “Óleo de fígado de bacalhau” para a mente de costureirinhas, masculinas e femininas.
Por conseguinte, caro Dodo, com essa é que você me lixou. Se me mandasse à merda eu ainda saberia o que lhe responder. Se me dissesse “sua grandessíssima besta!”, era fácil, bastava accionar o atendedor automático. Assim, fico à rasca. De narinas fumegantes à banda. Que lhe hei-de eu responder? Olhe, igualmente. A sério.
Por conseguinte, caro Dodo, com essa é que você me lixou. Se me mandasse à merda eu ainda saberia o que lhe responder. Se me dissesse “sua grandessíssima besta!”, era fácil, bastava accionar o atendedor automático. Assim, fico à rasca. De narinas fumegantes à banda. Que lhe hei-de eu responder? Olhe, igualmente. A sério.
quinta-feira, setembro 02, 2004
A Voz-Off
Que todos temos opiniões e gostamos de cagar sentenças sobre tudo, já deu para perceber. Que em grande parte do tempo em que nos dão os fornicoques para desatar nesses (des)propósitos mais valia apanhar uma valente dor de dentes e enfiar a tromba numa almofada, também. Para grandes males, grandes remédios. O que eu ainda não percebi bem é donde vêm estas directivas opinadoras quotidianas que metodicamente se repetem; de que Agência Central de Opinião provêm estes Planos e Mapas de emissão, em suma, quem diabo lá atrás selecciona os discos rachados e cassetes com que se entretém o pagode, quem determina “agora palra-se disto, não se palra daquilo”, “doravante, o bacio para a doxorreia é este, não é aquele”.
Em boa verdade, não sei quem é, nem sei se existe. Mas desconfio. Desconfio cada vez mais. Até porque funciona. Com a pendularidade dum relógio suiço. A tal “voz-off” sugere: “Casa Pia, Casa Pia!” - e o pagode desata todo a mandar papos sobre o assunto, a arrancar cabelos e a cuspir gafanhotos em todas as direcções, a espumar de raiva ou a lançar mãos à cintura, em citações de longe. Ou então “Aborto, Aborto!”, e lá vai a chusma de escantilhão, trocando unhadas e pisadelas, atirando injúrias e impropérios, pior que grão-finos na hora do naufrágio. É um espectáculo deplorável. Pertencer a uma raça sempre tão disponível para galinhices e carneirices destas desmoraliza qualquer um. Se não são zombies telecomandados, parecem.
Em boa verdade, não sei quem é, nem sei se existe. Mas desconfio. Desconfio cada vez mais. Até porque funciona. Com a pendularidade dum relógio suiço. A tal “voz-off” sugere: “Casa Pia, Casa Pia!” - e o pagode desata todo a mandar papos sobre o assunto, a arrancar cabelos e a cuspir gafanhotos em todas as direcções, a espumar de raiva ou a lançar mãos à cintura, em citações de longe. Ou então “Aborto, Aborto!”, e lá vai a chusma de escantilhão, trocando unhadas e pisadelas, atirando injúrias e impropérios, pior que grão-finos na hora do naufrágio. É um espectáculo deplorável. Pertencer a uma raça sempre tão disponível para galinhices e carneirices destas desmoraliza qualquer um. Se não são zombies telecomandados, parecem.
quarta-feira, setembro 01, 2004
Palimpsestos
Neste nosso mundo admirável, o asseio corporal vai de vento em popa. Os cuidados do indígena com a sua pele, o cabelo, as unhas, os sovacos sobretudo, multiplicam-se. A indústria socorre-o, solícita, duma miríade de produtos e gadgets. Sabonetes, perfumes e desodorizantes, em catadupa, estão de piquete diário e prevenção. A publicidade, em débito evangelizador, lembra, a cada instante, da urgência da tarefa, promove-a a verdadeira compulsão benigna. O dia divide-se em várias corridas à lavagem. Como antigamente se corria à oração, hoje corre-se ao lavatório: Antes das refeições, depois das refeições; ao levantar, ao deitar; antes da queca, depois da queca; etc,etc. Os próprios legisladores não o esquecem: qualquer dia, por lei, as casas deverão possuir três WCs, com jacuzzi, sauna e banhos turcos à descrição. A gadeza, por directiva comunitária, quer-se limpa e escovada. A civilização é isto.
Só é pena que estes cuidados higiénicos com o corpo, de todo utéis em se tratando de suínos, cresçam na medida inversa aos cuidados higiénicos com o espírito. De facto, quanto mais passam o coiro pela água, mais banham o espírito na pocilga. Este aparente paradoxo, todavia, não deixa de ser justificado com toda a facilidade pelos grunhidores intérpretes : “o espírito está no cérebro e nós lavamos o cérebro todos os dias!”. (Não deixa de ser verdade –a segunda parte, seguramente). Outros, mais radicais, proclamam: “O espírito não existe, ou se existe, não se vê, portanto, não interessa, podemos ser badalhocos que ninguém nota!...”
É natural que o espírito não se veja. Que cada vez se veja menos. Jaz soterrado debaixo de várias camadas de surro, sebo luzidio e lixo. Na maior parte dos casos, um autêntico palimpsesto de merda.
Só é pena que estes cuidados higiénicos com o corpo, de todo utéis em se tratando de suínos, cresçam na medida inversa aos cuidados higiénicos com o espírito. De facto, quanto mais passam o coiro pela água, mais banham o espírito na pocilga. Este aparente paradoxo, todavia, não deixa de ser justificado com toda a facilidade pelos grunhidores intérpretes : “o espírito está no cérebro e nós lavamos o cérebro todos os dias!”. (Não deixa de ser verdade –a segunda parte, seguramente). Outros, mais radicais, proclamam: “O espírito não existe, ou se existe, não se vê, portanto, não interessa, podemos ser badalhocos que ninguém nota!...”
É natural que o espírito não se veja. Que cada vez se veja menos. Jaz soterrado debaixo de várias camadas de surro, sebo luzidio e lixo. Na maior parte dos casos, um autêntico palimpsesto de merda.
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