O termo essencial do postal anterior, no que concerne ao texto de Aristóteles, é reciprocidade. Sem reciprocidade não existe comunidade. O próprio termo em grego - anti-poiew- é revelador... E lá voltamos nós à polissemia das palavras gregas: anti - frequente e correctamente conotado com "em oposição", ou "contra" , também significa "em troca de", ou "comparado a". Sendo que "poiew" (donde a nossa "poesia", por. ex.), significa fazer, criar, inventar, fabricar, produzir, etc. teremos então que anti-poiew equivale a "fazer em troca", "fazer em comparacão". Donde a expressão: devemos responder com um bem ao bem que nos fazem. Ora, esta reciprocidade nas relações sociais deve ser transposta para as relações económicas, porque a economia, tanto no oikos (a casa) como na polis (a cidade) deve basear-se em idênticos princípios e almejando idênticos fins, ou seja, deve constituir-se um benefício prático tanto para os indivíduos quanto para a colectividade. A proporção é o garante do equilíbrio e a nómisma funciona como equalizador dos con-tratos. Todavia, se a relação política/social antecede e norteia a relação comercial (dito aqui no sentido benéfico do termo), há uma outra comunidade que antecede ambas: a comunidade com o divino - fundadora, garante e, de certa forma, paradigma para a própria existência e persistência da comunidade política e económica. E é com base nesta que tudo o resto funciona. Assim, qualquer benefício, de índole política ou económica, radica num benefício divino primordial. E, segundo a regra da reciprocidade, deve ser respondido na proporção. Daí o sacrifício de agradecimento: retribuição aos deuses, tributo aos deuses na parte que lhe compete. Sem esta comunicação com o divino, periga a própria comunicação entre os homens. Isto é, sem a sociabilidade plena com os cosmos, nos seus mais elevados representantes, perde o próprio sentido e possibilidade a sociabilidade entre os homens duma polis. Sem o respeito pelos deuses, desaba o respeito pelos heróis, naufraga a tradição e, com ela, os princípios e valores que presidiram, constituíram e projectaram o ser da própria cidade. Tudo isto é traduzido numa simples palavra: Hierarquia. Traduzido à letra, etimologicamente: fundamento consagrado. Toda a edificação assenta nele e na sua permanência.
Assim, toda a sociabilidade política é condição para a sociabilidade económica e ambas assentam e expressam uma hierarquia. Que significa, sobremaneira, a importância e o valor dos níveis comunitários; dito decrescentemente: o fundador, o político e o económico. Expressa igualmente a cadeia de benefício duma comunidade: a arché, a polis, o oikos. O maior bem reside na origem da própria cidade e patrocina e justifica todos os outros, isto é, todos os outros, políticos e económicos, decorrem dele, são-lhe vinculados. No caso de Atenas, por exemplo, a sua história e a vida dos seus cidadãos nunca se desligam do herói fundador -Teseu -, tanto quanto da deusa padroeira e protectora - Atena. São eles que conferem o sentido e a responsabilidade, que estipulam, tanto quanto um dever, uma dívida. O que os Aristoi (os melhores) representam é a herança mais antiga, a estirpe directa a esse fundamento consagrado. Por isso são eles o topo do poder político, da cadeia hierárquica na própria cidade. Esta, a limite, é mero fruto da charis do divino e do heróico: emerge como acto de benevolência, de favor, de benefício, mas, acto esse, que não se esgota nesse momento inicial e iniciante - tem que ser cultivado e mantido vivo na forma dum reconhecimento e agradecimento permanentes, dos quais resulta a própria permanência e sucesso da polis.
Transpondo para os tempos de hoje, na minha infância, por exemplo, eram comuns expressões coloquiais do tipo: "até amanhã, se Deus quiser"; "estou bem, graças a Deus"; "que Deus me ajude"; "valha-nos Deus"; (a minha avó verberava também um tonitruante "um r-r-raio te parta", que demonstra, em certa medida, como a minha linhagem remonta a Zeus Pai), etc. Esta familiaridade com o divino, esta presença constante Dele no meio de nós e das nossas peripécias vitais é ainda herança cultural da Antiguidade Grega. Onde o divino era ainda, por assim dizer, duma maior familiaridade porque os deuses eram mais próximos, interventivos e "humanos". Por outro lado, esse contínuo relembrar de Deus enforma a verdade básica da religião: Tudo provém de Deus, tudo para lá retorna. Nenhum benefício, empresa ou aventura seria possível sem o benefício primordial que Deus nos concedeu: a própria vida. Nenhuma é digna de mérito ou almejando bom porto, sem o seu favor e benevolência. (Vejam lá bem que eu ainda acredito nisto, que ridículo!...E ainda por cima, piamente.) Como podemos andar pelo mundo a reclamar, usufruir ou taxar benfeitorias, esquecendo o Benfeitor-Mor? Os contornos da religião na Grécia Antiga eram muito diferentes do catolicismo, como é óbvio, mas o mecanismo da charis nem por isso. Aliás, aquilo que constitui o algo a que chamamos "Civilização" traduz-se precisamente na manutenção de fórmulas essenciais que se vão transmitindo e trans-formando, mas que, no fundo, permanecem idênticas.
Voltando agora à moeda. Moeda boa, moeda má... Não exprime convenientemente o problema. A moeda é o contrário de estática; a sua natureza manifesta precisamente o contrário disso: é uma circulação, um movimento, toda uma dinâmica desatada. Mais próprio é falarmos em moeda enquanto benefício ou moeda enquanto malefício. Depois do que fomos mapeando atrás, não será difícil, nem me parece abusivo, se estabelecermos que é um benefício quando se insere na cadeia natural dos benefícios; é malefício quando não a respeita e se investe de poderes excessivos ou, (na terminologia cristã, como depois trataremos) soberbos. E nisto limito-me a seguir Aristóteles.
Podemos, assim, dizer, à nossa data, que o dinheiro se tornou o maior malefício do Mundo, quando degenerou naquela Finança desbragada, ultra-especulativa e demencial. Uma autêntica super peste do planeta, inçado agora de bolhas, cada qual mais pustulenta e fétida que a anterior. No entanto, também existe o bom e regrado uso do dinheiro. Por diversas razões, uns porque a isso se veem obrigados, outros por vocação própria, outros por dura aprendizagem, mas, enfim, não anda tudo a dar na veia dos mercados e bolsas em modo turbo. Estaremos em vésperas alucinantes do Fim do Mundo?
Ora, a verdade é que aquilo que se está a passar connosco já se passou com os Gregos antigos. Por mim, não me custa imaginar a história do mundo como uma enorme cebola. As camadas vão-se sucedendo, desde um núcleo interior mais pequeno, até à camada exterior cada vez maior e, actualmente, já a raiar o descomunal. De Liliput a Megapolis. Mas, de certa forma, as camadas são todas semelhantes. Excepto nas proporções. Ou como diziam os medievais, o microcosmos é igual ao macrocosmos. Pelo que, tanto quanto a lógica, funciona a analogia.
Quem inventou a moeda? Quem precisou dela. A cidade. Troca não apenas de bens, mas de serviços. Uma operação reputada e reconhecida: os mercenários. O próprio nome o refere: combatem a troco de pagamento. Misthotes, a palavra para mercenário também significa jornaleiro. Misthos significa salário. Antes da moeda, recebiam em géneros? Parcelas das pilhagens, eventualmente. Trabalhavam à comissão do produto angariado. Mas... e as cortesãs? Não eram também elas pagas? Porquê a guerra e não o amor? Na Babilónia, prostituíam-se no próprio templo e em prol dos próprios deuses. Mas é da Grécia que tratamos. Na Lídia, que não era bem a Grécia, mas ficava mesmo ao lado: pagou-se pelo amor antes de se pagar pela guerra - em moeda, quero eu dizer? O certo é que parece que eram elas as mais abonadas e contribuintes. Não há certeza para qualquer uma das hipóteses.
Como qualquer benefício, a moeda inseriu-se na cadeia natural dos benefícios. Cumprindo a hierarquia. Creso cunhou, mas Creso, famoso pela sua riqueza, não era menos famoso pela sua piedade. O seu reconhecimento e ligação ao deus são proverbiais. Sebas, no grego: temor religioso, respeito, pudor, santidade, majestade, mas também fama, honra. Ora, a piedade diz-se: Eu-sebas (donde o nosso grande Eusébio, que Deus o guarde!); que pode traduzir-se por um "bom temor", "bom respeito", "boa majestade", ou "boa fama", "boa honra". Creso tinha uma boa fama, porque era uma majestade piedosa, uma "boa majestade". Ao respeitar acima dele fazia-se respeitar abaixo de si. Na tal cadeia hierárquica natural, que também podemos chamar de "cósmica". Depois, num momento terrífico de provação e à beira de ser queimado vivo, por quem brada ele? Por Solon. Vale a pena acompanhar o relato directo de Heródoto:
« Este fê-lo subir, carregado de
ferros e cercado de quatorze jovens lídios, a uma grande
fogueira erguida para sacrificar a alguns deuses as primícias da
vitória, ou para cumprimento de um voto, ou, talvez, para comprovar se Creso, cujo espírito piedoso era tão proclamado,
seria preservado das chamas por alguma divindade. Já sobre a
fogueira, o rei dos Lídios, apesar da dor cruciante que
experimentava, lembrou-se das palavras de Sólon, de que
“nenhum homem pode dizer-se feliz enquanto respirar”,
palavras que então lhe pareciam inspiradas por um deus. A esse
pensamento, assegura-se ter ele, com um longo suspiro, saído
do silêncio em que se vinha mantendo, exclamando por três
vezes: “Sólon!” Ciro, ouvindo-o, perguntou por intermédio dos
intérpretes a quem invocava o prisioneiro. Creso, a princípio,
nada respondeu; mas, compelido a falar, disse-lhe: “É um
homem cujo convívio eu preferiria às riquezas de todos os reis”.
Parecendo aos persas obscura aquela resposta, eles o
interrogaram de novo. Vencido pela insistência, Creso
respondeu afinal, declarando que certa ocasião Sólon, de
Atenas, viera à sua corte, e tendo contemplado todas as suas
riquezas, nenhuma importância lhes dera. Tudo acontecera,
porém, como Sólon previra, embora seu discurso não tivesse
sido dirigido especialmente ao rei dos Lídios, pois era antes
uma advertência a todos os homens em geral e, sobretudo, aos
que se julgam felizes. Assim falou Creso. O fogo já havia sido
ateado e a fogueira já começava a arder pelas extremidades
quando Ciro, recebendo pelos intérpretes a resposta do soberano
vencido, arrependeu-se do seu gesto. Lembrou-se de que
também era um ser humano e que, não obstante, estava fazendo
queimar um seu semelhante, que não se julgara menos feliz do
que ele. Por outro lado, temia a vingança dos deuses; e
refletindo sobre a instabilidade das coisas humanas, mandou
apagar imediatamente a fogueira e fazer descer Creso e seus
companheiros de infortúnio. Todavia, os maiores esforços já
não conseguiam debelar a violência das chamas. Então Creso, segundo relatam os Lídios,
informado da deliberação de Ciro e vendo aquela multidão
açodada, tentando extinguir o fogo sem consegui-lo, invoca em
altos brados a proteção de Apolo, suplicando-lhe que, se as suas oferendas lhe foram agradáveis, o socorra e o salve de tão
iminente perigo. Essas súplicas eram acompanhada de copiosas
lágrimas. De súbito, num céu límpido e radioso, nuvens
pardacentas se aglomeram; desaba uma tempestade, e a chuva,
caindo em abundância, apaga o fogo. Tão prodigioso facto veio
mostrar a Ciro o quanto Creso era querido pelos deuses por suas
virtudes. (...)»
- in Heródoto, "Histórias" (Cleo)
Apeemo-nos, mais uma vez, miseravelmente, no nosso tempo. Que fama têm os nossos nababos actuais - os Bill Gaitas, os Soros e outros falsários de alto coturno? Acham que é uma boa fama? Que majestade exalam? Que respeito pelo acima e pelo (ou do) abaixo? Eu digo-vos, caso não haveis reparado: estão nos antípodas. Impiedade pura e dura; desrespeito absoluto; impudor à solta. E porquê? Porque a hierarquia está invertida e o mundo está de patas para o ar. O mais baixo, o menos digno está por cima de tudo, pura e simplesmente, a conspurcar do alto. Mas é venerado, só que não é uma boa veneração: é a massa rastejante a remirar-se e estupefazer-se com a sua própria Hiper excrescência... O seu tumor sebáceo. Cenário digno dum Lovecraft. Retirada a verdadeira hierarquia, sobra o merceeiro tiranete auto-arvorado a semi-deus, autofundação própria e balofa, entre a língua viperina, o miolo símio e o orifício anal roncante. Na realidade? Não, pura ficção. Pura superstição económica, a limite. Completo desligamento da comunidade, de que se usam, mas em nada servem (a não ser no sentido de a perverterem e nadificarem ainda mais). Mas, repito, seremos nós o cúmulo do desfortúnio, o zénite da catástrofe, o desastre culminante de todos os desastres? Para já, uma pausa nos trabalhos, que a arenga vai longa.
Antes da revisitação ao desastre grego, pela pena, entre outros, de outro gigante: Aristófanes.
PS: Lembram-se, no postal anterior, quando Aristóteles fala do bem que nos fazem, também fala do mal. E se não podemos retribuí-lo, ao mal, como é que nos sentimos? Como escravos. Que na "Política" ele define especificamente como: ferramentas, instrumentos. Só que transpondo, ainda, a estes nossos tempos, dá qualquer coisa como ferramentas de ferramentas de ferramentas... Do dinheiro?