Um pouco a propósito dum hipotético desidialismo americano, por contraposição, por exemplo, aos bolcheviques, lembrei-me de algo que já aqui tinha escrito em Maio de 2004 (este é um blogue a raiar o arcaico)...
«Os navegadores lançam as raízes da árvore genealógica da representação do bom selvagem e do paraíso terreal reencontrado. O Novo Mundo alimenta o ideal da fusão comunitária como remédio para a crise moral e social que mina o Velho Mundo.»
-Armand Mattelart, "História da Utopia Planetária -Da Sociedade Profética à Sociedade Global".
Desde então, há que reconhecê-lo, nunca mais o conceito "novo" deixou de galopar e redimir outros conceitos. O último capítulo dessa aventura, nestes nossos dias, fala-nos duma "Nova Ordem"... Mas já em 1898, após a invasão de Cuba pelo Corpo Expedicionário dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, futuro presidente, clamava: «a americanização do mundo é o nosso destino!» Não se tratava apenas dum desabafo entusiasta, dum delírio energuménico para animar as tropas. A doutrina do "Destino Manifesto" [dos Estados Unidos] já vinha desde James K. Polk e servira às mil maravilhas para confiscar belicosamente, ao México, o Texas, o Novo México, o Arizona, a Califórnia, o Nevada, o Utah, parte do Colorado e do Wyoming. Convertida em artigo de fé, esta doutrina passou a ser pregada, desde 1886, pelo reverendo Josiah Strong, o qual, com o fervor próprio dos iluminados, exortava à instauração urgente e redentora dum império cristão e anglo-saxónico. Em 1890, tão profusa sementeira colheu o seu principal fruto: "Alfred Thayer Mahan, professor do Naval War College, futuro almirante e artífice do poderio naval americano". Vai tornar-se o seu principal apóstolo. Uma nova geopolítica, baseada no domínio dos mares, iniciou-se então: "em direcção às Caraíbas, pelo golpe de mão sobre Cuba mas também sobre Porto Rico, considerados bastiões estratégicos do "mediterrâneo Americano"; em direcção à Ásia, pela conquista das Filipinas." «Nestas novas aventuras imperiais, o discurso messiânico roça o delírio. Elas são, aos olhos dos seus novos cruzados, a "manifestação da Vontade divina", o cumprimento do "desígnio da Providência", da "predestinação". "O que a nação ganhou com a expansão, escreve Mahan, invocando explicitamente a "religião de Cristo", foi uma ideia de regeneração, uma elevação do coração, a semente duma futura acção de beneficiência, uma possibilidade de sair de si mesmo e ir pelo mundo comunicar o dom que a nossa nação tão generosamente recebeu"». Ainda hoje podemos constatar os efeitos e os episódios mais recentes desta doutrina benemérita, por exemplo, no Iraque. Quer dizer, o vínculo entre a Nova Ordem e o Novo Mundo obedece a uma lógica transcendente, intrinsecamente "religiosa": o Novo Mundo é o Eden restaurado do Homem Novo, a oportunidade concedida por Deus à regeneração do Velho Mundo, decadente e corrompido. Mas isso é só a primeira fase. Existe depois um refluxo, um retrocesso, como nas marés... Ou seja: uma vez realizado e construído esse Novo Mundo, pelo Homem Novo, peregrino evadido do Velho Mundo (por obra e graça de Deus), compete-lhe transmitir essa regeneração ao resto do planeta. A Nova Ordem, temos o privilégio de testemunhá-lo, é só a última peripécia dessa odisseia. De facto, no fundo da alma americana, habita esta obsessão evangélica, este desígnio nacional por delegação divina, este imperativo categórico de levar a Boa Nova às Trevas e aos seus reféns. A americanização afigura-se, nesse sentido, uma espécie de Renascimento à escala planetária (e não já apenas ocidental), de que a globalização é só o penúltimo capítulo dum esforço entranhado e recorrente. Tentar explicar ou compreender esta aventura mirabolante em moldes estritamente racionais ou mesmo políticos revela-se duma precaridade confrangedora. O americanismo e a americanofilia não podem ser compreendidos sem a dimenção de crença paranóica, de fé religiosa que é, simultaneamente, o seu alicerce primordial e a sua força mística de combate.
Curiosamente, esta mesma mitologia, se bem que em moldes diversos, presidiu a outra peregrinação regeneradora, de promessas planetárias: a revolução bolchevique. Com o seu Homem Novo em trânsito para uma Nova-terra, paradisíaca e resgatada aos vícios e males do passado, materializa igualmente uma lógica protestante, de regenaração e ruptura histórica, de terraplenagem cultural e refundação cívica. Em ambos os modelos emerge essa novidade revolucionária -também ela essencialmente "protestante" -, da "redenção pelo trabalho". Quer dizer, o paraíso outrora perdido (quiçá, por causa da ociosidade) pode ser agora reconquistado através do labor humano - o Novo-Eden será necessariamente uma Humanofactura; assim o destinou Deus. Daí, naturalmente, germinam o culto da produção e a consagração da Indústria, como fórmulas de credo. Daí, igualmente, resulta a economia como Nova-teologia, a riqueza e o mercado como emanações Divinas (no caso americano), ou a mecanização e o plano científico como epifanias da Virtude (no caso soviético). Durante milénios, a espécie humana, nos intervalos da luta pela sobrevivência, entregou-se a sonhos e devaneios. Muitas vezes as coisas ficaram por aí, a pairar nesse limbo etéreo que tantas vezes tem a forma de meras palavras e a que chamamos, com algum desdém, utopia. Mas, subitamente, no século XX, em coacção ou reacção a esse fermento evangélico americanizante, amplificados e difundados numa profusão inaudita, como que as quimeras irromperam, à solta e em apoteose, pela realidade. No espaço de cem anos, o mundo cedeu o seu território a três utopias. Amargamente, em relação a duas delas, constatámos essa verdade de séculos, que só a amnésia treinada e inculcada sempre dissimula: o sonho hegemónico, uniformizante, quando desce à realidade revela o pesadelo que o anima e povoa. Se o mundo vai ou não despertar do terceiro, não sei. Afinal, os homens precisam de sonhos. Como diria Nietzsche, vale mais um mau sonho, que sonho nenhum (se bem que ele dissesse, em vez de sonho, "sentido" e este sonho não pareça ter sentido nenhum...)
Relembro apenas essa alegoria que Brand, em 1494, publicou, sob o título "A Nave dos Loucos". O enredo é simples e não de todo estranho: Num mundo às avessas, loucos, sem mapa nem bússula, embarcam, à deriva, em busca dos paraísos bem-aventurados. Como plano prévio exclusivo ao empreendimento está o comum acordo que irão de perigo em perigo, até soçobrarem finalmente em plena tempestade. Quem tenha dificuldade em imaginar, é só ir à janela. Ou ligar a televisão. De preferência à hora do telejornal.