quarta-feira, julho 30, 2008

A quem possa interessar...

«O maquiavelismo que se define em 1516 n'O Príncipe, de Maquiavel, constitui antes de mais nada a afirmação da independência da Política relativamente à Teologia. O princípio estabelecido durante a Idade Média era da que os príncipes deveriam realizar na Terra a ordem definida pelos teólogos. Presumia-se que a autoridade vinda de Deus, e esta presunção exprimia-se na supremacia reconhecida ao Papa como pastor dos pastores, com a faculdade de destituir os chefes de Estado. Nem outra coisa era concebível, uma vez que na Idade Média é impensável uma vida laica a par da vida religiosa, e todos os valores decorriam da doutrina religiosa.
Maquiavel vem justamente laicizar a Política, retirando-lhe a sua base religiosa. O fim que o príncipe ideal tem em vista é puramente terreno, mundano: a unificação da Itália num Estado.
Ora, fora da religião não havia nesta época moral possível. A Política separada da Teologia ficava à margem da Moral.
Por isso é talvez errado dizer simplesmente que para Maquiavel os fins justificam os meios. O que acontece é que tanto os meios como os próprios fins deixam de ter base teológica, e portanto justificação moral. Mas o fim proposto por Maquiavel tinha uma justificação histórica, e já então intuitiva. E os meios, uma vez abolidos os valores tradicionais, só no fim podiam encontrar a sua justificação. O fim estava fora da moral teológica; os meios não podiam estar dentro dela. Em resumo, a moral de Maquiavel é, na sua própria substância, uma moral antimedieval, antiteológica; e parece-nos, por outro lado, uma moral anárquica, uma moral sem norma, porque não se refere a um sistema de coordenadas ligado a uma visão totalizante do mundo.
Mas depois de Maquiavel uma nova moral se definiu que nos pode orientar na crítica do maquiavelismo. Ela só foi possível mediante a derrocada do mundo feudal e a afirmação do direito igual de todos os homens à cultura e à riqueza. Depois disso toda a moral passou a ter como critério o considerar-se cada indivíduo como um fim, e não como um meio. Deixou de ser moralmente possível considerar certos homens como "sujeitos" e outros como "objectos" da vida política. Todos passam a ser sujeitos, participantes em plena consciência da transformação que tem por objecto eles mesmos. Assim, deixa de haver massas e indivíduos, rebanhos e pastores. Ninguém pode ser "utilizado", ninguém pode ser instrumento para fins de outrem. É cada um que se utiliza a si próprio para um fim que não pode ser outro senão a mais perfeita realização pessoal de todos e cada um.
É este o conteúdo profundo da palavra "liberdade", e o sentido verdadeiro da corrente ideológica que se chama "liberalismo".
(...)
O Maquiavelismo (em sentido depreciativo) consiste hoje em afirmar a prioridade da Autoridade sobre a Liberdade, em pretender que há outros fins sociais além da própria Liberdade (entendida em toda a extensão: jurídica, política, económica, biológica); em endeusar a razão de Estado; em exaltar o segredo como instrumento de governo. Mas este sentido depreciativo atraiçoa o significado histórico da palavra. Maquiavel deu no seu tempo um passo em frente, libertando a Política da Teologia; os pseudomaquiavelistas de hoje pretendem retroceder, procurando justificar os meios inumanos com fins teológicos.»
- António José Saraiva, "Dicionário Crítico"


Sendo eu, intrinsecamente, um tipo antiprogressista (considero a badalenga do "progresso" como a arte da sofisticação da mentira e da prepotência), estou à vontade para citar este texto, dum autor cuja inteligência considero indiscutível mas que se coloca aqui - à data de 1960 - duma perspectiva claramente diversa da minha, ou seja, dum miradouro optimista, progressista e "liberal". Todavia, no restante, isto é, no diagnóstico histórico, em larga medida concordamos. Há de facto uma antiga moral (a medieval e não só, sobremaneira aristocrática ou pseudo-aristocrática), uma nova moral (a moderna, democrática ou pseudo-democrática) e uma não-moral - ou amoral - que coincide com o, digamos assim, momento de crise maquiavélico.
Este momento de crise maquiavélico, ou de transição amoral entre a antiga e a nova moral, corresponde na História Universal a uma época: o Renascimento. O tal que faz de passadiço entre a Idade das Trevas e a Idade das Luzes.
António José Saraiva, imbuído da ingenuidade típica dos neófitos da nova moral - à data de 1960, repito e sublinho - acreditava então que, apesar de tudo, a amoralidade maquiavélica teria constituído um progresso em relação à velha moral. E isto é perfeitamente lógico, já que, à luz da nova-moral, a velha moral é uma imoralidade, uma moral perversa. Nesse sentido, não será difícil preferir a amoralidade à imoralidade.
Todavia, mais que preparar o terreno para a nova moral, o maquiavelismo -isto é, a amoralidade renascentista -, mina-o, armadilha-o, dissolve-lhe as fundações. Pior: transforma-se nelas. Ao refundar a moral com base na "luz da razão" contra a "treva da tradição", o Iluminismo apenas mistifica e embruma: na verdade, planta-se sobre o maquiavelismo, nele se enxerta e frutifica. Desde então, a razão mais não serve que de pódio e trampolim à vontade. E a ciência, em grande parte, conforma-se a assento para as alcatras e respectivas vazões do Poder. Exactamente na proporção em que o trono da regra se resume a mero penico da lei.
Da ausência de fundamento real germinarão todos os fundamentalismos inerentes aos sucessivos "renascimentos morais". A retórica política tentará sempre compensar o vazio ontológico. O Ter a Verdade eclipsará, metódica e perversamente, o Ser da Verdade. A busca cederá lugar à usura.
Se três séculos de exuberante comprovação empírica não chegam, venham mais três milénios!...
E tudo começa em Maquiavel, que, por incrível que pareça, não consta que fosse protestante nem tivesse andado a ler Kant?...
Deixemo-nos de descobertas da pólvora. Tudo vem de muito antes, até de antes dos medievais que, por sua vez, já vinham às cavalitas de outros. A fórmula, aliás, crismara-a Protágoras para a posteridade: "O Homem é a medida de todas as coisas". A "Nova-moral" é quase tão velha como a mais antiga das profissões.
Embrulhem.

terça-feira, julho 29, 2008

Idologias

Do "Dicionário Crítico", de António José Saraiva, se diz, e julgo que com propriedade, que "foi um livro de cabeceira da esquerda nos anos 60". Por algum motivo, pelo menos, a polícia o apreendeu logo após a sua impressão.
A obra está replecta daquele optimismo peregrino tão típico do marxismo evangélico, mas é interessante a muitos títulos. Na edição de que me sirvo, de 1984, o Dicionário vem precedido dum Prólogo do Autor de 1983. Neste se faz, de certo modo, a crítica e o balanço do Dicionário Crítico de 23 anos antes. Nem uma é benévola, nem o outro é animador. Saraiva reconhece, até mais que o logro, o embuste - os devaneios nefelibatas que se desvanecem perante os sopros do tempo e as montanhas da realidade. Uma fórmula condensa a distância: de solução, o Progresso deveio problema. Ou seja, de motor salvífico, tornou-se portal para a ameaça.
Em tandem com a Acromiomancia que aqui vinha expondo, encetarei agora diálogo com António José Saraiva, no seu Dicionário Crítico (que servirá de logradouro para o pensamento que, se bem que duma forma aleijada, ribalda e pífia, haveria de emergir no 25 de Abril), mas também no seu Prólogo de 1983 (verdadeiro epitáfio do anterior).
Aliás, é deste que retiro o trecho inaugural que se segue:
«Há homens que funcionam como totems da Tribo e para isso não é preciso estar vivo, mas dar aos outros essa ilusão.
Há outras motivações ainda. O momento da Revelação e da conversão é um estado de graça comparável ao enamoramento, e é natural que se deseje prolongá-lo indefenidamente, permanentemente. Para conseguir isso é preciso conservar teimosamente a imagem inicial, defendê-la contra toda a dúvida que faz despegar-se a realidade do sonho. Isto consegue-se por meio de uma arte de interpretação escolástica que pode atingir cumes de subtileza sem sair do terreno estreito da crença. Este tipo de interpretação tende a criar um espaço místico que não precisa de sair de si próprio. Quanto mais os factos o contradizem mais ele se adelgaça e se eleva, até lembrar uma torre gótica perigosamente frágil e por isso mesmo mais rígida e mais impenetrável ao exterior. Quanto mais impossível, mais verdadeira: Credo quia absurdum. O crente passa a proteger-se, a proteger a sua verdade contra os desmentidos da realidade, nem que seja preciso dar o passo necessário para dar à sua verdade uma qualidade religiosa.»
António José Saraiva descreve aqui os comunistas. O retrato, porém, tem um alcance bem mais vasto. Se é que não vem mesmo atravessando os séculos pós-medievais. O homem que se erige em totem tribal prenuncia uma "metamorfose". Saraiva, a certa altura, refere-a para aquele caso específico: «o marxismo está sofrendo uma metamorfose do mesmo género. A luta de classes transforma-se cada vez mais numa luta descarnada entre o Bem e o Mal, que terminará inevitavelmente pela vitória do Bem. A vitória do Bem é a vitória do Partido, que inicialmente fora um meio para alcançar a sociedade sem classes. E é nesse ponto que as linhas divergentes se encontram, a linha oportunista, golpista, materializante, e a linha escolástica, talmudista, exegética, etérea: encontram-se no exalçamento do Partido, que é a materialização da Verdade.»
Ora, é nisso que, precisamente, consiste a metamorfose: na transformação da Tribo (seja partido, seita, clube, loja, associação, escola ou gangue) em Igreja; e do Totem em Deus. A limite, redunda sempre tudo numa espécie grotesca e anã de cristianismo: um catolicismo de contrafacção, de pechisbeque. Maniqueísmo caiado e traficado por ciganos.

domingo, julho 27, 2008

Meteorito autografado

Os eventos formidejandos que eu venho perdendo... As pintelhices exorbitantas que vêm escapando ao camartelo da minha fina análise!...
O Pedro Arroja, por exemplo, revelou-se agora, arfa e suspira por um aeroporto com o seu nome. Bem, ao ritmo de inanidades substantivas com que vai armadilhando a sola dos sapatos aos filósofos, e à cadência infernal de safaris púbicos com que lhes vai espreitando e comichando o fundilho, eu diria que, senão um lounge internacional, seguramente uma feira já tem garantida. E não podemos dizer que não ficava catita: Feira do Arroja. Carcavelos e o Relógio estremeceriam. Enquanto aguardamos a supra-humanidade profetizada, vamo-nos entretendo com a super-ciganice. Enfim, são os tremoços, ou nem isso - as pevides-, em ante-sala para a lagosta.
Já o meu sócio e engenheiro Ildefonso Caguinchas também tem devaneios oníricos desses. Também sonha com o nome dele numa tremenda duma infraestrutura pública. Só que, no seu peculiar caso, é, invariavel e obsessivamente, aquele estádio cor de mênstruo que fica ali para os lados da Segunda Circular.
-"Estádio Engenheiro Ildefonso Caguinchas... diz-me lá que não era um mimo, ó Dragão!...", alanzoava-me ele, um dia destes. -"E tu, não gostavas de ver o teu nome num estádio?"
Pergunta estúpida, está bem de ver, porque eu já tenho o meu nome num estádio. E isso, para ser franco, não me dá prazer especial nenhum. Nem proveito. Não obstante, lá o esclareci, pacientemente:
-"Não, Caguinchas, meu velho, isso dos estádios não me diz grande coisa. Sempre preferi o teatro Grego ao circo romano. Agora um meteorito, daqueles grandes, bem grandes, densos, pesados, devastadores, que penetram a estratosfera, riscam a atmosfera e abrem grandes crateras no solo, ah, aí, a título excepcional, confesso que me encheria de satisfação!... Minto: de regozijo. Já imaginaste, ó caro amigo: o estádio Engenheiro-Arquitecto Ildefonso Caguinchas em tarde de derby, todo atestado e ululante, o árbitro quase a apitar, e vir do céu aquele formidável e justiceiro rochedo incandescente - o ilustre e benemérito meteorito César Augusto Dragão - para acertar em cheio naquela merda?!... "
Ou então na TVI, no Parlamento, no festival super-bock/super rock, na Moda Lisboa, na Festa do Avante, no Dez de Junho, em suma, num qualquer desses arraiais de gadeza vácua, infestantes desta terrinha mártir, onde o marasmo, o pasmo e o pleonasmo se entretecem, geminam e confundem.

quinta-feira, julho 10, 2008

O KIT BALNEAR do Dragão (rep)

Estimado leitor/a, este verão, como no anterior e no outro antes desse, há todo um mundo de novas experiências e excitantes aventuras à sua espera. Para que possa usufruir cabalmente desse luxuriante parque de diversões em que se estão a converter as praias deste nosso belo país, o Dragão, imbuído do espírito samaritano que o caracteriza, relembra que continua à venda o Kit Balnear Dragão, bem como o Manual de Operações em Férias. Não se esqueça que para se divertir é fundamental, antes do mais, que sobreviva. E para que a sua sobrevivência, em vez dum grande trauma, se converta num inolvidável prazer, não perca esta nossa promoção...de verão.

KIT BALNEAR Dragão

1. Esqueça os ataques dos raios solares, armados de ultra-violetas desaçaimados. Outros raides mais trepidantes esperam por si. O bronzeador já era. Há cancros mais ameaçadores que o cancro de pele. Compenetre-se: Agora o que está a dar é o "Estojo de camuflagem". Imprescindível, se quer decepcionar os olhares gananciosos do inimigo.


Nota: Também existe em stick, para bagagens minimalistas.

2. Não insista em t-shirts de marca, nada de Lacostes. Opte pelo nosso colete ligeiro à prova de bala. Leve, mas resistente. E óptimo para a pesca submarina...


3. Em vez dos corriqueiros óculos escuros, equipe-se com os nossos binóculos militares, graduados e excelentes para o seu Posto de Observação. Detecte o inimigo antes que ele o detecte a si! Óptimos também para balizar o fogo de artilharia.


4. Não são só os seus filhos que precisam dos baldes e pázinhas; você também vai querer a nossa pá de engenharia militar. Senão como é que cava as trincheiras e abrigos, mal chegue ao areal? E as galerias de tunéis e escapatórias, à boa maneira vietnamita, para casos de extrema urgência? Ou as valas para enterrar os cadáveres, de modo a não atrair moscas nem chusmas de caranguejos inconvenientes?...



5. Não distraia os seus filhos do computador ou da televisão. Até porque a violência não é recomendável a menores, muito menos crianças. Leve antes, para a praia, um ou vários cães especialmente adestrados. Os nossos simpáticos cachorros são particularmente belicosos e xenófobos. Basta declamar-lhes a "password" e vai ver como, em menos de nada, as tropas In (inimigas) retiram.


6. Em vez da toalha, recomendamos-lhe sacos para encher de areia e traves de madeira, ambos essenciais para a construção do seu Bunker. Não arrisque. Um Bunker dá sempre jeito.

7. Nada de raquetes, bolas ou quaisquer outros equipamentos de diversão. Não vai ter tempo nem espaço; nem, temo bem, disposição. Prefira a nossa submetralhadora Ingram MC-10, facilmente transportável e com elevada cadência de tiro. Excelente para senhoras.


Para cavalheiros mais tradicionalistas, não é de desprezar a Remington 870, military shotgun, gadget capaz de pequenas maravilhas, sobretudo se abastecida com cartuxos expresso de zagalote.


8. Não perca tempo com chapéus de sol ou cadeirinhas ridículas. Piece de resistence, literalmente falando, para este verão é a nossa concertina de arame farpado, essencial para retardar a horda invasora e dar-lhe tempo, a si, para remuniciar.


9. Os tempos de enterrar lixos e porcarias na areia também estão, felizmente, a cair em desuso. Não polua o que é de todos. Em vez de pacotes e latas de cerveja ou refrigerante, enterre as nossas Minas anti-pessoal M14, engenhos das melhores colheitas e proveniências, directamente importadas dos Estados Unidos, via Balcãs, que zelarão pela sua tranquilidade, contribuindo para um alerta em tempo útil e uma dissuasão nada menosprezável.




Finalmente, nunca descure: quando em trânsito para a praia ou no regresso dela, não facilite - viaje sempre em caravana. Você e os seus vizinhos, familiares e amigos. E contratem, por avença, um batedor da polícia. Em caso de ataque, ao mínimo sinal da marabunta, formem as viaturas em círculo, mulheres e menores de idade ao centro, homens ao perímetro.
E, por falar nisso, aceite também uma singela recomendação (enquanto não está à venda o "Manual de Operações em Férias", do Dragão): troque o seu obsoleto e inútil extintor de incêndios por este belo e reluzente apetrecho de diálogo social:

Foto: uma das nossas monitoras em plena demonstração.

Boas férias!...

segunda-feira, julho 07, 2008

Acromiomancia - VI. Social, mas não socialista

«Porque agia dentro de uma Constituição que sempre procurei respeitar, e por convicção própria, mantive, portanto, o Estado Corporativo. Mas lancei poucos dias depois de tomar posse do governo, a fórmula do Estado Social a fim de acentuar o conteúdo da política que me propunha seguir.
Esta fórmula é, há bastantes anos, corrente na literatura da ciência política por esse mundo publicada e foi consagrada nalgumas constituições, designadamente na da República Federal Alemã.
O sentido que lhe dei na curta alocução proferida em 10 de Outubro de 1968 ao receber os presidentes das corporações foi o de - "um poder político que insere nos seus fins essenciais o progresso moral, cultural e material da colectividade que, pela valorização dos indivíduos e pela repartição justa das riquezas, encurte distâncias e dignifique o trabalho". E meses depois, por ocasião da apoteótica visita ao Porto, em 21 de maio de 1969, voltava, no discurso proferido da varanda dos Paços do Concelho, a proclamar um Estado Social, mas não socialista.
(...) Está, pois, claro o pensamento que me animava ao preconizar o Estado Social: embora mantendo a propriedade privada e a liberdade de iniciativa em economia de mercado, o Estado deveria intervir fortemente na vida social para corrigir as injustiças da repartição dos rendimentos, directamente através do ajustamento dos salários e indirectamente mediante a concessão de vantagens e oportunidades que permitisse aos trabalhadores e às suas famílias vencer obstáculos à sua promoção e encurtar distâncias sociais.»
- Marcello Caetano, "Depoimento"

Foi, portanto, este, filhinhos, o perigoso fascista que democratas impolutos, hiperactivos e vitalícios, da envergadura e pujança dum Otelo Saraiva de Carvalho, dum Costa Gomes, dum Melro Antunes, dum Álvaro Cunhal, dum Mário Soares e tantos outros, numa bela manhã de Abril, descadeiraram e proscreveram.
"Fascismo nunca mais!", troaram mil papagaios e megafones, na época. Ocasionalmente, ainda nos revisitam os seus ecos serôdios e crocitantes. Só espanta quem não assistiu. E quem não presenciou, entre enauseado e divertido, a modinha subitamente frenética e furibunda daquela romaria à solta. Porque, não duvidem, o slogan descabelado fazia pleno sentido então: é que quem não fosse marxista-leninista, era fascista ou para lá caminhava. Facho, nazi, pide, reaccionário e o que mais houvesse!...
Mas o que era mais fascinante era a autoridade moral, o pedestal seráfico de quem o vociferava, geralmente em enxame querubineiro. Vociferava e, pasme-se, vocifera, ainda hoje, trinta anos passados. Só que agora, em tom mais pastoso, esporádico, sarnento, do alto de sebosa papada, com uma gravata - feita chocalho - a escorrer dela.
Todavia, deixem que vos diga, eu, slogan por slogan, sempre preferi o "putas ao poder, que os filhos já lá estão!" E, já agora, permitam até que o actualize: Os filhos e, entretanto, também os maridos. Pois, tudo indica, desposaram os rebentos as matrizes, ascendeu ao matrimónio a clientela. Afinal, este não é apenas um regime de mentira: é de incesto. Os filhos da república não saem de cima da mãe.

sábado, julho 05, 2008

Este Kant à beira-mar plantado (rep)

Embora não pareça e não sei quantos mil jornalistas insidiem e conspirem, Portugal é um país de génios. De génios, de doutores congénitos, de crânios predestinados, é o que vos digo! A prova? Nenhuma outra região do globo, creio mesmo que da galáxia, reune sob as suas fronteiras uma tal densidade de eruditos em Kant. É preciso dizer mais? Experimentem, numa qualquer esquina, interrogar um transeunte, um indígena avulso, mesmo uma porteira que por ali ande, de cão em trela, à espera que a alimária se alivie... perguntem-lhe, vá. “Kant? Emanuel Kant, o filósofo de Konisgsberg?! –Obsequia-vos logo, o aborígene, todo pressuroso. –Não tem nada que enganar, amigo: segue sempre em frente, vira à direita, outra vez á direita, encontra uma praça, com um jardim, é aí mesmo!” E se não vos brindar, à despedida, com um trocadilho brejeiro –do estilo: “mas cuidado não vire à esquerda na segunda direita, senão em vez de Konigsberg vai dar a Caralhisberg, uma chatice, ah-ah-ah!...” – já ides com sorte. Isto tudo se, entretanto, qualquer outro basbaque, daqueles que rondam sempre de olho atento e ouvido à escuta, não flanar nas redondezas e se aperceber da questiúncula. Porque, nesse caso, arrepiai-vos boa gente, pois haverá debate pela certa. Kant é matéria que nenhum português de gema se atreve a deixar impune. O segundo obstará de imediato ao primeiro: “Olhe que não, está a fazer confusão. Aí, na praça, é o Hegel, o filósofo da dialéctica. Kant, o Emanuel, fica dois quarteirões mais acima, logo antes da Travessa do Fichte, o amigo do Schelling”. “Você está a fazer confusão entre o filósofo e o crítico da razão, ora essa!... –retorquirá, o primeiro. –“O crítico é que mora no Largo da Transcendência, o filósofo é como eu digo!...” Nada a fazer: muni-vos de toda a vossa santa paciência e preparai-vos para uma logomaquia das antigas. Um terceiro, um quarto, não tardarão. Parecem moscas atraídas pela bosta. Em menos de nada já é um areópago, uma assembleia, uma conferência. Cada qual –e serão muitos, garanto-vos–, tentará impingir-vos um itinerário diferente, o último sempre mais peregrino e rocambolesco que o anterior. Quando começarem a berrar alto coisas como “Leibnitz”, a vociferar “Hume” e “Wolf”, e a mandarem-se uns aos outros para o Platão que os pôs ou a socratizar-se naquela parte que vós imaginais, então, temei, fixai que é chegada a hora de sairdes pianinho, à francesa, que o caldo, depois de ferver em três tempos, vai entornar-se pela certa. Ora, se o povo avulso é assim, imaginem agora os assistentes universitários, os catedráticos, os jubilados (já não falando nos estudantes, essa inefável classe de vermes em trânsito para mariposas). Pois, envernizai a espontaneidade popular com uma camada lustrosa de neurose obsessiva e aí tendes o quadro dos eruditos (em acto ou im-potência). Resumindo: neste raio de país, não há quem não nos explique Kant, com minúcias do arco-da-velha, escalas mirabolantes e em versões tão abstrusas e estapafúdias que nem ao diabo lembrariam, mas todas elas geniais, é claro. Aliás, quanto mais abstrusas, mais talentosas, foras-de-série. Este, de resto, é um traço essencial do carácter luso, um fundamento da sua idiossincrasia: o português não explica, complica. Respira convicto que saber uma coisa -dominá-la até à medula dos ossos-, é complicá-la, ou seja: arrastá-la pelos cabelos a um labirinto, atomizá-la num alucinante puzzle ou triturá-la em pasta homogénea, em puré imarcescível, com a varinha mágica da sua sobrinteligência. Os portugueses alcançam mesmo o prodígio inaudito de conseguir complicar Kant. E tudo isto duma forma inata, espontânea, enciclopédica. O preço para tanta glória? Apenas uma ligeira contrariedade... Emerso em tão feéricas e prolixas tramas, o patrício nunca entende as coisas: contende com elas. (Uma bagatela, portanto, Deus o abençoe).

Escrevi aqui isto em 18 de Outubro de 2004 - há quase quatro anos, portanto. Hoje, todavia, poderia ainda acrescentar:
Nestes nossos vis e apagados tempo, à falta de Deus, os aborígenes acreditam em qualquer farófia. E, com idêntica codícia, à falta de glória, cobrem-se de qualquer coisa... Ridículo, quase sempre.

Aliás, eu bem digo: o problema maior da gente actual deste país é bem pior que simples ignorância: é adolescência. Furiosa, relapsa e contumaz.

sexta-feira, julho 04, 2008

Acromiomancia - V. A eterna juventude

«No decurso dos anos 60 nunca mais deixaram as escolas de ser alvo da doutrinação comunista, mais ou menos encoberta, e de nelas se fazer trabalho de organização, a partir, em geral, da conquista das associações académicas ou das chamadas comissões pró-associação nas escolas onde aquelas não existiam. O emburguesamento do operariado alterara os termos da concepção clássica da revolução social, mas os jovens intelectuais viriam substituir os proletários como tropa de choque. A acção na escola tinha ainda as vantagens de, por intermédio da juventude, infectar a vida social, desorganizar o esforço militar no Ultramar e abalar as estruturas capitalistas. (...)
As escolas superiores iam sendo, assim, persistente e habilmente trabalhadas pelo partido comunista que só começou a ter dificuldades pelo aparecimento dos seus inimigos à esquerda - os trotskistas, maoístas e anarquistas.»
- Marcello Caetano, "Depoimento"

Se pensarmos que foi desta incubadora que germinou grande parte dos nossos governantes dos últimos trinta anos ficamos a perceber porque é que a nossa "democracia" se parece tanto com um albergue espanhol.

Agora atentem nesta descrição perfeitamente surrealista e - o mais espantoso! - plenamente actual:

«E em Portugal os ecos dessa contestação global encontravam ressonância não faltando quem, como de costume, se apressasse a papaguear os pontos da doutrina revolucionária quanto ao ensino.
Foi aliás por diante um delírio de regress0o a pedagogias libertárias, incluindo a ressurreição das ultrapassadas concepções de Jean-jacques Rousseau. Respeitáveis professores e boas mães de família passaram a afirmar enormidades antideducativas, onde as pretensões filosóficas tomavam laivos de psicanálise em fórmulas mal digeridas e dogmaticamente proclamadas.
E aqui se insere a terceira das causas das dificuldades do governo na definição e na prática da reforma educativa: enquanto progrediam os ataques revolucionários, comunistas ou anarquistas, contra a educação dita burguesa, do lado da burguesia entrava-se francamente em crise. Os professores antigos recusavam-se a discutir com quem os acusava de atraso ou reacção, e depois, perante a pressão dos mais novos, começaram a ter medo de fazer figura em público de ultrapassados, ainda quando em particular divergissem das novas ideias e dos novos métodos.
O mesmo sucedeu com os padres. A Igreja fora sempre em Portugal o grande sustentáculo da moral tradicional, que é a moral cristã, e o sólido apoio das famílias na educação dos jovens segundo esses princípios. Mas o espírito da dúvida acerca dos valores morais e dos métodos de educação entrou também na Igreja. Sacerdotes com fumos de intelectualidade apressaram-se a perfilhar as novas ideias sobre conduta em sociedade onde o materialismo pusera a sua marca e a abençoá-los como frutos apurados de um requintado espírito cristão. Cheios os bispos do temor de usar a autoridade pastoral (não fossem chamá-los fascistas!) não tardou que nos retiros, nos colóquios, nos colégios religiosos começasse a imperar como bo a doutrinação progressista que relegava para o mundo das velharias os conceitos e os métodos em que haviam sido educados os pais dos jovens de hoje. E as famílias recebiam no seu seio o impacto desta mensagem. Os jovens em crise de adolescência proclamavam agora, perante pais atónitos, a negação de quanto estes acreditavam, e autorizavam-se para isso com o prestígio da adesão da escola e da bênção da Igreja.
Perante os pais - quando havia pais... Porque a crise da família fazia com que, cada vez mais, os jovens não encontrassem em casa com quem dialogar. As mães para um lado, os pais para outro, caminha-se para a destruição da comunidade familiar.
Foi neste quadro que se trabalhou no domínio da educação durante os cinco anos e meio do meu governo.»
- Marcello Caetano, "Depoimento"

Caetano descreve o rilhafoles socio-educativo daquele tempo, mas, incrivelmente (ou nem tanto), o retrato continua a assentar que nem uma luva neste em que ainda hoje patinamos. Afinal, o jovens acumularam anos, tachos, pedestais, sinecuras e mordomias, mas a crise de adolescência continua a mesma. Imarcescível e inoxidável. No fundo, é a única e verdadeira e crise que não despega - a crise-mãe e locomotiva de todas as outras: a da incapacidade destas efebências que nos desgovernam - e tiranizam com toda a espécie de birras, leviandades e macaquices - em alcançarem a idade adulta. Dir-se-ia até que, em Portugal, foi finalmente encontrado o segredo da "eterna juventude". Só que, pelos vistos, não é uma fonte: é uma chucha.



quinta-feira, julho 03, 2008

Acromiomancia - IV. 28 de Março de 1974

«Consola-me ouvir dizer a muitos, estrangeiros ou que no estrangeiro residam habitualmente, mas que nos visitam de quando em vez, que é visível a profunda transformação da vida nacional em todos os sectores, a partir de acentuada melhoria económica e da aceleração da política social. Essa transformação rápida tem um custo. A muita gente aflige ver a modificação de hábitos, de mentalidade e de costumes que se processa na sociedade portuguesa. E que nem sempre é para melhor. Tínhamos, e graças a Deus ainda há muito quem tenha, uma bondade natural de trato com os outros, um espírito de afabilidade no acolhimento dos estranhos, um respeito recíproco nas relações sociais, uma compreensão das dificuldades alheias, uma contenção púdica de sentimentos, que vão cedendo cada dia mais aos impulsos do egoísmo. O egoísmo é a lepra da humanidade contemporânea. À medida que se vai implantando a convicção de que esta vida são dois dias, dos quais importa tirar o máximo de prazer sem qualquer esforço e suceda aos outros o que suceder, desfazem-se as famílias, desmoronam-se os exércitos e ruem os Estados.
A vida em sociedade implica numa atitude de solidariedade e de colaboração que exige dádiva de si próprio, sacrifício de interesses, espírito de serviço, integração em planos colectivos. Mas o egoísmo materialista desfaz tudo isso. Nega-se ao sacrifício, escusa-se a servir o próximo, aborrece a obediência às leis e a quem as executa, instaura a indisciplina em todos os sectores, recusando-se a acatar outra norma que não seja a das conveniências pessoais de cada um.
Quantas vezes as pessoas se queixam de injustiças, por não lhes ser feita a vontade! Para muitos justiça é o que lhes convém.
Estamos perante a invasão de uma mentalidade que grassa já na maior parte dos países e que, infelizmente, está longe de ser um sinal de progresso. »
- Marcello Caetano, "Última Conversa em Família, através da rádio e da televisão, em 28 de Março de 1974"

Atentemos no lúgubre paralelismo entre este presságio-mortalha dum ciclo e um outro de 27 de Setembro de 1968, com que Franco Nogueira encerrava o seu Diário:
«Anunciada a composição do novo governo. Nos Estrangeiros, lavro um despacho determinando que cesse o envio dos telegramas oficiais ao Doutor Salazar e que os mesmos passem a ser remetidos ao Presidente do Conselho Doutor Marcello Caetano. Findou uma época com lampejos de grandeza, um estilo de governo onde havia sentido de medida e elegância de forma, uma concepção de vida assente em certezas, uma visão de Portugal haurida na história, também erros e sombras sem dúvida; mas foi toda uma política onde a firmeza e a coragem desempenhavam papel de monta. Uma viragem, em suma. Vamos ter novos tempos, novas vontades
Franco Nogueira, lucidamente, adivinhava a mudança de rumo. Estarrecido, Marcello Caetano descobria a invasão duma mentalidade infestante, perturbadora, pandémica. Augurava que não era um progresso. Nós, que a padecemos vai para mais de trinta anos podemos confirmar a plena correcção desse augúrio. De facto, não foi um progresso. Pelo contrário, tem sido um retrocesso constante. Tanto, que, por este andar e a este ritmo caranguejante, não tarda estaremos -não decerto no 24 de Abril de 74, mas - num híbrido deveras monstranhiço do 27 de Maio de 1926 com o 30 de Novembro de 1640. Uma enorme bosta ouriçada de patas, goelas, cloacas e pêlos.
Por outro lado, se a uma vontade sucediam outras vontades, já com a mentalidade invasora era a diluição de toda e qualquer genuína vontade numa chusma heteróclita e carnavalesca de meras gulas apetites o que se adentranhava. Mas o que não deixava de ser ainda mais perverso e inquietante é que o púlpito donde o infeliz governante lançava o seu alerta coincidia precisamente com a principal porta de entrada da peçonha: a rádio e a TV.
E quando mais adiante, nessa sua derradeira Conversa em Família, Caetano profere: «No que todos os estrangeiros, desejosos de nos ver despojados do Ultramar, jogam é no colapso da retaguarda em Portugal», nem imagina o quão justo e paradoxal está a ser.
Sterne defendia que todo o homem tem o direito inalienável ao seu cavalinho de pau. Para azar de Marcello Caetano, e ainda mais nosso, o seu cavalinho de pau era também o de Tróia. Bem vistas as coisas, as suas Conversas em Família não passavam dum breve e inócuo interstício na propaganda do inimigo. Uma minúscula pausa no bombardeamento. Que, passados trinta anos, não só não abrandou como se tornou maciço... e ininterrupto.

quarta-feira, julho 02, 2008

Acromiomancia - III. 10 de Abril de 1965

Acerca do "federalismo" advogado por Marcelo Caetano no início dos anos 60, tem Franco Nogueira o seguinte - e eloquente - comentário no seu diário, em Abril de 1965:

«Segundo o ministro do Interior, algumas actividades académicas parecem denotar uma intervenção do general Deslandes em favor da criação dos "Estados Unidos de Portugal", como preconizada por Marcelo Caetano, ou seja uma espécie de federação lusitana. Como se aqueles que nos querem expulsar de África consentissem que, sob outro nome e outra construção política, permanecêssemos em África! Torna-se-me difícil entender tanta ingenuidade em homens que têm obrigação de ser esclarecidos. Entretanto, pelo país, continua intensa a propaganda norte-americana, junto de militares, de funcionários médios, do clero, da imprensa, e dos meios de informação geral. E muitos socumbem.»

Curiosamente, em 16 de Fevereiro de 1974, no seu último discurso à ANP, Marcelo Caetano declarará:
«Em 1962 eu pensava que valia a pena pôr de pé a construção federal - com a sua complexidade, sobrepondo órgãos dos Estados federados e reduzindo a própria metrópole a um destes - porque ela seria aceite pacificamente pelo mundo e nos permitiria vencer as guerrilhas desajudadas por uma vez do auxílio externo e do apoio das Nações Unidas.
Hoje sei que não é assim. As guerrilhas e os seus aliados, as Nações Unidas e as que andam desunidas, não aceitarão outra solução política que não seja a entrega do poder aos movimentos terroristas, com expulsão, imediata ou a curto prazo (como sucedeu em Madagáscar e no Zaire) dos brancos residentes nos territórios.
O problema não é jurídico: não reside já em escolher entre dependência ou independência, entre Estado unitário ou Estado federal. É puramente político. Está posto por essa gente toda - aberta ou encobertamente - em termos racistas. E está posto no dilema - pretos ou brancos.
(...) Somos responsáveis pelos milhões de portugueses pretos e brancos que pacificamente labutam e querem viver sob a bandeira verde-rubra na África, na Ásia e na Oceânia.»

E, mais adiante, deixará mesmo um prognóstico que o futuro revelará lúcido:

«Se a Europa sair ou for expulsa definitivamente da África não será do Ocidente que virão os sucessores.»

É plausível que Caetano, com este discuso, procurasse sossegar ou cativar os sectores mais conservadores do regime. Os mesmos que não vinham vendo com bons olhos a -nas suas próprias palavras - "política de autonomia progressiva" das províncias ultramarinas. Cujo "pensamento era o de ir entregando cada vez mais o governo e a administração dos territórios às suas populações, procurando fazer participar em escala rapidamente crescente os nativos em todos os escalões da gestão pública." E que, de resto, ficaria consignada na "nova lei orgânica do Ultramar Português", de 23 de Junho de 1972. Segundo a qual, por exemplo, "cada província passava a ter a sua Assembleia Legislativa eleita por sufrágio directo."
Certo é que, querendo agradar a tantos, acabou por não conquistar nenhum. Confundindo o todos com o todo, acabou prisioneiro da sua própria anfibologia e, à semelhança do morcego da fábula, terminou solitário, ostracizado por aves e mamíferos.
E de tal modo assim foi, que, no dia 25 de Abril de 1974, ninguém sabia exactamente, e com clareza, qual a proveniência do golpe. Tanto podia estar a vir da esquerda cantadeira como da direita roncante.
No final do dia, sabemos hoje, ganharam os sinistros. Por falta de comparência.

Nota da redacção

Não me perguntem, porque, creiam, eu também não sei porquê. As razões que levaram aquelas bestas da Haloscan a darem sumiço aos comentários e a negarem-me o acesso à própria conta pertencem ao domínio do absoluto mistério. Mas confesso que começo a estar farto de coisas esquisitas que, sistematicamente, vêm sucedendo ao blogue.
Entretanto, se bem que não tendo nada a ver com esta peripécia, aqui ficam as minhas desculpas aos leitores (e especialmente ao José, à Zazie e ao Mário). Assim que puder, tentarei repor os antigos comentários do Blogger (se bem que não faça a mínima ideia como; suspeito que os Holoscans vampirizaram o template)...
Actualização: Está resolvido. Num acesso raro de inteligência, recarreguei o template que tinha guardado, com os comentários do Blogger.

Acromiomancia - II. 17 de Setembro de 1964

«Examinando a situação espanhola, Salazar deixou cair: "Franco, como eu, chegou ao fim. Que problema terrível vai ter a Espanha com a sucessão! Nós aqui, não. O Chefe do Estado escolhe-me um sucessor, e o caso liquidou. Se ele se fará ou não obedecer, esse é outro aspecto.»
- Franco Nogueira, "Um político confessa-se (Diário: 1960-1968)"

Infelizmente, Salazar errou onde mais nos convinha (que não errasse) e acertou onde menos nos interessava (que acertasse).

Entretanto, vale a pena relembrar a descrição que o próprio Marcelo Caetano faz da sua investidura pelo Presidente da República (e em entrevista inaugural com este).
«Não ocultava a minha discordância de certas orientações governativas. E relativamente ao problema ultramarino, embora convencido de que o Dr. Salazar agira como as circunstâncias exigiam, não sabia o que pensava o País. Se assumisse a chefia do Governo, procuraria que as eleições gerais a realizar em 1969 fossem o mais correctas possível para que, se as ganhasse, ganhasse bem. Seria a oportunidade de deixar a Nação exprimir o seu ponto de vista quanto ao Ultramar. Se a votação fosse favorável à política de defesa que estava em curso muito bem... Se não...
- Se não, as Forças Armadas intervirão, interrompeu o Presidente da República.
Soube depois que os chefes militares consultados haviam aceito o meu nome, mas com reservas. Alguém havia posto a correr um papel confidencial em que transmitira, anos antes, ao Dr. Salazar a opinião que, sobre uma possível evolução constitucional do Ultramar português, ele me pedira por intermédio do então Ministro Adriano Moreira. Nesse papel (cujo conteúdo merecera adesão dos antigos Ministros Francisco Machado e Vasco Lopes Alves, salvo erro) preconizava-se a criação de uma federação de Estados, em que, juntamente com a Metrópole e no mesmo plano, entrassem as províncias ultramarinas. Uns "Estados Portugueses Unidos" que eu admitia, no início da década de 60, constituíssem solução aceitável para a Organização das Nações Unidas de modo a evitar a hostilidade internacional contra Portugal. O papel não teve seguimento, nada se fez então. Mas, para muita gente, uma tal ideia era antipatriótica por atentar contra o dogma sacrossanto da integração, em que então encarnava o ideal nacional. As Forças Armadas, através dos seus chefes, punham, pois, ao Presidente da República, como condição para aceitarem o novo Chefe de Governo, que não só se mantivesse a política de defesa do Ultramar como se evitasse qualquer veleidade de experimentar uma solução federativa.
O Chefe do Estado transmitiu-me estas únicas condições. Ficou bem claro que se fosse mal sucedido no meu propósito de obter em 1969 um voto do eleitorado favorável à defesa do Ultramar, eu cederia o Poder às Forças Armadas.»
- in "Depoimento"

Portanto, devaneio interessante, o de Marcelo Caetano, em auscultar o que pensava um País que estava habituado a que Salazar pensasse por ele. E projecções algo optimistas, as de Américo Tomaz, se pensarmos que, não só Caetano mas também ele próprio, haveriam de entregar o poder às tais Forças Armadas. E, ainda por cima, ironia das ironias, para procederem exactamente ao inverso daquilo que ele augurava.

terça-feira, julho 01, 2008

Acromiomancia - I. 13 de Novembro de 1966

Já toda a gente decerto ouviu falar na quiromancia - a adivinhação do futuro através da leitura das linhas na palma da mão, pois. Todavia, é apenas uma entre muitas. De facto, exercem-se, há séculos, imensas modalidades de adivinhação, das quais cito algumas deveras pitorescas:
- Dendromancia (adivinhação pela leitura dos troncos de árvores derrubadas);
- Oniromancia (adivinhação pela leitura dos sonhos);
- Ornitomancia (adivinhação pela leitura do voo das aves);
- Aeromancia (adivinhação pelo exame do ar - hoje também chamada metereologia);
- Necromancia (adivinhação através de colóquios com os defuntos).
Existe mesmo uma variante de geomancia a todos os títulos notável: consiste em atirar lixo ao chão e interpretar os resultados.
Já em Portugal, a modalidade mais fascinante chama-se acromiomancia. Trata-se de adivinhar o futuro do país através da leitura das movimentações acrobáticas dos ratos. Ratos de trapézio e ratazanas de ministério, entenda-se. É um método de vaticínio, quase me atrevo a dizer, infalível; duma precisão que chega a causar calafrios.

Querem um exemplo magno?

Franco Nogueira, então Ministro dos Negócios Estrangeiros (e dos brilhantes) de Portugal, ao seu diário, em 13 de Novembro de 1966:
«Não há dúvida: Portugal atravessa uma crise e uma encruzilhada histórica. Encontra-se com quase oitenta anos o Presidente do Conselho; a oposição, ainda que dispersa e em muitos casos demagógica, agita-se com vivacidade crescente, embora apresente apenas teses que levam à perda de tudo: a carência dos ministros das Finanças e da Economia, por saúde ou outros motivos, agrava o problema económico, o dos preços, o dos salários, o do crédito, e sem isto não há política militar e política externa que valham; e os Estados Unidos, a União Soviética, outros ainda, mantêm as mandíbulas de sentinela e as garras afiadas à espera do momento em que nos falte o fôlego. É grave a situação; sê-lo-ia em qualquer caso; mas, sem ser desesperada, torna-se mais séria pela ineficiência da administração, pela lentidão do governo, pela descoordenação da política de cada departamento com a dos outros, pelas rivalidades pessoais, pela sobreposição de ambições individuais aos interesses nacionais. Ulisses Cortez está sempre apavorado com qualquer esforço ou emoção que possa causar-lhe outro enfarte. Em todo o Conselho de Ministros, e além do Presidente do Conselho, haverá neste momento quatro ou seis ministros ministros que sentem e acreditam no Ultramar. Desejariam os outros ver-se livres de África, para se devotarem às delícias de uma política europeia. No fundo, o que adoram é o Conselho da Europa, sem entenderem que este é um nicho para instalar políticos aposentados e na terceira idade, e a OCDE, e as Conferências de Ministros europeus do Trabalho, e da Saúde, e dos Transportes, e da Cultura, e assim; e anseiam pelas idas a Paris e a Viena, a Genebra e a Londres, e demais centros europeus de prazer ou turismo. Entregar o país nas mãos dos imperialismos e das multinacionais, e deixá-lo colonizar por uns e outros; perder a independência de decisão, mesmo no que respeita à metrópole; vender o país aos bocados; diluir e perder a independência nacional - tudo isso é indiferente a esses tais desde que, na nova ordem de coisas, mantenham os lugares, o prestígio, os benefícios materiais, a sensação de autoridade, os sinais exteriores de poder. Por todo o lado, no mundo oficial, nota-se uma desorientação básica, confusa, quase um pouco de salve-se quem puder
- in "Um Político confessa-se" (Diário: 1960-1968)

Posto isto, façam-me a fineza de reler agora este postal...

O problema do totalitarismo radica no esmagamento das partes por um pseudo-todo, geralmente usurpador e burocrático, a que se chama Estado. A miséria do partidarismo resulta no ensoberbecimento das partes, que passam a considerar-se mais importantes que o Todo. Entre ambos os flagelos, os povos oscilam, rangem -quando não ricocheteiam - e buscam, cega e tropegamente, através dos séculos, desenvolver uma qualquer imunidade que os resgate, duma vez por todas, a essa mórbida astenia. Temo bem que, nessa tumultuosa demanda, o milénio não seja muito maior que o simples dia.
No 25 de Abril de 1974, o furúnculo rebentou, mas vinha-se enchendo de vurmo há vários anos. Suspeito que, à data do seu crepúsculo consular, Salazar retirou-se com mais nojo de muitos que o rodeavam do que da própria oposição. Ao menos estes, na maior parte das eminências parvas, eram putas vendidas ao estrangeiro, mas eram-no de cara descoberta.