quarta-feira, janeiro 31, 2024

O Bom Selvagem, ou Rousseau e a Esquerda

 



Foi trasladado para o Panteão Nacional de França durante a Revolução.  Foi, estou em crer, o espírito guia de Robespierre. Foi considerado um dos patronos espirituais da Revolução. A sua "vontage geral" serviu de modelo, em grande parte, ao imperativo categórico kantiano. É, ainda hoje, um dos santinhos de pau carunchoso da Esquerda. É, ainda hoje, um dos grandes fetiches inspiradores da "educação". E, sim, caros leitores, é o autor mistério do postal anterior:

   Jean-Jacques Rousseau

Na sua famosa obra "O Contrato Social". E notem que eu apenas citei um pequeno número de teses pouco abonatórias para aqueles que o reclamam como baluarte. São abundantes. Percebe-se até porque é que a generalidade dos iluministas, a culminar em Voltaire, o detestavam. 

Na gravura em epígrafe, em forma de alegoria, encontramos - figurado na culinária indígena - Rousseau; e - figurado nos palhaços cativos e intragáveis - a esquerda contemporânea. Aliás, eu nem me dignei citar as posições altamente anti-feministas do Jean-Jacques, por piedade. Não tarda, vão despejá-lo do panteão; os wokes e os liberais, passe a redundância.


E mais não digo. Vamos falar mais dele a propósito da Revolução, naquela série em exibição actual neste blogue. Mas vamos falar a fundo...

Adivinhe o Autor e ganhe uma Viagem a Lapúcia (em voo FAP)

 



Um desafio à perspicácia dos leitores do Dragoscópio. Quem escreveu as citações que se seguem (a negritado) acompanhadas de comentários meus (para agravar o delito)?... 

Aposto que ninguém adivinha  (não vale ir ao google). Mas leiam com atenção, que vale a pena. Uma pequena ajuda: não é Hayek, nem Hobbes, nem Hitler.


«A tomar o termo em rigor da acepção, nunca existiu verdadeira democracia nem nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e que o pequeno seja governado .(...) Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e agitações intestinas como o democrático ou popular, porque não há nenhum que tenda tão forte e continuamente para mudar de forma (...) «Se houvesse um povo de deuses, governar-se-iam democraticamente. Um governo tão perfeito não convém a homens.» (...)

- Contra-natura e inclinada à zaragata, à peixeirada, a democracia  é, segundo o autor, uma pura e insanável utopia. Até porque, geralmente, tal qual, por exemplo, os últimos 50 anos da nossa história documentam, em nome duma putativa "democracia abstracta (de conto do vigário representativo)", perpetra-se, na realidade, uma cacocracia (o governo pelos piores), cada vez mais baixa e medíocre, que invade e infecta a sociedade a todos os níveis. Centrada num parasitismo estatal segregado a partir duma partidarite devoradora.

«Dado que a liberdade não é um fruto de todos os climas, ela não está ao alcance de todos os povos. (...) Quanto mais se contesta esse princípio, tanto mais se lhe dão novas oportunidades de ser comprovado. Em todos os governos do mundo, a pessoa pública consome e nada produz. Donde lhe vem então a substância  consumida? Do trabalho dos cidadãos. É o supérfluo dos particulares que produz o necessário do público. Donde se segue que o estado civil não pode subsistir senão enquanto o trabalho  dos homens produz  além das suas próprias necessidades.»

- Segundo o autor,  não só a liberdade não é o suco duma panaceia universal (como querem fazer crer os demo-fundamentalistas do momento), como a existência efectiva e funcional dum Estado Civil depende da disponibilidade económica da própria sociedade civil. O Estado é supérfluo,  por definição.

«Por outro lado, nem todos os governos têm a mesma natureza; há-os mais ou menos devoradores, e as diferenças fundam-se neste outro princípio de que quanto mais as contribuições públicas se afastarem da sua fonte mais pesadas se tornam. Não é a partir da quantidade de imposições que se deve medir este encargo, mas no caminho que elas têm de percorrer para voltarem para as mãos de quem saíram; quando esta circulação está completada e bem estabelecida, pouco importa que se pague pouco ou muito: o povo é sempre rico e as finanças estão sempre bem. Pelo contrário, mesmo que o povo dê pouco, quando este pouco não reverte em seu proveito, pelo facto de dar constantemente, em breve se esgotará; o Estado nunca é rico e o povo é sempre miserável. (...) A monarquia, portanto, só convém às nações opulentas, a Aristocracia aos estados medíocres, quer em riqueza, quer em grandeza, a democracia aos estados pequenos e pobres.(...)»

- Quanto menor o excedente orçamental, digamos assim, menor a capacidade de sustentar um estado forte. Assim, a força deste é proporcional, de certa forma, à grandeza e riqueza da nação. Ora a debilidade do estado, tanto quanto a pequenez da nação, suscitam a democracia. Neste sentido, após 50 anos, o Retângulo, pequeno e pobre, está cada vez mais pobre e com um estado cada vez mais impotente e ineficaz, mas apenas devorista. Na maior parte do tempo, por isso mesmo, nem sequer dispôs (ou dispõe) dum estado soberano, mas apenas duma comissão de gestão, ou liquidatária, se quisermos entrar em rigores.

«O povo inglês pensa que é livre; está muito enganado, só o é durante as eleições dos membros do Parlamento; logo que eles estão eleitos, é escravo, não é nada. Nos curtos momentos da sua liberdade, o uso que dela faz merece bem que a perca.(...) Em qualquer circunstância, no instante em que um povo se entrega a representantes, já não é livre; deixa de existir.»

- A democracia representativa não realiza qualquer tipo de liberdade digna desse nome, segundo o autor. Não passa dum completo embuste.

«Segue-se daqui que a censura pode ser útil para conservar os costumes, nunca para os restabelecer. Instituí censores enquanto as leis têm vigor; logo que elas o perderem, deixa de haver remédio possível; tudo o que é legítimo deixa de ter força quando as leis já não a têm.»

- Segundo o autor, a censura é, simultaneamente,  um coadjuvante e uma manifestação da saúde  ética e legal da nação.


Portanto, leitores, renovo o repto: quem foi o proto-fascista que escreveu tudo isto (e na mesma obra, por sinal)?...



terça-feira, janeiro 30, 2024

A Concentração Judite do Funchal

 



Arrisco alvitrar que começo a perceber, se bem que ainda um tanto ou quanto difusamente, qual o motivo altamente operacional que levou toda aquela expedição armada à Madeira, em frete (ou charter?) da Fraqueza Aérea. 

Após breve consulta, debelei a minha dúvida inicial: sim, existe um departamento da polícia judiciária na Ilha  jardim. E tem uma sede e tudo, num edifício todo bem aparelhado (suponho), onde nem sequer chove como, por exemplo, no Museu de Arte Antiga. Basta consultar a página da PJ: Departamento de Investigação Criminal da Madeira – Polícia Judiciária (policiajudiciaria.pt)

Portanto, se existe, das duas uma: ou não são de confiança; ou são escassos para despachar o volume - autêntica avalanche - de indícios e ilícitos de índole corruptiva naquele pequeno território insular.  Logo à partida, isto é problemático. Se a esmagadora maioria é corrupta - entre corruptores, corrompidos, acólitos, estagiários, candidatos, coristas e assistentes - então deixa de ser crime: é costume. Se é costume devém direito de facto; o de jure é logo a seguir. Portanto, agora, das três uma: ou o corpo expedicionário foi proceder à evacuação dos seus colegas da Madeira, em sério risco de ficarem moralmente submersos; ou foi, em força e aparato, perpetuar o colonialismo jurídico do Continente (o que, só de raspão, pode ocasionar alguns onerosos processos de indemnização ao Estado rectangulês, por parte do Pingo Doce ou do grupo Auchan, entre outros); ou, hipótese mais arrepiante ainda, foi cometer um holo... digo, genocídio processual e galfarro  sobre a população excessivamente descontraída (ou libertina?) da singular ilha.

Há ainda uma quarta hipótese. Se calhar, até a mais plausível... E reconhece-se logo na abertura do site da PJ, quando, em Espaço Institucional, abrimos o atalho (link, em barbarês) para Unidades Orgânicas: se repararem com atenção constatam logo acima Direcção Central, à direita Unidades Centrais de Investigação Criminal; e, logo abaixo, as... prestem atenção e soletrem devagarinho: Unidades Orgânicas Desconcentradas de Investigação Criminal.

Ora, o Departamento de Investigação Criminal da Madeira é uma dessas Unidades Desconcentradas.

O que, eventualmente, explica todo o alvoroço e emergência: falta-lhes concentração, foco, baliza... em suma, não se concentram devidamente na pesquisa e investigação prioritárias (a do mar de prevaricantes).  Dispersam muito a atenção, andam muito distraídos, sabe-se lá, com o oceano Atlântico -  redes internacionais de prevaricadores à vela; tráficos diversos e avulsos, nomeadamente de pimba caribenho em paquetes de cruzeiro gay; denúncias de desembarques anti-género e de activistas diesel pró-apocalipse em turbo-tunning, submarinos russos em voyeurismo lavagante, iates de falsificadores de cocaína, burlões por drone e balão, nudismos antissemitas, enfim, entretenimento não falta. Ora, os do Continente, que são concentrados por natureza e organigrama (e devidamente enquadrados por diáconos e curandeiros do Ministério Púdico), foram lá recambiá-los à concentração. E isto, para efeito desse novo desígnio nacinhal, o Turismo, é de crucial e estratégica importância: Já tínhamos a Concentração Motard no Algarve; temos agora, além do fogo de artifício, a Concentração Judite no Funchal (também aberta a magistrados e outros espíritas de cabedal). O que, por falar nisso, até dava um bom nome de baptismo toino para um ciclone em digressão: o ciclone Judite da Madeira... (Sem limite de velocidade, desde que ligada a sirene e o pirilampo azul). Horror!, vão dar cabo dos bananais. Mas ao menos, rapazes, tende piedade das anoneiras!...


PS: Outra coisa que me preocupa: com todos estes palhadinos da lei e da justiça de férias, digo, em deslocação com ajudas de custo, na Madeira, quem sobra para enfrentar a terrível e tentacular Máfia Bengali, na Mouraria?... 

segunda-feira, janeiro 29, 2024

A Expressão contra a opressão


E já está aí, em forma de lei. Mais uma usurpação da instância familiar pelo "estado absoluto". Ora, anotem bem:


Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro


 «Artigo 176.º-C

Atos contrários à orientação sexual, identidade ou expressão de género

1 - Quem submeter outra pessoa a atos que visem a alteração ou repressão da sua orientação sexual, identidade ou expressão de género, incluindo a realização ou promoção de procedimentos médico-cirúrgicos, práticas com recursos farmacológicos, psicoterapêuticos ou outros de caráter psicológico ou comportamental, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, não são puníveis os procedimentos aplicados no contexto da autodeterminação da identidade e expressão de género, conforme estabelecido nos artigos 3.º e 5.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, e que forem levados a cabo de acordo com as leges artis.

3 - Quem, no âmbito das condutas descritas no n.º 1, desenvolva tratamentos ou pratique intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações irreversíveis ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

4 - A tentativa é punível.»







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Enfim, é todo um execrável mundo novo.







Registem mais um requinte catita ao nível do léxico destas bestas: a expressão contra a opressão.  Se bem que no fundo é a velha questão da vertigem atomizante: a zaragata social (marxista), tanto quanto a zaragata sexual (freudo-marxista via Frankfurt), terminam pelo ralo da pura mixórdia. Que, para todos os efeitos, vale como o "fim da História": a mixordização absoluta. 










PS: Começo a achar que a involução para macacos raia o excesso optimista. É mesmo para hienas, a fazer fé nestes reformistas celerados.














domingo, janeiro 28, 2024

Ruínas à beira-mar plantadas



Escuto por aí, em comentários avulsos, nas mais diversas cloacas de notícias, o mantra recorrente da "justiça como um pilar da nossa democracia". Não sabia que o entulho também tinha pilares. Mas, enfim, suponho que os outros três sejam, deixem-me adivinhar: os partidos, os mass-media e a banca. Portanto, não temos uma  forma de governo, mas sim uma contradição em termos.

Em todo o caso, coloquei a questão ao meu mestre. Respondeu-me, entre o pragmático e o sibilino: "Discípulo, todo o templo tem pilares. Esse de que me falas não foge há regra. Possui-os, não duvides: mas são muito baixos... baixinhos...minúsculos. Debalde os vislumbrarás com o entendimento, só mesmo com a imaginação!»


sexta-feira, janeiro 26, 2024

Anabismotomia da Revolução - 5. Do Fundamento ao a-fundamento (antifundamento)




 De modo a melhor entender o que se segue, não perdem nada em ler, como introdução, este postal de 2008: "Palavras com raiz - Regra."

Uma das grandes tragédia de Sofocles, e um dos grandes textos da nossa cultura, versa o confronto entre a lei da cidade e a regra divina. Ou dito em termos de justiça: aquilo que a pretende e aquilo que a fundamenta. Por outro lado, as leis da cidade, bem como a justiça a elas inerente, varia com as próprias flutuações históricas (políticas, económicas, sociais) da polis. Todavia, aquilo que a fundamenta, não: permanece e perdura enquanto houver cidade, ou memória dela. Antígona (é esse o título da tragédia) versa sobre esse valor superior, porque mais profundo, determinante e precedente, que é a regra. E afirma uma verdade insofismável e eterna: uma lei que não observe, que não respeite, que atente contra essa validação fundamental, superior, presidente, manifesta uma justiça não legitimada, uma autoridade ilícita, falsa, meramente opressora. Ou seja,  conformando não uma justiça, mas uma injustiça.

Este predomínio do fundamento - a arqhé - (numa analogia actual para melhor compreensão: da arquitectura sobre o edifício) é o que sobremaneira se traduz no termo "hierarquia" - que significa "consagração do fundamento". É isso que na antiguidade, como ainda na Idade Média, reflecte toda e qualquer construção legal: O Divino como zénite e fonte da hierarquia, isto é, Deus antes e acima. Tudo Dele e Ele acima de tudo; as monarquias na terra como concessionárias e réplicas da monarquia celeste.  De resto,  o Olimpo é uma monarquia, tanto quanto o cristianismo o é. Aliás, seguramente, não foi ao judaísmo que os cristãos foram buscar a ideia de "Deus Pai", ou, posteriormente, o Cristo Rex. Mas o fundamento, desde a antiguidade, cuja excelência reside no divino, possui também um carácter duplo: o divino e os heróis fundadores humanos, raiz primordial e principal da existência da própria cidade. Foram eles, sob os auspícios divinos (ou a Graça de Deus, como dirão os medievais), que a fundaram e é deles que provém a génese e o poder  ser enquanto expressão do exercício da justiça, da autoridade, do significado e duma história. A cidade, como o cosmos, é um organismo vivo, cuja nobreza superlativa coincide com o seu nascimento. Assim, o genos (a estirpe) e a dynasteia (a potência) manifestam, enquanto história, enquanto caminho, trajecto e projecto comunitário, esse actualizar permanente do acontecimento fundador. O significado do divino e dos fundadores traduz esse continuado permanecer e perdurar duma raiz que sustenta, nutre e revigora. (Veremos adiante, num próximo capítulo, como o fito visceral da revolução é "erradicar" - isto é, arrancar pela raiz - as fundações da cidade. Passa-se assim da cidade fundada, terrena, para a cidade flutuante, voadora, aérea, da distopia).

Pois bem, se retirarmos o divino do sistema, teremos qualquer coisa como o esquecimento e apagamento da "arché", e a sua falsificação/substituição pela "techne´" - o artificial.  A lei deixa de estar precedida e submetida a uma regra perene e imutável.  Doravente, auto-funda-se, isto é, começa por estabelecer o seu próprio fundamento artificial (uma constituição, por exemplo), e é simultaneamente lei e regra, mudando e "evoluindo" ao sabor das as modas, volúpias e caprichos dos mandarins da cidade, ou civinautas. É um facto que deixa de haver possibilidade de conflito entre a regra e a lei, porque deixam de existir planos diferente de justiça. E não tendo o plano inferior de responder ou respeitar quesitos acima, antes e fora dele, pura e simplesmente, desregula e regula conforme lhe apetece.  Por um lado exorbita, por outro disparata. Deixa de haver autoridade legítima, mas apenas autoritarismo;  deixa de acontecer justiça, mas apenas uma forma mais ou menos grave  de injustiça.  A techné de que se servem o falsificadores, tiranetes e creontes de serviço à mixordeira legal tem agora o nome solene de "ciência do Direito".  O esquema redutor da polis que serve de abrigo a todas estas tranquibérnias e parlapatices responde pelo pomposo epiteto de "estado".  Que o seu último grito (grunhido ou guincho, vá-se lá saber) se autoproclame "estado de direito" diz tudo acerca da peça.  Significa que o estado se arroga fundamento, seguimento, estabelecimento e acabamento de si mesmo.  Ou seja, que o autoritarismo está a atingir o seu êxtase: o totalitarismo. E que a injustiça está a alcançar o seu extremo: os  fundilhos da aberração. 

Seria fácil, de tão ostensivo e evidente, apresentar exemplos práticos actuais de tudo isto, sobretudo entre as novas legislações woke, os mil e um decretos sanitarizantes e securitários, os climo-códigos apocalípticos,  previamente os desconstrutivismos ocidentais, a panóplia holocáustica, etc, etc.  Tudo isso vertido em letra de lei mosaica, numa verdadeira orquestração de sargeta global a que eu costumo taxar de "oxidente".  Mas o problema é que a coisa já vem com o balanço e a embalagem de séculos, não apenas contínuos, mas também numa espécie de cronofacção quântica, de aleação, flashback, e saltos.

O que transportou a este "estado de coisas" foi, em larga medida, aquilo que conduziu à Revolução Francesa. Esta funcionou como uma espécie de ventoinha para todo esse excremento pseudo-redentor do mundo, obra  industrial dum exército remeloso e mirmitónico de reformadores de vão de escada, visionários de piaçaba e proxenetas da virtude, todos eles, sem excepção, almocreves e amoladores da salvação de pechisbeque ao domicílio para autómatos acéfalos, porno-puritanos e danados militantes. A salvação do povo pelos representantes do povo.  As juntas e os tribunais de salvação nacional, pública, cívica. Auto-fundação e auto-digestão... Em suma, todo um pseudo-fundamento: um povo a quem se cortou previamente a cabeça e espoliou da alma. Um povo que, de ora em diante, já não tinha justiça alguma a quem recorrer, nem a do Rei, nem a de Deus. Nem neste mundo nem no Outro. Que se via, sem apelo nem recurso, remetido a caos, matéria, ruído, vazio, agonia, exaspero puro, de mera vítima ou cúmplice do Libertino-rex, do sado-sacerdote ou ministro de plantão presidencial ao açougue. Num certo sentido, é uma refundação ao Caos e é uma refundação ao puro e neo-verbo de... encher.  Mas, de facto, é como dizer que o fundamento doravante é a matéria. Que é o mesmo que proclamar que é tudo e coisa nenhuma, ou seja, é o que for. Ninguém se espante: os representantes do povo emergiram no mesmo instante, e do mesmo veneno dissolvente, em que o povo deixou de ser um povo e passou a ser uma massa amorfa em fermentação automática e destino efervescente.

Só que a destruição também segue um método, também cumpre uma lógica. Pode ser o avesso, geralmente é o contrário, a adversão tanto quanto a aversão, mas um par-odos, não obstante. O fio de Ariadne que permite escapar ao labirinto também pode servir para  voltar para dentro dele. Só que, desta vez, precisamente, para queimar e refundir o fio, apagando a memória e liquidando qualquer hipótese de regresso. É preciso voltar para reanimar a Besta. E adorá-la em banquete. Simpósio, como diziam os gregos.  

O Rei, como o Papa, não valia por aquilo que era enquanto mera e humana existência. Houve Reis bons e Reis maus, Papas bons e Papas péssimos, enquanto humanos que eram e foram. A sua essência todavia estava acima da sua mera existência física: antecedia-os e superava-os. Aquilo de que eram símbolo e representavam verdadeiramente estava antes deles e prosseguia depois e para lá deles. Corporizavam um vínculo a algo acima que os subordinava enquanto poder temporal e poder espiritual - a verdadeira separação de poderes, como vertido das próprias palavras de Cristo: "A Deus o que é de Deus, a César o que é de César". O trono e a coroa régios, a cadeira e as chaves papais transcendem a mera pessoa do rei ou do pontífice. São eles o príncipes, quer dizer, os primeiros e os principais de todos nós a cumprir em nome de todos nós um dever e uma obrigação, estes sim, soberanos. Porque, na realidade, há uma dupla representação no Papa, como no Rei: aquele representa Deus sobre toda a Igreja, tanto quanto a Igreja perante Deus; o Rei representa Deus sobre o reino e os súbditos perante Deus. Por muito mau que seja o representante, o representado e a representação não desaparecem nem diminuem. São eternos e superiores a tudo isso. Pretender o contrário equivale a imaginar que se faz desaparecer a mensagem porque se  mata ou menoscaba o mensageiro.

A ideia da morte de Deus é tão frívola quanto inútil. Se O matámos por via da Revolução não estávamos a ser nada originais: já O tínhamos morto antes, na cruz, rodeado da mesma saliva, alarvidade e peçonha. A preferência ululante por barrabazes e borra botas mentais também não foi nova. Poderemos até matá-Lo todos os dias, tanto quanto proclamar a nossa soberba napoleónica em cada novo mundo transformado em hospício. Não diminui nem altera nada daquilo que é eterno e soberano. Tem quase infinitas voltas, o labirinto; mas apenas uma entrada e saída. Não importa o quão afastado -ab-ratio - nos projectemos, o quão para longe fujamos para nos espojarmos na imundície. Podemos até apagar todos os símbolos e, no fundo, aquilo que verdadeiramente somos junto com eles. A Eternidade tem todo o tempo do mundo e a salvação, bem vistas as coisas, consiste simplesmente em não nos perdermos. Em não seguirmos o canto das sereias, as tentações do deserto ou os flautistas da revolução.

O que a ciência moderna, os enciclopedistas e todo o racionalismo exacerbado e antroponanista que, desde as entranhas da idade média até ao vulcão dos iluminados, porfiaram, com insídia metódica, foi o ataque à hierarquia cósmica, fundada na Terra e apontada ao Céu. Em nome duma terraplenagem tecno-eficiente, sustentada no dinheiro, apontada ao império do deus da morte e encetada por uma não-classe, de párias, réprobos e resgatados à sordícia medieval, agora metidos a vanguarda imarcescível da panturra demiúrgica, em perpétua feira e fétida romaria pelo enxurdeiro dos séculos. Plutocracia, ou o triunfo das pseudarquias.

Da ascensão desta não-classe, bem como da sua metamorfose em pantaclasse (ou classe única) -neonobreza (financeira), neoclero (científico) e neopovo (publicitário), é o que trataremos de seguida. 


PS: Não deixa, entretanto, de ser curioso que também a cultura dita judaica, já lá vão uns séculos, passou dum tempo de fundamentação divina (de acordo às regras básicas da Torah), para uma época, que dura até aos dias de hoje, de rabinização jurídica e pseudo-fundação legal (sob controle apertado e hermético dos técnicos e psicomassagistas do Talmude). Na Europa, a partir da Revolução, ocorre, se calhar não apenas por analogia, uma "rabinização" da justiça,  cedendo, as regras ancestrais, lugar a um talmudismo laico e balalaico, de que a declaração universal dos direitos do homenzinho constitui marco particularmente fariseu.


quinta-feira, janeiro 25, 2024

Turismo judicial?




 Quando já não se percebe muito bem onde acaba a investigação e começa o turismo.

Presume-se que esta gente viajou gratuitamente, com alojamento e estadia em hotel, três refeições e piscina,  para uma temporada magna (que a fazer fé na usual lerdice das autoridades de justiça, será coisa, no mínimo, para duas semanas, senão mesmo um mês. Ou dois.).

Se adicionarmos ao batalhão de esbirros paraquedistas (entre magistrudos, inspectantes e amanuenses), o enxame prévio de jornalixas e alcoviteiros profissionais com que aqueles, invariavelmente, se recheiam e fazem escoltar, não é difícil adivinhar o clima de festa que neste momento se vive entre os empresários hoteleiros da Pérola do Atlântico.  Subitamente, já é época alta na época baixa. Ou o carnaval chegou mais cedo. Tudo a bem da democracia, pois claro.  Que, entretanto, assinale-se, já passou da separação de poderes ao divórcio conflituoso, com peixeirada e violência doméstica na praça pública. Por outro lado, para os corruptos do poder executivo, isto dos caça-gambozinos do poder judicial requisitarem aparelhos da Força Aérea para efeitos de operação em forma de raid a Entebe não deve ser nada tranquilizador. Qualquer dia, nos raides continentais, ninguém lhes garante que não passem a usar blindados e auto-metrelhadoras. Sempre pensei que isto da democracia, a resfolegar civis e paisanos fofinhos, fosse uma coisa bem mais pacífica e choninhas. Confesso e dou a mão à palmatória: isto começa a ficar interessante. Aguardo, com expectativa, uma série da netflix, no mínimo.

Já o contribuinte, esse, entre ir sujando a vista de cima com aquilo que nem para limpar a vista de baixo se recomendaria (entenda-se, jornais e revistas), lá vai, igualmente resignado,, entre dichotes e manguitos, pagando a corrupção de uns, real e imaginária, e o turismo judicial de outros, com pernoita e bar aberto.

Lembram-se daquele queixume crónico e generalizado entre os rectanguleses, seja qual for o serviço, da "falta de meios"? Estou cada vez mais convencido que o que invariavelmente revela, de quem o protagoniza, não é essa falta: é a de princípios. E fins.  Princípios, enquanto indivíduos; fim, enquanto espécies. A bandalheira, por exemplo, neste retângulo, já beira o infinito.

Para terminar, sugiro que passem a definir o "regime" como tendo evoluído para um grau superior de civilizacinha: de estado de direito para Estadia em hotel de direito.

segunda-feira, janeiro 22, 2024

Anabismotomia da revolução - 4. O poço dos heterozelos


Heterozelo  significa  Parcialidade. De "hetero" - outrocontrário, oposto; e zelos - ebulição, zelo, ardor, inveja.

Da parcialidade resultam vários fenómenos: o partido, a partidarite, o partidário, por exemplo, só para citar alguns casos decorrentes da revolução. Em França, como na Rússia, como em Portugal. A fórmula mais conhecida e, ainda hoje, operante dessa fenomenologia chama-se "direita" e "esquerda", isto é, uma mundovisão horizontal e rasurante da política. O edifício reduzido ao rés-do-chão. Eufemismo para entulho.

Filosofia é uma palavra grega e a sua essência também. E não pode ser desligada dum veículo seu determinante: a própria Língua Grega. Ora, nesta acontece um fenómeno muito curioso e significativo: as palavras são, não raro, polissemânticas - ambivalentes e ambíguas. O exemplo sugestivo que costumo citar: pharmacon - significa remédio, mas também significa veneno. Idea, de igual modo, significa ideia (forma do pensamento), mas também aparência, forma exterior. Ou seja, de certa forma, sentidos opostos coexistem no mesmo termo. Dir-se-ia, pois, que a própria linguagem transporta consigo a virtualidade de equilíbrio ou desequilíbrio, de excesso ou temperança. Se tomarmos o termo apenas num dos lados da acepção, estaremos a ser parciais; se o abarcarmos por inteiro, estaremos a ser completos; ou imparciais. Se o determinarmos apenas como "remédio", esquecendo que também é um veneno, correremos sério perigo por imprudência; se determinarmos que é apenas um veneno, corremos o risco de cometer um desperdício por ignorância. Assim, se eu disser que um significado é mau e outro é bom, fharmacon será absolutamente bom ou mau consoante o significado que eu lhe atribuir. Em contrapartida, se eu entender que fharmacon é bom ou mau, na sua inteireza, conforme o equilíbrio ou tempero que eu fizer das suas faculdades (de veneno ou remédio), então será bom se não houver nem excesso de uma componente nem doutra, mas um equilíbrio adequado. Deste modo, no primeiro caso estaremos nas imediações duma posição dualista; no segundo de uma atitude realista. A primeira é, simultaneamente, parcial e abstraccionista - porque se abstrai da realidade integral do objecto (neste caso, a palavra), para a submeter a um pre-conceito ideal (que se ajusta ao seu particular interesse) do sujeito (o que classifica) - bom, ou mau. É igualmente uma posição totalitária porque toma a parte pelo todo (coincidindo, assim, este todo abstracto com uma redução ou mutilação do todo real). E é, identicamente, uma posição absoluta (sendo que absoluto - ab-solto - significa desligado) porque desliga a parte do todo, divinizando aquela e demonizando este.
Ora, a posição dualista, que se manifesta geralmente nos racionalismos/idealismos, de Platão ao idealismo alemão (desde Kant a Hegel e seus derivados), habita também, por regra, os territórios das utopias, tanto quanto algumas terraplenagens alternativas (entenda-se, "libertinismos" ou ego-deificações). Ao contrário, a posição realista integra e manifesta, invariavelmente, uma ordem, estrutura ou hierarquia funcional. Não se trata aqui também de incorrer numa estreita esquemática dualista, considerando uma posição especialmente boa e outra especialmente má. Convém que se retenha apenas que cada uma delas revela determinadas tendências e determinadas apropriações.  E que o desequilíbrio acentuado para qualquer uma das posições ocasiona problemas específicos. Como a História tem demonstrado à exaustão.
Assim, para efeito do que aqui tratamos, a Revolução e os seus avatares, (Paris, Moscovo ou, em modo sórdido e nano, Lisboa) enferma, por dinâmica intrínseca e atestado por exaustiva comprovação empírica, desse dualismo e é, em simultâneo, absoluta e totalitária. Primeiro, porque se justifica num Todo absolutamente mau e corrompido com o qual a parte revolucionária rompe, rasura e propõe recriar ad nihil - "para trás de nós, o abismo; em frente,  a salvação e o paraíso reconquistado!". Não por acaso, o absolutismo revolucionário imita, perversamente, a Divindade do génesis, edificando a partir da treva, seja a treva do feudalismo, da religião católica, do czar opressor, ou do obscurantismo salazarífico. Em segundo lugar, porque a parte revolucionária, ao assumir-se como a representação exclusiva da totalidade, destitui o restante de qualquer direito, legitimidade, ou, sequer, dignidade histórica. Tanto quanto destrui-lo materialmente, procura apagá-lo mentalmente. Liquida-o no presente e liquida-o no passado, no terreno e na memória. Tudo passa a resumir-se a uma lenda negra, onde a demonização perpétua devém sustentáculo essencial e justificação sempiterna para todo o processo revolucionário e pós-revolucionário subsequentes. Assim, quaisquer falhas, desilusões ou descarrilamentos destes serão  sempre compensados com o recurso ao papão do passado, ao fantasma do putativo horror de recurso. Cumpre os quesitos de branqueador, tira-nódoas e bode expiatório com retroactivos. Demais,  o revolucionário é sempre, por necessidade operacional, um demagogo, isto é, um condutor do "povo", um demonauta. Triunfa na medida em que transmite e multiplica - melhor, prolifera - o seu transtorno ( a sua mania) ao maior número de pessoas. Poderíamos até dizer que, desde a revolução francesa, o revolucionário constitui, muito provavelmente, o primeiro modelo de empresário do espectáculo. No caso de Paris, 1789, avulta mesmo a hipótese de  o grande catalisador (e sucesso) para a agitação e mobilização popular terá passado por converter uma pequena exibição ou happening ocasional - a execução pública -, cada vez mais rara e frouxa (os suplícios e execuções vinham diminuindo preocupantemente nos últimos tempos do ancient régime), num autêntico festival pop (quiçá o primeiro de que há memória) - uma trepidante feira-matadouro,  em alucinante ritmo de abate ininterrupto, entrada gratuita, vários palcos (do tribunal ao cadafalso) e decapitações ululantes, precedidas de cortejos festivos, sob algazarras de dichotes e vitupérios. Iremos mesmo testemunhar, entre enojados e perplexos, como, rapidamente, a revolução e os seus artistas (entre funâmbulos, prestidigitadores, contorcionistas, trapezistas e palhaços) se entrega por completo ao mero entretenimento popular, à diversão e afagamento espalhafatoso da turba. A certa altura, vai alto o Terror, e percebe-se até uma certa angústia entre os animadores culturais de serviço: entram a suspeitar seriamente que a sua própria sobrevivência depende da manutenção e avivamento da excitação lúdica da plateia. É visível como entram em pânico quando principiam a avistar-se os primeiros sinais de tédio, enjoo e cansaço da parte desta. Fora o espectáculo, não havia (nem eles tinham) mais nada. Adivinhava-se o anticlímax e as vociferantes e descabeladas reclamações pelo esgotamento dos efeitos intoxicantes, pela droga decepcionante. O fiasco, a pateada, o linchamento, enfim... E o mais curioso deste teatro do absurdo a céu fechado para balanço é que o efeito  narcótico duraria enquanto os magarefes empresários conseguissem manter o público na ilusão de que era também o actor principal, o protagonista da mise-en-scène. Eis, pois, a lógica suprema e absoluta: the show must go on! Uma proto-broadway de carniceiros. Reis, nobres, clérigos, cabeças avulsas, toutiços aleatórios já não bastam: os magarefes desatam a matar-se uns aos outros. O parcialismo, tanto quanto absolutista, tende à atomização. Princípio desagregante do Todo inicial, não demora a descobrir todos seus sucedâneos em toda a parte. A depuração, a purga social é sempre uma peregrinação do infinito, esse totem tribal dos novos tempos antropófagos. De resto, a Revolução é como Cronos: devora os próprios filhos, tanto quanto arrota os próprios pais. Mas é também como Erisícton: uma fome perpétua que, depois de ingurgitar meio mundo, culmina na autofagia. Arvorada em nome da Natureza, atenta contra ela e acaba levada à loucura, por castigo dela, Deméter, de seu verdadeiro nome.

Mas esta carne-oficina e esta carnofacção não vinha apenas das filosofias e arredores. Tal qual o racionalismo e o dualismo não resultava apenas da postura platónica e neo-platónica. Lá muito de trás, da herança persa, posteriormente pelo maniqueísmo, cruza-se, numa espécie de síntese, com o platonismo e o Apocalipse de João, esse livro de cabeceira da Idade Média. Não será apenas o sono da razão que povoará de monstros: é a razão monstruosa que povoará o homem, à conquista dos céus. E dos infernos. Essas dimensões a que alguns chamavam, coxeantemente, infinitos. Só que agora com contornos de infinita dor e infinito prazer (engodando e atraindo a hiena farejante que é o libertino, lá ao fundo)... Ganhará contornos bem definidos, no estertor da Antiguidade e romper da Idade Média, com Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), na sua Civitas Dei (Cidade de Deus):
  «Porque os que estarão nas penas (do inferno) não saberão do que se passa dentro do regozijo do Senhor; mas os que estiverem nesse regozijo, saberão o que se passa lá fora, nas trevas exteriores.»
Regozijo, alegria, felicidade, o que quer que se traduza, fica um estranha e inquietante  pergunta: parte do regozijo celeste dos corpos bem-aventurados e ressuscitados no Céu tem alguma coisa a ver com ao suplício eterno de outros corpos reencarnados no inferno? A dor duns que gera prazer noutros... Confesso que não sei responder.
Mas o certo é que o Inferno cristão, à semelhança das execuções públicas, foi-se amenizando na sua severidade dualista...Foi-se tornando mais realista e equilibrado: congeminou-se e introduziu-se o Purgatório. O paroxismo desiludido com o Ano Mil, acabou por desviar o "medo do Fim" para a "demanda do milénio". As seitas milenaristas, e de algum modo revolucionárias, atravessarão a Europa. Encontramos a última já em pleno século vinte, algo exótica e auto-denominada de III Reich. Mas esta não é decerto a principal correnteza da Revolução.
Diz-se que o mundo, mais que a política, tem horror ao vácuo. A verdade é que à medida que o Inferno celeste e as suas penas e terrores, aparentemente, se iam desvanecendo e suavizando nas memórias, na essência, iam-se apenas transferindo. Aliás como tudo o que outrora morara no Céu. Foi-se mudando para a Terra. Pervertido, nanificado, absurdizado, às parcelas, mas não obstante... E assim o inferno não desapareceu: materializou-se. Parece que, segundo as sensibilidades da época, era a única parte interessante da Cidade de Deus. E como disse mais tarde um filósofo: vale mais um mau sentido do que sentido nenhum, então nada como carregar no mau até ao péssimo. E se para cima não se vislumbra sentido nem caminho, então vamos para baixo, para o averno das profundezas. É a torre da Babilónia na mesma, só que na direcção oposta, dos subterrâneos, como certos poços maçónicos. Toda a vertigem da Queda agora erigida a vingança, a desforço, não já despejo mas tomada, reocupação por arrombamento.  Imitatio Lucifer. O senhor das Luzes. Civitas Demo (ou Civitas lex). Que vai, finalmente, moldar, a barro, cuspo e sangue, o seu cidadão. Em forma de marionete. Mecânica, amoral, impiedosa. 


 «É preciso então preferir a dor, cujos efeitos não podem enganar e cujas vibrações são mais activas. Mas, objecta-se aos homens encasquetados nesta mania, esta dor aflige o próximo; será caridoso fazer mal aos outros para se deleitar a si mesmo? Os velhacos respondem-nos a isto que, acostumados, no acto do prazer, a importar-se consigo em tudo e nada com os outros, estão persuadidos de que é muito simples, segundo os impulsos da natureza, preferir o que eles sentem ao que não sentem de modo nenhum. Que nos fazem, ousam dizer, as dores ocasionadas sobre o próximo? Sentimo-las? Não; pelo contrário, acabámos de demonstrar que da sua produção resulta uma sensação deliciosa para nós. A que título lhe evitaríamos uma dor que nunca nos custará uma lágrima, quando é certo que desta dor vai nascer um prazer muito grande para nós? Já alguma vez experimentamos um único impulso da natureza que nos aconselhe a preferir os outros a nós, e cada um não está para si no mundo? »
          - Marquês de Sade, in "Filosofia na Alcova"

E talvez mais uma redução a considerar na farmacopeia revolucionária: a redução da luta pelo poder a uma luta pelo prazer... Entendido este como acima diagnosticado: como o poder fazer mal/causar dor aos outros. 


domingo, janeiro 21, 2024

Um oximoro novo

 "Royal navy".  Tudo indica que está ao mesmo nível que "british intelligence"...

Conferir no vídeo abaixo:


O Putin que se cuide.

quinta-feira, janeiro 18, 2024

Anabismotomia da Revolução - 3. Da revolução das estrelas ao caos perpétuo






 «Quanto mais se estuda a Idade Média, mais se nota o polimorfismo da influência platónica. Platão mesmo não está em lugar nenhum, mas o platonismo, em todos; digamos antes, que há platonismo por toda a parte: o de Dionísio, o Areopagita, e de Máximo, o Confessor, que passa por Escoto Erígena e cuja presença acabamos de perceber em Bernardo de Chartres; o de Santo Agostinho; o de Boécio, que comanda a obra de Gilbert de la Porrée, enquanto não aparecem os do Liber de causis e da filosofia de Avicena, que logo iremos encontrar. Esse parentesco platónico de doutrinas, de resto bastante diferentes, explica certas alianças, de outro  modo incompreensíveis, que por vezes contraíram. O facto reproduziu-se tantas vezes que quase poderíamos falar, na Idade Média, de uma lei dos platónicos comunicantes.»

      - Etienne Gilson, "A Filosofia na Idade Média"

A passagem do Logos grego para a Ratio latina é tudo menos pacifíca. Digamos, para sintetizar, que esta constitui uma redução daquele, um estreitamento. Todavia, é sobre a ratio latina que se processa todo o pensamento medieval, fundamentalmente teológico, que desagua na Razão de Descartes e, posteriormente, nos enciclopedistas e nos revolucionários de Paris. Ratio significa sobremaneira cálculo. Já se adivinha onde é que isto vai dar... Certo é que os gregos não dispunham de algarismos. O número - arythmos - era figurado por letras. A letra alfa, por exemplo, também simbolizava o número 1. Portanto, o mesmo alfabeto servia para a poesia e para a aritmética. Os romanos, posteriormente, terão um sistema de numeração diferente, que ainda existe, e no meu tempo (não sei se ainda assim é) aprendíamos na escola primária. Mas nem os gregos nem os romanos dispunham do "zero" (0). A linguagem, literária ou aritmética, designava necessariamente alguma coisa. Ora, o nada (qualidade ou quantidade) é ausência, coisa nenhuma: nada tem para relatar ou contar. Consequentemente, também não dispunham da noção de "infinito", uma vez que esta decorre da própria sucessão inesgotável dos algarismos. E daí transvasa para o mundo. Pior, consideravam, quer o nada, quer o infinito, a serem ponderados, como aberrações e monstruosidades do próprio pensamento. Extravasavam do Logos, careciam de sentido, como um buraco sem fundo. A perfeição significa qualquer coisa de excelentemente acabado, terminado, pleno, completamente definido e belo. De resto, o próprio termo Kosmos traduzia universo mas também beleza, adorno (donde ainda hoje a arte da cosmética). Conceitos como indeterminado ou ilimitado eram pensáveis para um grego, aparentavam-se até ao caos primordial, existiam mesmo na tradição filosófica - o apeiron, de Anaximandro. Porém, o infinito, como foi entendido a partir do fim da Baixa Idade Média, seria absurdo, no mínimo. Naturalmente, estamos a falar do pensamento grego na sua dimensão tradicional, da Mitologia a Aristóteles, no seu edifício principal, cujas ruínas, palimpsestos e fragmentos sustentaram ainda a Idade Média. Todavia, como em tudo, há sempre uma zona de sombra, marginal, exótica, de videntes de vão de escada e nihiloscopias fulgurantes. Encontramo-los no chamado período pré-socrático, da protofilosofia. Todos os pré-socráticos são, de um modo geral, "naturalistas", isto é, mais investigadores ou propectores da "fysis" do que pensadores sistematizados e conceptuais. Os principais são conhecidos: Heraclito e Parménides; Pitágoras. Deles sobreviveram à Antiguidade raros fragmentos. O que se foi sabendo e transmitindo a seu respeito foi mais por versão relatada de outros autores - Diógenes Laércio, Aristóteles, alguns outros. Dois deles, Empédocles e Anaxágoras, levantam já questões que beiram o "infinito" e falam já mesmo no "vazio", enquanto princípios causais da natureza. Porém, aqueles que mais impacto causarão num certo tipo de pensadores pré-modernos e modernos - Giordano Bruno e Espinosa, designadamente - são os atomistas - Leucipo e Demócrito. O que deles ficou foi exclusivamente por relatos de terceiros, Aristóteles em boa medida, que os cita e refuta. Um seu seguidor (dos atomistas), Epicuro, ecoou através de Lucrécio, nessa obra fetiche dos Murchos e ateístas militantes cá da praça: De rerum natura. Portanto, é uma moda com pernas para andar. Ao tempo deles, foram amplamente gozados por Aristófanes, nas "Nuvens", enfileirando com toda a sofística de estalo (aqui, entre nós, os proto-nihilistas e proto-advogados) na tribo dos corruptores de Atenas e apaniguados do "adikos logos" (o logos injusto). Platão, por seu turno, execrava-os; a Hélade nem os reconhecia como filósofos; e valeu Aristóteles  que, com a magnanimidade dos sábios (que dizia, logo a abrir, na sua "Metafísica", que "ninguém erra totalmente uma porta"), nos transmitiu considerável parte das destilações atómicas destes visionários. Pois bem, como raio, mesmo sem ferramentas, se enfiaram eles pelo buraco da Alice? A acusação de Aristófanes, em nome da Hélade, reverbera: adikos, injustiça. Haja medida, lembram-se?, prescrevia e avisava o Oráculo de Delfos. Pois, para eles, não há medida que resista: esfarelam-na até ao átomo. Estilhaçam e aspergem o cosmos de descomedidos multimundos e astrodesertos, numa efabulação cosmofórica não totalmente descabida de engenho. Diógenes Laércio dá-nos uma ideia:

«Leucipo sustenta que o todo é infinito... parte dele é cheia e parte vazio... Daqui surgem mundos inúmeros, e são dissolvidos de novo nestes elementos. Os mundos nascem da seguinte maneira: muitos corpos de todas as espécies de formas movem-se por "abscisão do infinito" para dentro de um grande vazio; aí se juntam e produzem um redemoinho único, no qual, colidindo uns com os outros e revolvendo-se de todas as maneiras... começa a separar-se, semelhante do semelhante. Mas quando a sua quantidade os impede de continuar a rodar em equilíbrio, os que são finos saem em direcção ao vazio circundante como que peneirados, enquanto os restantes "permanecem juntos" e, emaranhando-se, unem os seus movimentos e fazem uma primeira estrutura esférica. Esta estrutura está à parte como uma "membrana" que contém em si todas as espécies de corpos; e à medida que rodopiam, devido à resistência do meio, a membrana circundante torna-se fina, enquanto os átomos contíguos continuam a correr juntos, devido ao contacto com o redemoinho. Assim a Terra se gerou, permanecendo juntos nesse ponto os átomos, que tinham sido levados para o meio.»

De Hipólito, temos um testemunho complementar igualmente sugestivo:

«Demócrito defende o mesmo ponto de vista, que Leucipo, acerca dos elementos, cheio e vazio... ele falou como se as coisas que existem estivessem em movimento constante no vazio; e há mundos inúmeros que diferem em tamanho. noutros mundos não há Sol nem Lua, noutros eles são maiores que no nosso mundo, e noutros mais numerosos. os intervalos entre os mundos são desiguais; nalgumas partes há mais mundos, noutros menos; alguns estão a aumentar, outros no seu auge, outros a decrescer; nalgumas partes eles estão a surgir, noutras a desaparecer. Eles são destruídos pela colisão de uns com os outros. Há alguns mundos desprovidos de criaturas vivas ou plantas ou qualquer humidade.»

Não, caros leitores, isto não foi retirado duma notícia ao minuto na abertura do MSN: foi mesmo escrito há mais de dois milénios. E, a limite, não podemos em absoluto afirmar que não se fundava em nada  da tradição grega. Na verdade, até fundava, só que não era muito mais que uma perífrase da primeira frase da Teogonia, de Hesíodo. Aquela mesmo que serve de motivo à glosa do subtítulo deste blogue: "No princípio era o Caos". Eles atiraram-se ao dito e, bem calafetadinhos, trataram de divagar e viajar mentalmente nele (numa antecipação arcaica do método Júlio Verne, ou seja, em modo ficção científica avant la lettre). O que, em contrapartida, não foi o caso de Empédocles, um alucinado mais audaz, que à teoria juntou a experimentação da hipótese... Num infeliz mas coerentíssimo ensaio primogénito do método científico: saltou, inteiro e completo, na sua pessoa, para dentro do Etna. Entre perplexo e enjoado, o vulcão cuspiu uma sandália. Algum significado profundo isto deve ter tido. Que, já no caso dos atomistas gregos até nem era difícil de entender: não havia princípio, nem meio nem fim - continuavam no Caos e nunca de lá tinham saído (no que, de certo modo, até o próprio Dragoscópio pressagiavam, embora às avessas).

Humor não à parte, nada surpreende que Aristófanes, nas "Nuvens", fosse direito ao ossário da questão: 

« - Qual Zeus, nem meio Zeus!... Não digas asneiras: pura e simplesmente, Zeus não existe. (...)
   - Mas, então quem é que chove? (...)
   - São elas (as nuvens) que chovem, obviamente. (...)
   - E quem é que as faz mover? Não é Zeus?
   - Nada disso... é o Tornado [o tal redemoinho] etéreo.»

Não apenas a Teogonia corria, assim, o risco de ser substituída por uma simples meteorologia: era a própria religião dos gregos, desde os antepassados fundadores que ia no vórtice; e com isso toda uma nova moral e dinâmica social em acção. A partir duma nova religião, puramente materialista, ateia e delirante:

    « -  Ora bem, estás disposto, de agora em diante, a não aceitar qualquer outra divindade que não sejam as nossas, isto é, o Caos, as Nuvens e a Linguagem, estas três e só estas? »

Através dum Sócrates de conveniência, Aristófanes estava a ridicularizar a "ficção atomista".  O próprio termo "átomo" - a-tomos -, isto é,  não cortável, não mutilável, (em suma, não mais divisível) diz quase tudo acerca do meta-odos (na verdade, um para-odos) peregrinado. Mas se a matéria não é divisível ao infinito, como pode ser então ampliada ao infinito? Estaremos a falar do infinito vazio, a saber, o infinito nada? 

Não se pretende aqui, de modo nenhum, discutir os méritos ou deméritos absolutos de quaisquer destes pensadores. Mas apenas as diferenças - fundamentais e constitutivas - no modo como influem ou revelam uma perspectiva da realidade e, para o que nos interessa, do papel do divino e do cosmos nesta. Em resumo: Qual era a diferença paradigmática entre a cosmotomia dos atomistas e a Teogonia, de Hesíodo? É que esta relata e estabelece uma hierarquia, isto é, um processo na vertical, da profundeza insondável até à luz etérea - desde o Caos, as regiões tenebrosas, a Geia (terra mãe), onde habita toda uma variedade poética de seres divinos, semi-divinos, os heróis, os homens, e, por fim, o Olimpo, onde habitam os imortais, livres da morte e da Necessidade. O pensamento grego não é creacionista, na medida em que o cosmos não é obra demiúrgica (excepto no Timeu, de Platão), mas também não precisa: é criativo no sentido poético do termo. Ao pé da mitologia grega, qualquer outra mitologia oscila entre a pobreza e a miséria, estéticas, éticas e filosóficas. O Cosmos resultante dessa poesia é o que o próprio nome indica: Beleza, ordem.  Contrapondo a isto, que representa "o Todo é infinito, parte dele é cheia, parte dele é vazia" de Leucipo? Mais que uma mera incongruência intelectual, representa o varrer da hierarquia: em vez da verticalidade, a horizontalidade subterrânea duma qualquer astro-esvisceração; um chafurdar no caos e no absurdo; uma sopa de átomos em perpétua confusão e conflito, onde as causas e os princípios se resumem a uma estrita e obsessiva causa eficiente que incha, desincha e passa. Em vez dum cosmos, dir-se-ia, uma borbulha descomunal, exorbitante. A limite, um furúnculo infinito. Ora, nesta  regressão da bela e conveniente ordem orgânica a uma mera balbúrdia mecânica  onde o acaso impera mascarado de necessidade, acontece que não é apenas o sagrado, o simbólico, o mythos originário, a arché fundadora, que são apagados: é também a beleza, a poiesis (Arte) que desaparece. É também em nome desta que Aristófanes zurze. E esta dupla catástrofe constitui, digamos assim, o primeiro paradigma de metabolia (transformação) que importa reter. O Cosmos já não se funda no Caos: afunda-se nele. Dissolve-se. Não esqueçam este primeiro momento da zaragata inorgânica. Iremos revê-lo séculos adiante, no pós-Tomismo, quando, mais uma vez, os panteísmos imanentistas e ébrios do infinito se lançarem, contra Aristóteles, contra a Hierarquia Celeste e Terrena (onde a Teogonia foi doravante cristianizada), lançando-se na revolução das estrelas, que consuma a passagem do "Mundo fechado ao Universo Infinito" (Koyré dixit). A qual, de resto, com Descartes, marca também uma outra passagem deveras radical: do cosmos orgânico, vivo, ao mundo mecânico, antecâmara da máquina (o Homem-Máquina ou o Homem-Planta, de La Mettrie, manifestam já o claro sintoma do que virá adiante).

Voltando agora ao platonismo que a citação de Gilson, em epígrafe, documenta. Platão é duma vastidão imensa, não só no que influencia, mas, sobremaneira, na sua própria obra. Há, por assim dizer, vários Platões. Todavia, aquele que mais impacto terá na Idade Média - através de Santo Agostinho, Escoto Eriúgena, Santo Anselmo et al - será o Platão do Timeu (o diálogo onde se explana o principal da cosmologia platónica). O mesmo Timeu que ocasionará, em larga medida, o neoplatonismo de Plotino; as Enéadas deste (com o seu Ser e respectivas hipóstases) que desencadearão, adiante, momentos sumptuosos como  o "De divisione naturae", de Escoto Eríugena e momentos menos edificantes com Nicolau de Cusa, o seu derivado Giordano Bruno, posteriormente, Espinosa e, deste, um ramal para Locke e outro, mais adiante ainda, para Hegel (da linha directa de Heraclito, via Plotino). É um bocado como as redes ferroviárias e viaja-se muito, com alguns descarrilamentos, colisões e trucidamentos por suicídio à mistura.

Disto tudo (e perdoem o manancial de referências), que questão capital está em jogo (que, mais à frente, estará na base do trampolim para o "assalto revolucionário"?  Dois conceitos: a transcendência ou imanência de Deus, ou do Divino, como preferirem.  Significa que ou o Divino está fora e acima do Mundo, separado dele; ou está nele e, latente, subjazendo ao mesmo. Portanto, ou age como espírito puro e perfeição absoluta (Aristóteles/S.Tomás de Aquino), ou age do interior da matéria, bancando o infinito (em rigor, o nada). Com Espinosa, é mesmo substância única do Universo infinito, e, em simultâneo, res cogita e res extensa, isto é, coisa pensante e coisa extensa. Para o mesmo pensador, que parte de Descartes para ir ainda mais para baixo, o corpo humano é, como certos insectos colectivos, o corpo da espécie; e a alma humana a mesma coisa. A limite  - qual limite!, de facto, não existe indivíduo único - entenda-se, pessoa (com todas as letras) - nem enquanto corpo, nem enquanto alma, e liberdade também não. Pois se até Deus está dissolvido na matéria, numa espécie de chá do infinito, faria agora o homenzinho armado em pessoa humana!... Compreende-se perfeitamente o fascínio que Hegel tinha por ele. E de como Locke por lá prospectou.

Entretanto, é preciso pesar bem as consequências que este ataque à transcendência implica. Começo por uma breve e simples analogia para facilitar a compreensão: imaginem um jogo, duas equipas, no campo e nas bancadas, e, claro,  regras. No primeiro caso, necessariamente, há um árbitro, acima das equipas e dos adeptos, imparcial, soberano, com a função de zelar pelas regras, punindo faltas, marcando o tempo de jogo, assinalando os golos. No segundo caso, não há juiz, nem tempo de jogo, nem limites do campo, ou das balizas, e uma Coisa  que é também equipas, adeptos e brinca sozinho com um tabuleiro infinito pela eternidade. No primeiro caso, temos a divindade transcendente ao jogo; no segundo, a divindade imanente. E a repetição da metabolia paradigmática que já tínhamos visitado com os atomistas gregos: a terraplenagem da aristocracia orgânica pela república ou democracia (já podemos começar a chamar-lhe assim) mecânica. Onde se começa a acreditar, piamente, que o jogo pode e deve funcionar, à maneira dos relógios, regido exclusivamente por leis automáticas (sobre cidadãos autómatos em estágio para anjos). Mais que a uma ideia, o ataque dos iluministas a Deus, representa o ataque a uma hierarquia, a um princípio de autoridade e a um referencial - de justiça e liberdade - fora do sistema. Doravante o que se pretende implantar, na ponta duma carnificina inaudita que inaugura a era industrial, por via duma máquina soberana e triunfante (a guilhotina) é, exactamente, isto: um sistema que se auto-regula. Simultaneamente, um panteísmo jurídico, um mecanicismo absurdo, uma desordem autofágica e retroprodutiva. É vendido e mercadejado, na aparência, como um progresso inaudito. O leitmotif mais apregoado consiste na transplantação e enxerto das leis naturais triunfantes para o mecanismo socio-político, segundo esse farol específico com que a Santa Natureza  algures brindou e mimou o homem: a razão.

Hoje já sabemos que o sistema auro-regulado culminou no mercado em auto-regulação. Já vimos no que deu a tolerância e o humanismo após 1789. Mas na época houve também alguém que passou a factura integral das novas "ideias" - que, aliás, tanto quanto a factura proforma, apresentou o espelho às suas últimas,  materiais e fatais consequências. E o curioso é que esse espelho foi ficando cada vez mais nítido e actual. Mesmo hoje...

« - Estes sistemas são espantosos, padre - retorqui a Clément; -conduzem a gostos cruéis, a gostos horríveis.
    - E que importa? - respondeu o bárbaro. - Acaso somos donos dos nossos gostos? Não devemos ceder diante da ordem que recebemos da Natureza como a cabeça orgulhosa do roble se inclina perante a tempestade que o fustiga? Se a Natureza se sentisse ofendida por estes gostos não os inspiraria; é impossível que recebamos dela um sentimento feito para a ofender, e nesta extrema certeza podemos entregar-nos às nossas paixões sejam de que espécie e violência forem, convencidos de que todos os inconvenientes resultantes do choque produzido nos ignorantes não são mais do que desígnios da Natureza, dos quais somos os involuntários veículos.(...)
Que importa essa ignomínia a quem não tem princípios? Quando se fez tudo o que havia a fazer, quando a honra não é mais do que uma palavra sem sentido, quando a reputação é uma coisa indiferente, a religião uma quimera e a morte um aniquilamento, não será a mesma coisa morrer-se no cadafalso ou na cama? Há duas espécies de malvados neste mundo, Thérèse: os que, por serem muito ricos ou se encontrarem muito bem colocados dentro da sociedade, estão ao abrigo deste fim trágico e aqueles que não o evitarão se forem detidos. O indivíduo que faça parte deste último grupo não tem senão um desejo se for inteligente: ser rico de qualquer maneira e infiltrar-se na sociedade que inicialmente o perseguiu. Se tiver êxito, consegue o que ambicionava e deve sentir-se contente; se falhar e for preso, de que poderá lamentar-se se nada tinha a perder? Se as leis não atingem o poderoso e se são ignoradas pelo desgraçado, que conclusão há a tirar? Que são nulas, minha querida Thérèse.»

               - Marquês de Sade, in  "Justine" 

Como eloquentemente assinala Alexandre Koyré, acerca da destruição do cosmos e da centrifugação da Terra e do homem, «no final desta evolução encontramos o mundo mudo e terrífico do "libertino ateu", o mundo desprovido de sentido da filosofia científica moderna. No final encontramos o nihilismo e o desespero.»

terça-feira, janeiro 16, 2024

Anabismotomia da revolução . 2. Incisão preliminar: Entre o húmus e a substância purulenta.

Aviso: Este postal é uma espécie de adenda ao primeiro capítulo. Funciona como relance do acontecimento a partir das suas repercussões futuras, antes mesmo da análise das causas anteriores. Serve para documentar como, ao longo dos acontecimentos políticos de determinada índole, há algo que muda e há algo que permanece, servindo de substracto a toda a mudança. As grandes e efectivas transformações ou roturas sucedem não ao nível do transitório/acessório, mas ao nível do substracto, daquilo que suporta e permanece. Assim, perguntar pela génese daquilo a que a História chamou Revolução não é debater ou mercadejar as diversas formas em que o materialismo se manifesta - do liberalismo ao comunismo -, mas, antes, investigar, a fundo, pela origem e estrutura hegemonizante desse materialismo. E o primeiro dado que podemos e devemos anotar é que funciona como uma contra-tradição e uma contra-cultura que reagem como avesso, quer da cultura, quer da tradição.


 

 «A social-democracia construiu toda a sua filosofia sobre as bases do socialismo científico, ou seja, sobre o marxismo. A base filosófica do marxismo, como Marx e Engels disseram repetidas vezes, é constituída pelo materialismo dialéctico. O materialismo dialéctico aceita inteiramente as tradições históricas do materialismo francês do século XVIII e do materialismo alemão de Feuerbach da primeira metade do século XIX, que são absolutamente ateus e decididamente hostis a qualquer religião.» (...)

O marxismo é materialismo. Como tal, é tão irreconciavelmente oposto à religião como o era o materialismo dos enciclopedistas do século XVIII ou como o foi o materialismo de Feuerbach. (...)

Tanto em França como na Alemanha existe uma tradição de luta burguesa contra a religião, uma luta iniciada muito tempo antes da aparição do socialismo (por exemplo, os enciclopedistas e Feurbach). Na Rússia, mercê das condições da nossa revolução democrática-burguesa, esta tarefa recai quase por inteiro sobre os homens da classe operária. (...)

Não tem, portanto, nada de surpreendente que os sociais-democratas europeus se desviem e cheguem mais longe que os anarquistas. Isto é natural e, até certo ponto, desculpável; mas nós, os sociais-democratas russos, não devemos esquecer as condições históricas do Ocidente.»

                -V.I. Lenine, in "A Atitude do Partido Operário perante a Religião" 


Deixem que resuma o essencial da obra citada em epígrafe: quer a revolução francesa, quer a revolução russa inserem-se no âmago das lutas burguesas contra a religião (e estruturas sociais subsidiárias, do feudalismo ao capitalismo), caracterizando-se ambas, segundo o profeta, pelo "materialismo constitutivo". A diferença essencial está na base e no motor da cada uma delas. A revolução francesa é puramente burguesa e tem como agente motriz a burguesia (isto, como veremos, não é completamente verdade, sobretudo na primeira acepção); a revolução russa é democrático-burguesa, quer dizer, a burguesia acciona-a e participa nela, mas a classe operária - entenda-se o "partido operário"- transforma-se no seu motor determinante e exclusivo. Relevo ainda para o substracto refinado da social-democracia russa, graças a uma fórmula avançada de materialismo: o materialismo dialéctico. De certo  modo, este arroga-se o intérprete e depositário duma "tradição" (afinal, isto não é novo: o avesso procura sempre parodiar o direito).  Por outro lado, os sociais-democratas russos do partido operário adoptam um método  pragmático de conquista do poder  e transformação consequente e objectiva das condições sociais, bla-bla-bla, em contraponto aos sociais-democratas europeus, mais inclinados e enredados no abstraccionismo ideológico (fruto da hereditariedade iluminista), bem como a certas eclosões radicais, inconsequentes ou contraproducentes - leia-se, anarquismos e outros radicalismos burgueses. Pronto, basicamente,  para o que aqui interessa, é esta a postura do cavalheiro.

O que importa reter disto é a assumpção da herança genética do materialismo francês e, posteriormente, do alemão (Feuerbach, da ala esquerda hegeliana, terá mesmo forte influência em Marx). Há um trajecto afectivo e concreto, que não é segredo de ninguém, entre a revolução de 1789, a Comuna de Paris e a Revolução Russa (que começa até antes de Outubro de 1917; aí apenas culmina). Depois, como atrás ficou exposto, a consequência necessária - tanto quanto a causa eficiente - do materialismo é o nihilismo. E seja quem for que conduza o cabresto-povo: a burguesia, o partido operário (hoje mais conhecido por comunista), ou os aliões ou glutões da galáxia gutenberg. Podemos lá chegar com mais ou menos bugigangas, mais ou menos portagens, mas o aterro é fatal.

Por outro lado, já que estamos com a mão na massa, vamos dar um saltinho à nossa Nano-Revolucinha dos Cravos. Um belo dia, chovia materialismo a cântaros, o país acordava  encharcado e mirrado até aos ossos, e eis senão quando os neo-portugueses se deparam, entre embrutecidos e aparvalhados, com uma oferta inaudita de três partidos social-democratas no cardápio: O social-democrata marxista (aka PS), o social-democrata marxista-leninista (aka PCP) e o social-democrata não marxista mas progressista (PPD). Ou seja, tínhamos social-democracia para todos os gostos; à franco-germana, à salada russa e â Zé do Pipo. Pouco tempo depois, por via dumas tricas quaisquer, rectangulizado Portugal, a primeira meteu o marxismo na gaveta, a segunda aderiu ao parlamentarismo burguês e a terceira assumiu a essência na sigla, devindo Social-Democrata só (excepto para um maduro qualquer que insistia numa sigla pomposa PPD-PSD (Não ML)). 

E, para a história, um pormenor deveras excitante: «Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e Joaquim Magalhães Mota apresentam aos portugueses os estatutos do PPD, um Partido de centro-esquerda, de cariz social-democrata»  .... E prestem atenção aos princípios:

Liberdade, Igualdade e F..., perdão, Solidariedade

Não foi bingo por um triz.


PS: Convém apenas relembrar que este novo "partido progressista" que arribava na Revolucinha era constituído pelos mesmo que corporizavam a "ala liberal" da anterior situação.

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Bom Asno Novo!

Ando um bocado arredio das efemérides. Até me esqueci de desejar, em forma, aqui na montra principal, um Bom Ano  a todos os heróicos leitores do Dragoscópio. Aqui fica, pois, sanada a falta. Bom Ano!

Entretanto, para os restantes habitantes do rectângulo - nomeemo-los, doravante, de rectanguleses -, e dado mais um certame eleiçoadeiro que está por aí a rebentar, aqui ficam os meus sinceros votos de um Bom Asno Novo!  Tenho a certeza que saberão eleiçoar em conformidade. E, convenhamos,  é mesmo impossível falhar.


domingo, janeiro 14, 2024

Da aletofobia contemporânea

 




Acreditar que o jornalismo subsidiado pelo estado (e quem quer que seja que lá se hospede na hora a correr) não é isento, nem missionário, nem sindicativo é uma sonsice tão grande como acreditar, piamente, que uma vez controlado por obscuros grupos privados e cumprindo agendas óbvias internacionais já oferece garantias supimpas de todas essas virtudes. Acontece que o jornalismo., na generalidade, não ultrapassa o jornalixismo, seja quem for que o controle. Entre os Pravdas soviéticos e os actuais Pravdas amerdicanos, Washington Posts ou New York Times (só para citar os mixordeiros de meta-referência) a diferença é nenhuma (a limite, os soviéticos até eram mais honestos: não vestiam a pele de cordeiro). Acontece que, no nosso peculiar caso nacinhal, não são necessários jornalistas para sindicar uma coisa que não existe: poder político. Daí que o que se passa, em bom rigor, é um bando de moços de frete em voyeurismo ruidoso dum bando de impotentes. Daí que o que ocorre é que os mesmos que controlam os borra folhas também manipulam os murchos soberanos, pelo que, a bem da economia e do lucro que os iluminam, dispensam a redundância dos primeiros (no jargão actual: reajustam). Virtudes da internet: dois ou três Pravdas oxidentais  bastam; a seguir é toda uma reverberação online, que a proliferação da guilhotina moderna (vulgo, televisão) ao nível de bolso, garante em modo ininterrupto e ubíquo. Ironia amarga: o medo ao desemprego que transportou os jornalixeiros a todo um serviço forçado numa fábrica de aldrabice industrial e compulsiva culmina no sado-tálamo  desse cagaço motriz. Dizer que tenho pena seria mentir descaradamente. Como não sou jornalixa, estou dispensado desse preceito. Parece que não há por aí falta de trabalho: na construção civil ou nos campos, a servir à mesa ou a conduzir turistas, é toda um cornucópia de ofertas. Experimentem trabalhar honestamente, para variar.

Quanto à minha posição nesta matéria (o tal jornalismo), e já que falamos nisso, é, acreditem, de meridiana e proverbial sensatez: se o estado serve para alguma coisa, e a única coisa que ele pode servir é a nação que o abriga e sustenta, então o estado deve controlar o jornalismo, de modo a que este não seja controlado por outros estados meramente proxenetizantes e extorcionionários; isto é, o jornalismo deve submeter-se ao interesse nacional e não ser correia de transmissão de interesses alógenos, escusos, e esses sim, de modo nenhum escrutináveis.  Longe de ser uma utopia, esta modalidade já foi mesmo praticada entre nós, durante quase meio século, com censura e tudo, abençoadinha seja. Adianto ainda, que controlar não significa formatar ou reprimir sistematicamente. É mais da ordem do controlo de qualidade. Pretende-se que haja informação, não deformação. Portanto, alguma repressão será necessária e justa: a repressão da aldrabice, da escandaleira, da obscenidade, do boato, da corrupção intelectual, da estrangeirite torcionária, da esbirrite ideológica, da gonorreia sectária, do inquisicionismo laico, etc, etc.  De  resto, no estado actual da arte, uma questão dupla e pungente a colocar seria:  se esta paródia de estado e esta paródia de jornalismo seriam de algum modo corrigíveis e recuperáveis? Inclino-me pela dupla negativa. E se, no primeiro caso, alguma possibilidade, particularmente violenta, possa ficar sempre em aberto, já na segunda, despejá-los numa lixeira afigura-se mesmo como o corolário lógico, legítimo e exclusivo. Se viveram do lixo, natural é que sejam despejados nele. Cá se fazem, cá se pagam.

Por fim, algumas considerações de ordem técnica. Os jornais sempre foram veículos não apenas de propaganda, mas também de publicidade (no fundo, dupla acepção da mesma essência). Aliás, enquanto empresas com intuito lucrativo, procuravam na publicidade a sua principal fonte de subsistência. Portanto, a questão determinante que se coloca, em relação ao jornalismo, dado que a deontologia profissional não passa de mito urbano assaz rasca, prende-se com a gestão e administração dos fluxos e vias publicitárias. Ora, ao longo do século passado, foi-se assistindo, gradualmente, à internacionalização acelerada da publicidade e da informação (passe, em larga medida, a redundância). Até que se entrou naquilo a que se chamou "globalização". Podia, na aparência, alardear uma dispersão e disponibilização, à escala planetária, duma variedade e cornucópia de produtos publicitários; porém, na realidade, outra coisa não materializou (e vem solidificando) senão a concentração, monopólio e afunilamento do empório, numa espécie de cérebro centralizado que despeja, quase em tempo real, toda uma pasta monocórdica e monocromática, através dum sistema metastizado de vasos comunicantes e capilaridades anexas. Ora, esta exorbitação megalómana da Agência Central implica necessariamente o fecho e extinção duma miríade de agências e sucursais regionais entretanto tornadas obsoletas e desnecessárias. O consumidor, cada vez mais conectado à matrix, absorve directo da Cloaca Mater, sem delay nem ferrugem. Há mesmo, em toda esta metalambicagem, uma espécie de concretização tardia da imanência pródiga do bento Espinoza.

Em resumo, o jornalismo é aquilo que se sabe e que não vale a ponta dum corno. Mas não é tudo. Resistem, todavia, alguns jornalistas. Aqueles que sempre existiram e porfiaram, apesar do jornalismo. Na porção que lhes compete, também eles, dignos e raros heróis do nosso tempo. Na TSF, por exemplo, não se avista nenhum. E isso - não a lixeira mas o deserto -, isso sim, é que dá pena.


PS: Para os jornalixeiros ofendidos e, sobretudo, desdenhosos dos ofícios alternativos recomendados, têm bom e sobrejusto remédio: na Ucrânia estão a aceitar matrículas para as heróicas brigadas defensoras da democracia e dos "vossos valores". É, por uma vez, serem bravos e coerentes, correndo  a apostar o coiro onde, até aqui, só arriscaram a treta.

PS2: Aletofobia - aversão/fobia à verdade.