«Tinha sido na Alemanha, à frente de uma crucificação de Mathaeus Grünewald.
E teve um arrepio ma sua poltrona, e fechou os olhos quase com dor. Agora, que evocava o quadro, voltava a vê-lo com uma extraordinária lucidez à sua frente, e enquato o Cristo ali se erguia no seu quarto, formidável na cruz de tronco atravessada por um ramo de árvore mal descascado a fazer de braço, e se curvava sob o peso do corpo como um arco, ele voltava mentalmente ao grito de admiração que tinha dado ao entrar na pequena sala do museu de Cassel.
Esse ramo parecia prestes a reerguer-se e a atirar condoidamente a pobre carne para longe deste terreiro de ultrages e crimes, a pobre carne que os enormes pregos, trespassando os pés, mantinham presa ao solo.
Deslocados, quase arrancados dos ombros, os braços do Cristo pareciam garrotar-se a todo o comprimento pelas correias enroladas dos músculos. A axila fracturada estalava; as mãos completamente abertas brandiam dedos bravios mas que assim mesmo benziam com um gesto confuso de preces e recriminações; os peitorais tremiam, untados por suores; a marca da caixa das costelas raiava o torso com círculos de aduela; as carnes inchavam, salitradas e pisadas, com salpicos de mordedelas de pulga, como que mosqueadas pelas picadelas de agulha da ponta das vergastas que, por terem sido partidas debaixo da pele, ainda a lardeavam aqui e além com as suas lascas.
Tinha chegado a hora das sanies; a chaga fluvial do flanco escorria mais espessa, inundava a anca com um sangue parecido com o sumo escuro das amoras; serosidades rosadas, leites pouco abundantes, águas que lembravam pardos vinhos de Moselle corriam do peito, encharcavam o ventre que tina a bandeira enfolhada de um pano a ondular por baixo; depois, os joelhos undos à força faziam as rótulas chocar-se, e as pernas torcidas encurvavam-se até aos pés que se alongavam e sobrepunham, cresciam em plena putrefacção, esverdeavam em jorros de sangue. Estes pés esponjosos e cogulados eram horríveis; a sua carne dava rebentos, subia à cabeça do prego, e os dedos crispados contradiziam o gesto implorativo das mãos, amaldiçoavam, quase arranhavam com o chifre azul das unhas o ocre do chão carregado de ferro, parecido com as terras púrpureas da Turíngia.
Por cima deste cadáver em erupção aparecia a cabeça tumultuosa e enorme. Cercada por uma corroa de espinhos em desordem pendia, muito fatigada, mal entreabrindo um olho pálido onde um olhar de dor e assombro ainda estremecia; o rosto era montanhoso, a testa desmantelada, a face estava exangue; todas as feições desfiguradas choravam enquanto a boca desselada ria, com o maxilar contraído por espasmos tetânicos, atrozes.
O suplício tinha sido horrível, a agonia aterrorizava a jovialidade dos carrascos em fuga.
Agora, no céu de um azul nocturno a cruz parecia achatar-se, muito baixa, quase ao rés do solo, velada por duas figuras que se mantinham de cada lado do Cristo: uma delas a Virgem com capuz de um rosado de sangue seroso, que caía em ondas planas sobre um vestido azul celeste de longas pregas, a Virgem rígida e pálida, inchada de lágrimas e que soluçava, com o olhar fixo, cravando unhas nos dedos das mãos; a outra São João, uma espécie de vagabundo, de campónio bronzeado da Suábia, alto de estatura e com a barba frisada em pequenos caracóis, vestido com tecidos de panos largos e como talhados em em casca de árvore, um trajo escarlate, capa de um amarelo-camelo cujo forro, dobrado junto às mangas, se transformava no verde febril dos limões por amadurecer. Esgotado pelas lágrimas mas assim mesmo de pé porque mais resistente do que Maria quebrada e rejeitada, juntava com fervor as mãos, alteava-se virado para o cadáver que contemplava com olhos vermelhos de fumo, e sufocava e gritava em silêncio no tumulto da sua garganta surda.
Ah! perante este Calvário esborratado de sangue e enturvado de lágrimas, ficávamos longe dos Gólgotas bondosos que a Igreja adoptava desde o Renascimento! Este Cristo com tétano não era o Cristo dos Ricos, o Adónis da Galileia, o galã de bomaspecto, o rapaz bonito com madeixas ruivas e barba dividida, com feições cavalinas e insulsas que desde há quatrocentos anos os fiéis adoradoram. Era o Cristo de São Justino, de São Basílio, de São Cirilo, de Tertuliano, o Cristo dos primeiros séculos da Igreja, o Cristo rasteiro, feio porque tinha assumido toda a soma dos pecados, e por humildade a vestia nas suas formas mais abjectas.
Era o Cristo dos Pobres, O que se identificava com os mais miseráveis que vinha redimir, os isentos de sorte e os mendigos, todos os que têm a cobardia do homem acirrada sobre a sua fealdade ou a sua indigência; e também era o mais humano dos Cristos, um Cristo de carne triste e fraca, abandonado pelo Pai que só tinha intervindo quando nenhuma nova dor era possível, o Cristo só assistido por aquela Mãe que ele provavelmente chamava com gritos de criança, como todos os que sofrem a tortura, pela sua Mãe agora impotente e inútil.
(...) nunca um pintor abarcara assim o ossário divino, e tão brutalmente molhara o pincel nas placas dos humores e nos cadinhos sanguinolentos das feridas. Era excessivo e era terrível. Grünewald era o mais arrebatado dos realistas; mas quando olhávamos para este Redentor de vadiagens, este Deus de morgue, era outra coisa diferente. Da cabeça exulcerada filtravam-se clarões; uma expressão sobre-humana iluminava a efervescência das carnes, a eclampsia das feições. A carcaça de asas abertas era de um Deus, e sem auréola, sem nimbo. Com o adorno banal daquela coroa eriçada, semeada de grãos vermelhos pelas pontas de sangue, Jesus surgia na sua superessência celeste, entre a Virgem siderada, ébria de prantos, e o São João de olhos calcinados e já incapazes de fundir lágrimas.»
- J.-K. Huysmans, "Là-Bas" ("Além", na trad. portuguesa de Aníbal fernandes)
Mais palavras para quê? Isto, meus amigos, é raro: chama-se literatura. Visita-nos muito esporadicamente.
Este postal é especialmente dedicado à minha apóstola
Zazie.