Um leitor não identificado, nem precisa, deixou-me aí abaixo um conjunto de questões pertinentes.
Vou tentar acudir-lhe na medida do possível.
Vamos por partes. Diz ele:
«O autor deste texto parece estar tão familiarizado com a teoria marxista, como aqueles a quem começou por lançar um aviso.
- Pela boca morre o peixe. Embora possua escamas, o dragão não pertence à ordem ictiomorfa.
«De facto, as várias questões "essenciais" que colocou revelam, antes de mais, que não compreendeu o essencial do chamado materialismo histórico e dialéctico. Porquê? Porque são questões que só têm sentido se se parte do pressuposto dualista que opõe mente e matéria, teoria e prática, sujeito e objecto, propriedade e trabalho.»
- No mínimo há sempre, não direi oposição, mas contraposição. E (pré)disposição. O próprio Marx teve que tomar como objecto a história, a economia do seu tempo, vários pensamentos antes do seu, etc. A não ser que tenha agido por revelação divina (ao belo estilo mosaico, hipótese que não afasto liminarmente, as barbas proféticas até o indiciam, mas enfim...). Que ele depois diga que não, que fornicou mas permaneceu virgem, ou que não coisou, foi apenas a realidade a coisar-se na sensibilidade dele, também posso admitir, embora não louvando. Por outro lado, dialéctica significa o quê? Foi buscar a chavão a Hegel que o foi buscar onde? À história (Heraclito, Platão, Aristóteles, Plotino, essa malta), eventualmente. A dialéctica estava onde na materialidade aos saltos? Nos ventos, nas marés, nos astros, na natureza irrequieta, por aí fora, onde é que se colhia a dialéctica concreta? "Dialéctica", sem querer alongar-me na casuística, é um conceito. Os conceitos, como todos sabemos, provêm da árvore dos Conceitos (a mesma, quiçá, cuja maçã, por dentada imprevidente dum antepassado nosso, causou toda esta confusão). Mas o Hegel, coitado, ainda dizia o "espírito" (em processo épico de auto-conhecimento, parafraseando Plotino); porém o Marx, aproveitando não sei que embalagem, miniaturizou: os homens concretos e históricos, em processo de auto-libertação. As classes acabarão por desaparecer, graças à providência histórico-dialéctica. A esta redução do cosmos hegeliano a uma Liliput onde o mini-homem é determinado pelo que come e caga, é aquilo que, eventualmente, o caro leitor (e os marxistas) chamam pomposamente "superação". Ao contrário da superação Nietzschiana que aponta para um indivíduo superior, esta superação à la Marx (menos imune a Kant do que (se) julga) despeja para um colectivo animal que, no fim da revolução proletária, doravante patrão das leis naturais, ascenderá finalmente a humano. Porque é que tudo acontecerá fatalmente assim? Simples: determinismo histórico (e económico). Dialéctica de conveniência, da loja dos trezentos, dirão as más línguas. Qualquer semelhança entre o colectivo de Marx e a espécie para Kant não é pura coincidência. Atavismos germanoides, se calhar...
«Ora, o fundamental da teoria marxista consiste na superação destas oposições, com raízes históricas, sociais e materiais/económicas, e por isso mesmo se denomina de dialéctica, de histórica e de materialista. O que está em causa na teoria marxista (e antes também em Hegel) é a passagem de uma concepção abstracta do que são os homens para uma concepção concreta, isto é, para uma concepção dinâmica e histórica da realidade e que não se abstrai do contexto sócio-económico em que os homens se fazem, se relacionam e pensam.»
- Já ficou esclarecido atrás. Superação e água benta, cada qual toma a que quer... Falta talvez referir que a "concepção concreta" é sempre "abstracta" na medida em que consiste num conjunto de conceitos, lógicas e pressupostos sobre determinada realidade (seja ela objectiva ou não). E não é porque se diz "já chega de interpretar o mundo, impõe-se agora transformá-lo", que se fica automaticamente mais concreto que qualquer outra teoria ética ou método de acção. Que o cristianismo, por exemplo. Abaixo a metafísica! Morte ao idealismo para-físico!, também não é especialmente concreto. É apenas uma opção de vida. Por exemplo como dizia aquela cantadeira, Ágata ou lá o que era: "sou pimba, mas tenho um mercedes!" Lá está, a materialidade é que interessa; que se auto-copulem considerações idealistas ou estéticas. Ou como me dizia a mim, como já aqui atrás referi, aquele pato-bravo endinheirado á pressão: "dispenso filosofias". O Marx também dispensou a filosofia toda para trás dele (excepto as peçazinhas de lego que lhe convinham), mas isso não significa, nem obriga (pelo menos, onde não há gulags compelitivos) que a filosofia se dispense de analisar o marxismo. O próprio realismo Aristotélico (ou Tomás de Aquino, passe a redundância; ou uma série de medievais dos quais, se quiser, passo receita) não eram menos concretos que Marx; e o Escoto Erígena dá dez a zero no concretismo do Hegel. E se quer histórias a sério do senhor e do escravo, classe dominante e dominada, então vamos ao mais concreto de todos: Sade. Marx, por conseguinte, em matéria de concreto, inventou a pólvora; ou arrombou uma porta escancarada. Desculpe lá se eu não debito os manuais, mas tenha paciência, além de defeito é feitio.
« Daí a famosa expressão marxista que afirma que "não é a consciência que determina a existência, mas a existência social que determina a consciência".»
- Muito bem referida esta parte. Não estou a ser irónico. Como, ergo cogito. Até porque mais que uma putativa constatação na realidade (que eu lhe desmonto em três tempo), isto elenca todo um programa de viagens. Destino? Vejamos na prática onde conduziu esta imposição da sociedade à consciência: purgas, gulags, hospitais psiquiátricos, etc. Repare, dispensa-se Deus, dispensa-se o espírito e dispensa-se a consciência - a lógica e o desenlace são óbvios. O colectivo concreto, de sentinela contra a abstracção retrógrada, desata a purificar-se dos indivíduos renitentes ao materialismo dialéctico e à história científica, ou seja, desata a dispensar uns quantos homens concretos. (Ah, mas já me esquecia, ainda não são homens: são apenas animais). Por outro lado, e nada despiciendo, esta subordinação da consciência ao colectivo social avançado gerou a fatal nemésis: os fascistas e os nazis sentiram-se não apenas no direito, mas no dever de conduzir os crentes comunistas a parques fechados de idêntica expiação colectiva.
«Frase esta que revela a tal inversão do idealismo absoluto hegeliano, que, se teve o mérito de mostrar a relatividade ou a historicidade dos pensamentos políticos, religiosos e filosóficos, não estabeleceu qualquer relação entre estes e os modos de produção que os acompanham ao longo do tempo ou história.»
- Não está apurado se Hegel mostrou, inventou ou imaginou a tal "relatividade" dos pensamentos políticos. Sem querer elencar dignos pensadores que se riram dele, apresento apenas o seguinte caso: o facto de haver relatividade entre alguns pensamentos políticos não implica necessariamente que haja em todos. Não é possivel, concretamente, apurar isso na história, porque a história política é uma falsificação da classe dominante, e o rol secular das formas e relações de produção não resiste às objecções de Hume à causalidade. Ou à moral daquela anedota de intuitos pedagógicos: um dia o galo, fazendo fé no seu historial da capoeira, está todo satisfeito que lhe vêm dar de comer e afinal vêm é cortar-lhe o pescoço. Ora, sabemos bem como entre as relações sociais e as pecuárias muitas vezes medeia um cabelo.
«Portanto, o essencial não está em o proletariado ser "melhor" ou mais "justo" que os capitalistas, pois o ser mais "justo" ou "melhor" quando especificados não deixam de ser conceitos ideológicos indesligáveis de um determinado modo de vida e existência social.»
- Essa objecção não colhe, embora eu perceba o seu ponto. No caso em questão eu coloco as questões que me interessam e que entendo colocar. A investigação é minha (argumento torpe de propriedade, eu sei), e verte sobre a praxis do marxismo. Mais que o pensamento de Marx, a questão que se demandava era a motivação e a persistência da crença nos nossos dias. O caro amigo, acha que a pergunta pelos valores éticos de uma teoria de acção não faz sentido, ou que em Marx não existe. Bem, eu entendo que não só existe, como atravessa todo o cenário. "Proletários de todo o mundo, uni-vos!", não é alucinação minha, pois não? Ou então, há fases de médico e de monstro: de dia o economista-político; à noite o propagandista sectário. Repare ainda na seguinte hipótese construtiva: por um qualquer milagres celeste, de repente todas as pessoas do mundo acordavam transformadas em pequeno-burgueses remediados (o sonho do nosso PCP, em suma)... a teoria Marxista ia para o desemprego. Portanto, existe sim a questão da "superioridade" proletária: porque no processo evolutivo histórico, eles são o estágio mais avançado. São, por assim dizer, a classe em estado interessante, fértil...
« Como mais tarde dirá Nietzsche (sob outro ângulo de análise) o ser bom para o pensamento grego (pré-platónico) identificava-se como o ser belo e forte, com valores aristocráticos, mas com a moral dos escravos cristã passou a identificar-se com a compaixão e o amor, o que revela a tal relatividade dos valores. Ora, no caso da teoria marxista o comunismo é melhor que o capitalismo por uma simples razão: porque, de acordo com a sua teorização da alienação, no comunismo os homens deixam de viver platónicamente em dois mundos, ou seja, dá-se uma identidade entre aquilo que os homens são e a forma com se concebem, e nessa medida deixa de existir oposição entre a praxis e a teoria, o sujeito e o objecto, etc, etc.»
- De Nietsche não percebo nada. Mas por causa dele não gostar nada da relatividade é que se propunha criar uns valores de categoria superior e mais duráveis. Não sei, ouvi dizer. Quanto a esse estado ideal do Fim dos Tempos marxista, sejamos concretos: enquanto não o virmos, em toda a sua pujança na materialidade concreta, não nos poderemos deslumbrar. Nem tão pouco aceitar (como séria) essa tal superioridade (quer dizer, superação) do comunismo sobre o capitalismo (escarro, cuspo e imprecação!). Por enquanto ainda estamos na revolução capitalista, e os marxistas estão poisados no parlamento. Quanto aos freudo-marxistas e outras beldades da escola de Frankfurt, estão ainda na ressaca do maio 68. Aguardemos que acordem. E se no comunismo, como assevera, "o que os homens são coincide com a forma como se concebem", isso significará, suspeito bem, que é banida a imaginação. O que, convenhamos, ultrapassa Platão a todo o galope, pois este só proscrevia os poetas da república. E fico para aqui a matutar como raio se instala num homem concreto um cinto de castidade contra a imaginação...
«Depois convém não esquecer que para Marx o fim da História não consiste num Estado governado por qualquer vanguarda ideológica, até porque isso seria a negação da sua teoria materialista que considera o Estado como uma objectivação dos interesses da classe que detém o poder. Por isso o fim da História só pode ser o fim do Estado, que reflectiria o fim das diferenças entre classes, o fim das oposições ao nivel das relações económicas.»
- Exactamente. É isso mesmo. Não esqueço e corroboro a sua óptima descrição da coisa. Essa é a parte idealista da teoria de Marx. Aquilo que eu taxei no postal de "utopia científica". Sem ofensa.
«E, nesta medida, a analogia feita entre um formigueiro ou uma colmeia e a sociedade marxista está mal feita, pois naqueles há sempre uma rainha para a qual trabalham as operárias (por assim dizer), o que até é mais parecido com a sociedade medieval ou feudal, constituida por um rei, senhores e servos da gleba.»
- Aqui, o meu caro amigo (como disse um excelente professor meu, em tempos e que saudades!) tresleu. Se voltar a ler com atenção, eu referi que a função do formigueiro (o tal colectivo) é construir o paraíso. E foi isso que constatámos na praxis concreta dos marxistas ao longo da dialéctica histórica dos últimos cento e tal anos. Primeiro, recua-se a formigueiro, que é para tomar balanço para a sociedade parangélica. Depois salta-se em bloco para o éden humano. Parece que não tomaram foi suficente balanço. É claro que a sociedade ideal marxista não é um formigueiro (como me diziam os jovens marxistas dos meus tempos de jovem anarca - "eh, pá: tu és anarca por princípio, nós só somos lá no fim!). Anarquistas platónicos, enfim. O caso é que o formigueiro (com o rainho - o feminismo é só pra exportação - e nomenklatura) foi apenas uma contingência concreta na história, uma contrariedade, um percalço, por assim dizer. Quanto à sociedade feudal, devo dizer-lhe que a prefiro em relação à capitalista. Como mantenho ainda uma costela anarca, aprecio a boa ordem. Para ter algo contra o qual me rebelar, paradoxalmente. No meio do caos e da balbúrdia, um gajo rebela-se contra quê? Agora são todos escravos. Já não há senhores. Só escravos: Uns de outros escravos ainda maiores que eles, e todos de coisas, nadas e maquinices. E do diabo que preside à metafísica.
«Enfim, o grande erro de análise do autor deste texto consiste em olhar para a teoria marxista como uma teoria que se opõe à prática e que não resulta no terreno, quando o que está subjacente na teoria de Marx é o contrário: a indissociabilidade da existência prática e do pensamento teórico.»
- Grandes erros é comigo. Nada de niquices ou nanufos. Não obstante, desculpar-me-á, mas eu estive sobremaneira a olhar para a praxis marxista e não tanto para a teroria (que referi mais como entrada do que como prato principal). E a teoria - infelizmente, dirá - tem manifestado uma concretização nada recomendável. A praxis tem andado a trair a teoria? Mas se, como o caro amigo nos garante, não há dissociabilidade entre a teoria e a prática, então a teoria ter-se-á andado a trair a si própria? Pode um onanista praticar adultério?
Deixo-o com mais esta questão essencial. Não leve a mal o tom pouco académico, mas nesta vida, e no estado a que isto chegou, se não levamos a coisa com um certo humor,. ainda nos desaba alguma dialéctica nos costados.
E nada a obstar à correcção da sua apresentação da teoria.