Segundo o JN e de acordo com o INE,
«os portugueses auferem vencimentos inferiores, produzem menos e procuram menos o dentista do que os espanhóis, mas têm mais carros, comem mais batatas e recorrem mais ao telemóvel do que os vizinhos.»
Estava capaz de apostar que se instaurou uma convicção inexpugnável entre a malta: a de que quanto menos se fizer, melhor se vive. E a realidade, por estranho que pareça, até o confirma plenamente, ao fenómeno. Ter-se-á Portugal transformado num imenso Entroncamento? Abóboras gigantes não faltam, nabos descomunais também não, mas a coisa só espanta eventuais turistas e peregrinos de Fátima oriundos de outra galáxia. Para os aborígenes, entre os quais me incluo e barafusto, tudo isto é vulgaríssimo.
Por outro lado, a lógica das estatísticas tem muito que se lhe diga. Lá voltamos à velha história: Se eu comer dois frangos e Fulano de Tal se alambazar com dezoito, estatisticamente ambos comemos dez. Não há volta a dar-lhe. Da mesma forma, se dois espanhóis comerem, respectivamente, cinco e 11 frangos, a estatística atesta na perfeição que ambos comeram oito. Daí à conclusão que em Portugal se comem mais frangos que em Espanha é um instante.
Mas, como até um mongolóide com instrução rudimentar computará, afirmar que em Portugal se comem mais frangos que em Espanha é diferente de proclamar que os portugueses comem mais frangos que os espanhóis. Mistifica; porque, assim de chofre, induz que a generalidade dos portugueses come mais frango que a generalidade dos espanhóis. Pura fantasia, falácia de alto coturno! De facto, com rigor, o que deveria dizer-se era que alguns portugueses, eventualmente uma elite comilona, trinca mais que o escol equivalente do lado espanhol. E, já agora, abocanha muito mais que os portugueses que menos comem, quiçá a grande maioria dos lusos otários, sendo ainda que estes perdem também, por goleada, para os seus congéneres espanhóis – do lado de lá a frugalidade discreta, do lado de cá a anorexia forçada; e, regra geral, hereditária.
Transpondo, então, para o estudo em epígrafe, as deduções são óbvias: há portugueses que açambarcam empregos, cargos e mordomias. Esse é mesmo, se não me engano, um dos fundamentos do estado, da sociedade e da democracia. Mas mesmo que essa não fosse uma banalidade que salta à vista de qualquer transeunte não comatoso, as estatísticas demonstrá-lo-iam sem margem para dúvidas. Senão, atente-se:
Um tipo que tem vários cargos ou empregos, necessariamente tende a ter também igual número de carros, de amantes para passear nos carros, de viagens e mariscadas onde se refastelar com as/os amantes. É uma reacção em cadeia, pois é; ou efeito dominó, se preferirem. Concomitantemente, as férias, período essencial para tais folguedos, obedecem a matemáticas similares: se um gajo com um emprego, em regra, tem direito a vinte dias úteis de férias por ano, ou coisa que o valha, um outro mamífero que aufira de dois empregos tem direito a quarenta; e um papa-tachos de grande envergadura, com dez cargos/empregos em simultâneo e outros em
stand-by, goza, pelo menos, duzentos dias em cada ano, fora os feriados, domingos e baixas por doença fictícia. Quer dizer, um tipo com dez empregos, pura e simplesmente não trabalha nem produz. Ou seja, quanto mais cargos/empregos tem, menos faz. Sendo certo que quanto menos faz, melhor vive, mais considerado, condecorado e invejado é, o que nos recambia ao início desta prosa e ao fenómeno português. Entre nós só trabalha e produz alguma coisa quem não tem nada de inútil ou supérfluo para fazer.
Falando com franqueza, não sei se as viagens, o marisco e as amantes são abordados pelo estudo –melhor dizendo, não sei se são estatisticáveis -, mas, ainda que não sejam, são inerentes à função, estão implícitos: Os portugueses de escol adoram coleccionar cargos e empregos sobretudo para multiplicarem as férias, os almoços e as/os amantes, (bem como os carros, claro está, meio superlativo de exibirem o seu estatuto e atraírem clientela e candidaturas).
Postas estas dilucidações prévias, o que nos revela, concretamente, a estatística? Informa-nos, tão somente, que o açambarcamento é muito maior em Portugal do que em Espanha. O locupletanço, o venha-a-nós, o deita-a-unha campeia por cá duma forma bem mais vigorosa e exuberante. Até porque o açambarcador frenético constitui um polo dinamizador por excelência: ao aboletar-se com múltiplos cargos, mune-se implicitamente de múltiplas viagens, séquitos, residências, amantes e, como é evidente, carros para isso tudo - para cada cargo, para os familiares, os secretários, as amantes, os filhos das amantes, os pais, etc, etc. Assim, contado por alto, cada potentado destes promove, alimenta e renova constantemente toda uma frota, entre o GT e o Turbo-Diesel, fora os TT, as lanchas e as motas de água. É, não tenho qualquer dúvida, graças a eles que estamos à frente de Espanha no sector assaz estratégico da porchâmbulia, mercedâmbulia e demais ambulâncias invejáveis.
Mas não é só no sector motambulatório, por assim dizer, que estes taumaturgos arrasam. Também na improdutividade, como já anteriormente apontámos, o seu contributo é inestimável: ocupadíssimos, ainda e sempre, com as férias, as viagens, os almoços, as/os amantes e a condução da imensa frota, sobra-lhes pouco tempo para trabalhar e ainda menos para produzir o que quer que seja, tirando estas proezas estatísticas que tanto nos destacam e engrandecem. De resto, seria injusto, senão mesmo desumano, exigir-lhes mais.
É preciso não esquecer que, sendo eles o escol, a elite, a jet-seita, estabelecem também padrões, paradigmas orientadores, axiomas educativos de todos os outros, imensos, miméticos, que orbitam abaixo e em redor. Portanto, não é só pelo que fazem não fazendo que lhes deve ser atribuído elevado mérito, mas, além disso, pelo que estimulam e congregam os outros a fazer que fazem... e, com o beneplácito da Banca, a fazer que têm.
Que têm, primeiro que tudo, carro, naturalmente; depois,
tunning para o carro; em seguida, casa, mobília para a casa, bibelôs, carpetes, cortinados, electrodomésticos e hi-fis; finalmente, viagens a resorts tropicais ou estâncias de esqui e, eventualmente, caravanas ou barcos para atrelar ao carro. Tudo isto enquanto tiverem emprego.
Entretanto, à medida que aqueles que já têm múltiplos cargos e empregos açambarcam, por simpatia e sorvedouro, cada vez mais cargos e empregos, aqueles que têm apenas um, caso não consigam multiplicá-lo em tempo útil, tendem a resvalar para a insolvência (por sobre-endividamento) ou para o desemprego (por deslocalização). E aqui desponta o segundo pilar estruturante da improdutividade nacional. Com efeito, confinada à cada vez mais reduzida faixa entre o sobre-emprego e o desemprego, toda a produção assenta sobre os ombros dos mono-empregados que lutam desesperadamente por pagar todas as prestações mensais ao banco e, simultaneamente, por manter os cartões de crédito à tona, de modo a não morrerem por inanição simples. Se subtrairmos destes mono-empregados os funcionários do Estado entrincheirados que nem lapas no quadro permanente e na catalepsia funcional, sobra uma quantidade residual de efectivos laboriosos. Os resultados não podiam ser mais deslumbrantes: A produzir menos que nós, talvez Angola, onde os sobre-empregados são ainda mais açambarcadores e os desempregados ainda mais numerosos. E quem diz Angola, diz o geral da África negra, com a qual, pelos vistos, estamos em competição.
Quanto ao facto, também ele estatístico, de os portugueses irem menos ao dentista que os espanhóis, frutifica do mesmo encadeamento de causas e princípios. A elite dos sobre-empregados só vai ao dentista no estrangeiro (qualquer pretexto é um bom pretexto para viajar); os desempregados não têm dinheiro para ir ao dentista; e os mono-empregados pedem crédito ao banco para tratarem das cáries e, sobretudo, para mandarem aparelhar de andaimes ortopédicos a heteróclita dentuça da filharada. (Se bem que também se avistem por aí marmanjões e marmanjonas já feitos com a cremalheira enfeixada em idênticos propósitos...)
As batatas? São a guarnição do hamburguer.
Apenas o telemóvel constitui um caso à parte. Dos sobre-empregados aos desempregados, mono-empregados a até arrumadores toxicodependentes,
ubicou-se*. Tornou-se infestante, endémico, omnipresente. Já vigora, qual prótese nuclear, vitalícia, até nos enxovais. Antes mesmo de apresentarem a chucha ao recém-nascido, os papás subministram-lhe o telemóvel... recém-nascido, que digo eu?, ainda mal embrioneia na barriga materna e já o jovem casal discute
nokias e
motorollas. A sociologia, a psicologia, a psiquiatria, são exíguas para explicar este fenómeno -simultaneamente fetiche - nacional. Só mesmo quando a biogenética conseguir vasculhar os redutos mais profundos do luso-ADN e porventura descobrir um qualquer cromossoma T é que o mistério será desvendado. Por mim, aposto num cromossoma TT -tele-toino ou toto-toino -, e fico à espera que o futuro me dê razão. O presente, pelo menos, não me contradiz.
As estatísticas nunca mentem. É preciso é saber decifrá-las.