Não raramente, aprende-se mais com as críticas do que com as apologias.
«É lastimável que V.M. herdasse um throno a cahir, mas a verdade é esta: elle está a cahir.
V.M. é muito novo, mas para o mundo que veio encontrar é velhíssimo. Tem dezanove annos e tem séculos. Veio tarde. Alguns annos, quinze, ou vinte mais cedo, a sua mocidade seria talvez a mocidade dos princípios. Os princípios envelheceram e não ha homem novo que salve princípios velhos. O legitimismo tem ao seu serviço verdadeiras primaveras e está morto. V.M. é uma primavera ao serviço do inverno liberal. A decrépita monarchia portugueza só invoca a seu favor a mocidade de V.M. É pouco. É nada.
Em virtude de que phenomenos sociaes e politicos se deu o lamentavel sucesso que estou verificando?
Vou dizê-lo a V.M.
A monarchia liberal, meu príncipe, morreu ao nascer. Foi muito festejada porque abriu as portas de algumas prisões e deslaçou o nó de algumas cordas de enforcado, além de que deu satisfação a alguns theoricos de má morte. Mais nada. Apenas entrou em funções, os portugueses voltaram-se contra ella e declararam-lhe uma guerra que só terminou vinte anos depois. Pela victoria? Não! Pela derrota. V.M. deve saber isto. A avó de V.M., a senhora D. Maria da Glória, só conseguiu obter a paz em Portugal, com o auxilio de armas estrangeiras.
Uma nação pacificada pela força das armas estrangeiras é uma nação morta. Não há a esperar d’ella senão os fructos da humilhação: o desanimo e o abatimento n’uns, o servilismo e a corrupção noutros. Foi o que nos succedeu. Na ocasião em que Portugal expirava viu-se de um lado Herculano chorando e do outro Rodrigo da Fonseca, rindo. O futuro é dos cynicos e por cynicos passou Portugal a ser governado até hoje. Cadáver abandonado é pertença de milhafres. Portugal foi esse cadáver abandonado. Os milhafres foram os seus governos.
Terminara o drama: começou a comedia: a comedia dos principios, mortos, a comedia dos partidos que já não tinham razão de ser, a comedia das luctas simuladas, a comedia das paixões fingidas. Essa comedia se representou durante os dois reinados do senhor D.Luiz e do senhor D.Carlos. Falsificou-se um Estado – caso novo na história – e falsificou-se tudo o que lhe dizia respeito. Falsificou-se uma opinião que não havia, falsificou-se uma imprensa e uma tribuna de governo e de oposição attribuindo-lhes antagonismos que não tinham, justificou-se a justiça com uma magistratura de compadres, falsificou-se a contabilidade pública, falsificaram-se orçamentos, falsificou-se a moeda.
Tudo foi simulado, tudo foi fingido. Uma só coisa era real – a ruina.
(...) Esta obra, entretanto, não produzia effeitos sobre um organismo extinto. O povo, é sempre o mesmo e é sempre outro. Constantemente se renova. Constantemente renasce. O Portugal da senhora D. Maria da Glória morreu; morreu com Herculano, com os Passos, com José Estevam e os Ribeira de Sabrosa, mas outro nasceu, filho d’esse, que, herdando as suas decepções, começou por fazer d’ellas o scepticismo bonacheirão que deu o Zé Povinho e acabou por as levar ao estado congestivo de revolta que deu o Buiça. Do Zé Povinho ao Buiça que longa estrada! O Zé Povinho era o chamado - povo indifferente, povo apathico, povo morto. Na realidade era o – Desprezo. Eram as urnas desertas, eram os cidadãos de mãos nos bolsos, encolhendo os ombros e dizendo que “tão bons eram uns como os outros”. Na realidade, era a nação recusando-se a collaborar na comedia. A ficção não era já uma ficção: era um escandalo cada vez mais clamoroso. A falsificação fazia-se a escancaras. Porque não? Porventura alguem a impedia? O povo ria. Dividia-se o paiz como piratas dividem o produto de um saque – bulhando. Os politicos tratavam-se reciprocamente de ladrões. O avô de V.M., o senhor D.Luiz, era accusado de os cubrir com o seu manto, accusação injusta porque o manto era pequeno e os ladrões eram muitos. Nada se salvava, nem as apparencias, e para quê? O povo ria, ria com as mãos nas ilhargas. Os políticos gabavam-n’o: Bom povo! Não ha melhor povo! E, com efeito, não havia. O povo não sabia o que era protestar e dava tudo o que lhe pediam: contribuições, soldados, victimas á Assistência Nacional aos Tuberculosos. Albarda, real senhor! Clamavam os pamphletarios. O povo deixava-se albardar. Era um jumento bom.
(...)
N’estes termos, a ditadura de João Franco não era já delle. Era aquella dictadura a que Victor Hugo chamava – do desconhecido. Na sua frente o que estava? Elle. Não sendo elle, o quê? A Republica? A Republica era o que estava para vir, porque João Franco, elle proprio, pozera este dilema ao paiz: Elle, ou Ella. Quer dizer, o paiz ou o seu arbitrio. O paiz tinha mais força.
V.M. dolorosamente sabe o que veio. Veio o Buiça.
Quem foi o Buiça?
O Buiça, meu príncipe, foi – a Fatalidade. Roubou-lhe um pae, roubou-lhe um irmão, e não lhe deu um throno – e eis-me aqui chegado ao ponto essencial d’esta carta.»
- João Chagas, “Cartas Políticas”
Quando um regime aceita falsificar-se, fatalmente acaba por aceitar ser remodelado: o sucedâneo preambula o substituto. Em tandem operativo, e por geminada fatalidade, quando um regime não se regenera naturalmente, promove e faculta a que o regenerem artificialmente.
O 5 de Outubro de 1910 e o 25 de Abril de 1974 representam isso mesmo: mais que uma mudança, o mero corolário duma decadência, o produto final duma falsificação. A monarquia liberal, como a Primavera Marcelista são já, em larga medida, seminários dos carnavais subsequentes, sendo que o próprio Caetano constitui, ad ovo, a “regeneração artificial” do salazarismo crepuscular. Isto, de resto, tem sido a sina de Portugal nos últimos duzentos anos: o ser palco de regimes estéreis, frouxos, baços, que, não raramente, se esgotam em onanismos autocráticos, donde germinam, raquíticas e por laboratorial obra e graça, turvocracias proveta, prometidas à ruína e ao descalabro. Por um lado, esta quase compulsão resulta duma vulnerabilidade nunca sanada à infecção externa, mas, por outro, radica na cedência arreigada ao parasitismo intestino, isto é, à debulha concertada das pseudo-elites de fachada e dos balconistas, amanuenses e moços de frete a armar ao escol. Dito em palavras simples: uma joint-venture pimpona entre a virose estrangeira e o lombriguismo nacinhal.
Donde me é permitido inferir que uma monarquia que acredita salvar-se degenerando numa "monarquia laica" é uma monarquia que não tem salvação. Não tem nem merece. E o país, por arrasto, também não. Se não restaurarmos as nossas raízes, acabaremos, se tanto, como lenha inerte a putrefazer-se, ou condenados ao triste e outonal destino de folhas dispersas e sopradas pelo vento... da história. Que é como quem diz, do fundilho dorsal das hegemonias ou impérios da moda. Exactamente o mesmo orifício estrepitante que os sacerdotes e acólitos oficiantes desta anti-civilização, por ritual esotérico, devoção sectária e peregrinação frenética, não se cansam de oscular.