terça-feira, novembro 24, 2009

Diz o Morto ao Nu (rep)

Aqui há dias o Sir Bob Ganzas tinha feito uma mirabolante descoberta: que Angola era governada por malfeitores. Pensei para com os meus botões: "só agora, Sir Bob? E só Angola?..."

Pois bem, ontem, ou anteontem, é indiferente, um grupo de malfeitores reunidos consumou um não menos fulgurante achado: que «850 milhões de pessoas passam fome». Só 850 milhões, ó Sarcoiso? E fome não será um conceito excessivo? Não será antes "dieta rigorosíssima"? Ou "anorexia involuntária"? Ou "jejum obrigatório"? Ou "disfunção alimentar"? Ou "défice nutritivo crónico"? Enfim, há todo um léxico alternativo e suavizante que um certo pudor recomenda e o politicamente correcto baptiza. No melhor dos mundos, atestado de géni0s, cientistas, sacerdotes, pantólogos resfolegantes e pentelhógrafos desenfreados, decretos e petições em barda, eleições e palramentos a cada esquina, quando já temos sondas a esquadrinhar Marte e o Pacheco Pereira embasbacado nelas, não pode decerto haver fome. Há, quando tanto, gente com vontade a mais e comida a menos. Ou excesso de gente aglomerada em locais com pouca comida. E fome, bem vistas as coisas, todos nós temos. Fome de justiça, por exemplo, ainda somos uns quantos; fome da sobremesa alheia, aí, é para cima de bilião e só em Portugal quase todos; fome de fama, fome de poder, fome de bola, fome da desgraça alheia até - como poderá o anão sobressair se não derribar todos os gigantes? Com a agravante de que, para o nanico, qualquer tipo normal já é um gigante. Em resumo, fomes há muitas. E nada prova que a simples fome de pasto para o bandulho seja a mais excruciante de todas elas. Ao menos, o tipo com fome de batatas ou arroz só tem fome: não padece angústias, ganâncias, ansiedades, stresses, vertigens consumistas, invejas sitiantes, bulimias ideológicas, complexos de culpa, crises de identidade, dispepsias profissionais, ditaduras sexuais, etc, etc. O tipo que apenas tem fome já fica feliz com um prato de lentilhas e meio pão saloio. Se acompanhado dum copito, então, entra em êxtase. Nós, em contrapartida, já não ficamos felizes com nada. Porque temos fome de tudo. E quanto mais comemos, quanto mais tragamos e devastamos com o nosso apetite descomunal, insaciável, com a nossa infinita gula avassaladora, mais fome temos, mais vazios e famintos nos sentimos. Um vazio muito mais atroz e desesperante que o vazio do estômago porque é o completo, e cada vez mais desmesurado, vazio da alma. Eles, fome, têm-na; nós, somo-la.
Aliás, é essa a nossa tão ufana e propalada superioridade... Que ostentamos e jactamos por toda a parte e anunciamos já, em delírio, aos alienígenas das galáxias... que exibimos sordidamente, à maneira daqueles mendigos monstros, proxenetas da sua própria aberração. A superioridade da nossa fome, enfim. A nossa fome maior que todas as fomes - mãe, ama, filha e amante de todas elas. Andamos de megafone a apregoar a nossa megafome para quem nos quiser ouvir (para quem tiver esse infortúnio, para quem tiver o azar de participar de tamanho flagelo). Essa insatisfação permanente, que quanto mais se mima, lustra e amamenta, mais frustrada fica, mais insatisfeita se torna. Essa insatisfação parteira de todas as facções e facturas. Esse deserto mental que nem o dilúvio fertiliza.
Nessa medida, os 850 milhões que passam fome são apenas uma tragédia. Atrozes mesmo são aqueles não sei quantos biliões que, empanturrados em vacuidade e ninharia, sepultados sob a própria gordura, vegetam e chafurdam na mais indigente, arenosa e movediça das inanições: a mental. E moral.
Quais pobres supliciados perpétuos que, à semelhança das Danaides no Hades, em vão tentam encher o tonel imenso dos seus apetites com os crivos completos da sua ganância.
O que nos transporta, em forma de epílogo, à ironia dos mitos: é que, mais que relatar-nos o passado, profetizam-nos o futuro.

domingo, novembro 22, 2009

Deus o guarde



Como ando sempre noutro planeta, só agora me apercebo dum, para mim, inesperado desenlace. Um de nós partiu para onde todos nós partiremos quando chegar a nossa hora. Ao Jorge Ferreira, um até sempre! À família enlutada, os meus sentidos pêsames e a uma amiga comum, a minha caríssima Margarida, um abraço de solidariedade neste momento de profunda tristeza.

"O Homem é o sonho de uma sombra".
-Píndaro

Questões...Tantas questões, tão pouco tempo (rep)


«Uma em cada cinco mulheres é agredida pelo marido».

Estes estudos (já com quatro anos, mas devem permanecer actualizados), hão-de desculpar-me os leitores mais sensíveis, parecem-me um bocado tendenciosos. Deviam ser mais abrangentes. Deviam esclarecer-nos, por exemplo, acerca das seguintes questões, também elas deveras interessantes:

Primeira questão: Um em quantos maridos é agredido pela respectiva? A tortura, especialmente psicológica, também conta?
Nota de rodapé (NR): Com a cambada de coninhas e totós que por aí prolifera não me admirava nada que os números atinjam cifras astronómicas. Acrescento que tão extravagante fenómeno não me suscita qualquer sentimento de pena ou revolta; em boa verdade, só se perdem as que caem no chão. Que outra coisa pode mesmo merecer um cabrão desses, senão cornos e um varapau por eles abaixo?... Anima-me, tão somente, uma certa curiosidade científica.
Por outro lado, dado o comportamento cada vez mais doméstico e sopeiro de grande parte dos produtos depilados da confeitaria urbana, é natural que, cada vez mais, façam as vezes da esposa no lar e, além da pré-lavagem dos pratos e pilotagem dos fogões, enfardem também pela medida grande. Donde se me afigura que o estudo é realmente preconceituoso: fala em "mulheres agredidas pelos maridos" e esquece-se dos gajos agredidos pelos maridos. Já não falando nos mariconços abertamente gays, ou as lésbicas-esposas, que também, eventualmente, levam porrada dos ditos cujos. São, quer-me cá parecer, esquecimentos grosseiros, atentatórios dos costumes, vesgos à modernidade, que em nada abonam da seriedade do estudo e, ainda menos, da cientificidade da investigadora.

Segunda questão: Um em quantos casais é agredido pelos mimosos filhos?
NR: Também não me escandaliza. Acho justíssimo. Quem semeia merece colher. Dado o nível de educação e empenho na mesma praticado por estes papás modernaços urbanos, nenhuma bizarria nos deverá apanhar de surpresa. Quando um tipo cabeludo, vestido de carrasco medieval, a invocar Satã, irrompe aos urros cabalísticos, de machado inexorável em riste, pelo quarto dos pais e consuma um massacre rápido, podemos ficar seguros que teve uma esmerada educação, nutrida pelos melhores perceptores que o mercado disponibiliza: a televisão, o cinema americano e o heavy-metal. Se for um pouco mais demorado no acto, acompanhado de arabescos e precedido de drogas entorpecentes nas vítimas, podemos presumir e adicionar algumas leituras esoistéricas. O Harry Potter, provavelmente.

Terceira questão: Um em quantos professores é agredido pelos jovens alunos?
NR: Outro caso de retribuição lógica. Verdadeiro restauro do método de Talião, é olho por olho, dente por dente. Tu cegas-me a mim e eu chego-te a roupa ao pêlo a ti. Mesmo assim, a vantagem pende ainda, claramente, para o lado do professor. É deplorável, mas é o nosso atraso congénito. Ainda estamos longe das performances trepidantes de países super-desenlvolvidos, verdadeiros paraísos terreais, como os Estados Unidos, onde o aluno, de M16 ou Kalachnicov em patilha de rajada, rega indiscriminadamente colegas, professores e funcionários. É, claro está, a apoteose do indivíduo em todo o seu esplendor. No fundo mais não cumpre que os quesitos instilados e desejáveis da competitividade campeã: trata de demover, o quanto antes, a concorrência, quer desbastando a actual, quer atrasando e rarefazendo a futura.
(Quanto ao número de alunos que é agredido por um sistema de educação absolutamente lobotomizante dispensa-se a pergunta: é um em cada um. Todos os que para lá entram. Na máquina dos chouriços.)

Quarta questão: Um em quantos contribuintes é agredido pela chusma de burrocratas que se banqueteiam com o erário público?
NR: Aí, para variar, temos um método cristalizado há séculos: "Paga e não bufa". Quer dizer, só bufa para lixar algum espertalhão que pretenda eximir-se ao pagamento. Fora isso, eis-nos em terreno absolutamente minado: ninguém sabe exactamente quantos contribuintes existem, quanto dinheiro pagam e, muito menos, que destino é dado a esse dinheiro. Top secret. Superiores razões e interesses de Estado. Além de que decorre, nestes últimos decénios, um singular concurso: entre o Estado que rouba os contribuintes e os contribuintes que roubam o Estado - ou melhor dizendo: os contribuintes que roubam os outros contribuintes através do Estado.

Quinta questão: Um em quantos eleitores é agredido pelos políticos eleitos?
NR: Espero bem que todos. Também aqui, estou com os políticos. Se um masoquista, em donaires voluptuosos, lhes entrega um cavalo-marinho para as mãos, é lógico que o gratifiquem pela oferta. Quanto mais não seja, por cortesia . O eleitor, de resto, é em tudo idêntico ao mariconço lava-loiças: elege uma puta para depósito dos seus idílios tansos de fidelidade. O diagnóstico, fatalmente, é o mesmo: merece cornos e cacetada por eles abaixo. Excepto nos casos em que os desenvolva retrácteis, como certos moluscos gastrópodes providos de concha, vulgo caracóis. Também acontece. E dificulta a pontaria.

Haveria muitas mais questões, mas eu ando sem tempo, sem grande paciência, e as eventuais respostas não ofereceriam qualquer mistério.
Por exemplo, "quantas mulheres, maridos, avós e crianças são agredidos e violentados pela televisão, que não faz senão debitar merda esterilizante 24 horas ao dia, por múltiplos canais e cloacas?..."

Dir-me-ão os liberais que há quem goste de comer merda, que é o mercado a funcionar. Pois, pá, só que não é por gosto: é mesmo por vício. Toxicodependência da mais saloia. Larguem a droga, pá! Essa merda mata.

Obscurantismo

Antes de falar propriamente da religião grega e respectivas consequências, atentemos brevemente na filosofia e de como, para eles, era coisa de "elite", absolutamente arredada da generalidade da plebe, como alguns peregrinos do nosso tempo, que gostam de se espelhar nos outros, estimam de proclamar.

Sócrates, segundo Platão, em pleno tribunal:
«Mas uma coisa vos peço, Atenienses, e insisto neste ponto: se me ouvirdes defender-me com as mesmas palavras que costumo usar, quer na praça pública, junto aos balcões dos mercadores, onde muitos de vós me tendes escutado, quer noutros lugares, não vos admireis nem protesteis por causa disto.»

(Platão, Apologia de Sócrates)

É que na altura ainda não havia televisão, nem cinema, nem jornais, nem esta gloriosa internet, nem, tão pouco, plebe, e eles, coitados, pagãos obscurantistas, sempre tinham que se entreter com qualquer coisa. Ah, e visto não ter sido ainda inventada a electricidade, viam-se condenados a viver na obscuridade.

PS: Já não falando em tipos como Diógenes que, como é bem sabido, davam aulas e papagueavam de cátedra na faculdade.

sábado, novembro 21, 2009

E Pluribus Unum


O Labaredas não pesca nada disto. Pudera, a Zazie, nos últimos bafos, cavou-lhe as minhocas todas. Mas a Zazie, coitada da miúda, também não. É que aquele, o Lança-Chamas, tem ferramenta mas não tem isco; esta, a Zazie (beijoca, miúda!), tem isco mas não tem cana, nem linha, nem anzol. Dupla desgraça, portanto. Resto eu para iluminar as massas: Ildefonso Caguinhas -Engenheiro, arquitecto, webmonstro e, agora também, profeta. Não chorem. Não vos abandonarei aos trevos da ingnorância. Pois então, otários, como agora se diz, é assim:
Nem os gregos tinham religião, nem os romanos, nem os indianos, nem os babilónicos, nem os judaicos. Nem os cristãos, tão pouco. Muito menos os muçulmanos, ou sequer os chinocas, esses grandes filhos da puta que andam a invadir tudo com lojas e a prejudicar o negócio dum grande amigo meu e compincha nas maratonas de putas. E a prova disto é simples. Entra pelos olhos adentro, e só mesmo um árbitro da Liga é que não atinge:
O Glorioso SLB só foi fundado em 1908. Antes disso, como é mais que comprovado, não existia religião: apenas superstições várias. Magias e vigarices. Histórias da carochinha, enfim.

Deus é o Glorioso e Jesus o seu treinador. Esta é a verdade. Uma raio me parta já aqui, se não é. Viram? Não partiu. Logo, QED. A verdadinha toda. Cristo não pode dizê-la a Pilatos porque, na altura, ainda não sabia. Quer dizer, até sabia, mas queria guardar segredo. E, além disso, estava muito ocupado a ser alvo de cuspidelas e outras chicotadas fisiológicas.

Mas está escrito que Jesus haveria de voltar para dar cabo das bestas do Sporting (cuspo) e do reinado do Dragão (cuspo,cuspo!). E por isso Deus é Luz. Estádio da Luz, percebem?

Amanhã volto para explicar a entomologia de "E Pluribus Unum". Agora tenho putas para visitar.
SLB! SLB! GLORIOSO, SLB!!



quinta-feira, novembro 19, 2009

A grande purga

«...Zeus não se assemelha aos antigos deuses indo-europeus do céu, como, por exemplo, o védico Dyaus. Não apenas não é o criador do Universo, como nem sequer pertence ao grupo de divindades gregas primordiais.»

- Mircea Eliade, "Zeus e a Religião Grega", in História das Ideias e Crenças Religiosas

Comecei a grande purga. Este Eliade quer enganar quem? Religião quê?!...

Não queimo livros porque é contra a minha ética. Mas este, três volumes repletos de fábulas e patranhas como aquela em epígrafe, dou-o a quem tiver a caridade de o receber.

quarta-feira, novembro 18, 2009

A Mãe do atrevimento



Dum chorrilho de pérolas de sapiência erudita que a minha amiga Zazie teve a amabilidade de depositar no penúltimo postal, tomei conhecimento de algumas novidades suculentas. Cito apenas as que me parecem mais instrutivas e auspiciosas:
a) Os Gregos Clássicos (para desconfundir com os Bizantinos) não tinham religião;
b) para compensar (magra compensação, convenhamos), apenas tinham filosofia, mas só as elites, porque a ralé era como a nossa, após 900 anos de catolicismo: refocilava, única e exclusivamente, em novelas de fancaria, idas à bruxa, super-heróis, totolotos, lotarias, astrologias, adivinhos e consultas de vísceras avícolas. Hoje em dia, a coisa até está mais reforçada com cinemas, radiografias, ecografias ou toques rectais no próprio connsultante, vampiros, alienígenas, psicopatas geniais, macumbas chiques, ciber-vudus, hip-hopes, jet-setes e metais diversos, nunca esquecendo o cristianismo ronaldo, mas isso só atesta da excelente qualidade da nossa religião. Ao contrário da daqueles supersticiosos ;
c) Platão e Aristóteles, oásis sumptuosos naquele deserto árido, irromperam como certos fungos mais ou menos venenosos: por geração espontânea:
d) Com o Livro de Job é que ninguém consegue avacalhar, porque esse belo episódio altamente moral em que Iahvé envia o seu acólito Satã para moer a paciência a um desgraçado está cheio de mensagens subliminares crocantes e elevados conceitos transcendentais.
Não nos alonguemos.
Como devem calcular, veredictos caturros desta estirpe não são rebatíveis. Concedem-se com um sorriso. Apenas acompanhado dumas breves notas de rodapé.

a) Se os gregos não tinham religião, problema ou vantagem deles. Se era apenas por não serem monoteístas -a Zazie apenas passa alvará a monos - então vai quase tudo de escantilhão pelo ralo da Zazie: gregos, Hindus, persas, egípcios, assírios, germanos, peles-vermelhas, e mesmo os esquimós, lá nos confins gelados, ou os aborígenes dos antípodas duvido que se salvem. Se, outrossim, era por não serem altamente racionais e conceptuais, mas fundadas em mitologias, bem, aí nem comento. Caso para perguntar: De tanto pregar aos ateístas cientoinos, a Zazie foi mordida por um deles?

b) não me custa imaginar a turba daquela época agarrada às novelas e fancarias do tempo (ainda não tinham inventado a moda). A tragédia, um pouco como a nossa ópera, era apenas reservada ao escol altamente erudito (leia-se a Academia e o Lyceu). Mentecaptos e engraçadotes de baixa extracção como Aristófanes entretinham a populaça. As Obras Púplicas, como hoje, estavam entregues a uns trolhas corruptos que erigiam e deslumbravam a plebe com mamarrachos. Jogos Olímpicos, Mistérios não-sei-da-quantas e peregrinações ao Oráculo de Delfos (a Fátima deles) completavam a restante alienação das massas. Como não tinham religião, não era o ópio: era apenas um haxixe de má qualidade. Ou vinho a martelo.

c) Que Platão e Aristóteles brotassem feitos cogumelos, já eu próprio suspeitava. Até porque Platão na brasa ou Aristóteles au champignons soa que é uma delícia. E devem saber ainda melhor. Se forem alucinogéneos, os champignons, tanto melhor. O Homero? Faz-se de conta que não existiu. Que não influiu coisa nenhuma. É só fábulas de fancaria, atesta-nos a Zazie. Como aquela anedota da Rap. XVI da Odisseia, onde balbucia "os homens não devem, segundo o direito divino, premeditar maldades uns contra os outros"; ou aqueloutra na Rapsódia XVII "Os deuses também andam, sob diferentes aspectos, como estrangeiros de terras longínquas, pelas cidades, para observar a violência e a virtude dos homens" (que imbecil, a chamar deuses a anjos); ou o próprio Z... (não posso completar a palavra, porque transporta a Zazie à epilepsia) logo na primeira Rapsódia: "Oh, que exprobração não fazem os homens aos deuses! Dizem que de nós procedem os males, quando só eles, por loucura própria e contra a vontade do destino, são os seus autores..."
Então mas os gajos não eram escravos absolutos do destino e completamente destituídos de Livre Arbítrio?! Este Homero é um conspirador contra a sebenta universitária, além dum mentor de imoralidades. Fez bem Platão, e acolita-o melhor ainda a Zazie, quando, respectivamente, o baniram da polis ultra-pasteurizada e o ignoraram, com olímpico desdém, de toda a religião, ética ou filosofia. Direito divino? Francamente, mas que patranha vem a ser essa!?... E aquele Sófocles, na Antígona, a inventar dramas de conflito fabuloso entre regras eternas e leis mundanas? Outro que tal. Limbo com ele!

d) Quanto a não ser possível avacalhar com o Livro de Job, não deve ser assim tão difícil. Pelo menos para quem consegue avacalhar com a Ilíada e a Odisseia com uma perna às costas e duas palas nas fontes. Refiro-me a mim próprio, naturalmente.

Termino com uma passagem de outro dos autores, além de Homero e de tantos outros, da Ética de Aristóteles:

«Muitos são os assombros do mundo, mas o homem supera-os a todos. (...) Com a sua astúcia chega a domar as feras agrestes das montanhas e subjuga o cavalo de longas crinas e o touro indómito dos montes.
Ele conhece a palavra, o pensamento alado, os costumes urbanos e sabe defender-se dos frios inóspitos, sob o sereno céu, e das fustigantes chuvas. Sagaz e destemido, enfrenta o futuro. Só não pode encontrar salvação contra o Hades, embora saiba curar males sem remédio.
Embora invente sábios e úteis expedientes para além de toda a esperança, caminha necessariamente para o mal ou para o bem. Quando ele respeita as leis da pátria e dos númenes, engrandece a cidade; mas torna-se a sua ruína quando a soberba o empurra para o mal. Não esteja a meu lado, não fale mais comigo quem actua de tal forma.»

- Sófocles, Antígona




terça-feira, novembro 17, 2009

O Que eu aqui escrevi em Junho de 2004

Eu já fui um daqueles optimistas que pensavam que pior que o Guterres não era possível. Pois não só era como foi. E logo ao virar da esquina..
Agora não me apanham noutra. Sei que a seguir ao Durão, poderá perfeitamente irromper um desqualificado ainda pior, um troca-tintas ainda mais descarado.
Por isso, e é mais que suficiente, não me surpreenderá nada que o Santana seja o próximo PM.
Mas quero deixar bem claro o seguinte: Quando tipos do jaez dum Durão Barroso conseguem ascender ao segundo mais alto cargo da nação, estamos conversados: Qualquer um pode (desde que não possua princípios, escrúpulos, ideias, ou vértebras, bem entendido). Se se tratasse de escolher um cidadão competente, um tipo sério, honrado, bem mais interessado em servir o país do que servir-se dele, isso, acredito, seria difícil. Requereria, no mínimo, mérito, inteligência, responsabilidade, cultura. E, sobretudo, empatia entre governantes e governados. Mas como é o contrário disso, como a lógica vai de patas pró ar, nada mais simples: peguem no Santana, na Ferreira Leite, no Portas, no Pacheco, peguem na pandilha partidária toda, esquerdas e direitas (a merda só varia na cor e teor gasoso), peguem até nos Delgados, Vascos - rotos e ratos-, ou qualquer outra prostituta de jornal, enfiem essa tralha invertebrada e viscosa toda num balde, um grande balde, um penico bem espaçoso (não se esqueçam que a porcaria é muita), agitem com energia, misturem bem a mixórdia, e tirem à sorte. Convoquem uma peixeira ou um trolha para extrair o feliz contemplado, sempre dá colorido à coisa, confere - senão solenidade - pelo menos pitoresco ao acto, e pronto, aí tendes. Seja quem for, é irrelevante e ficareis bem servidos. Cagar-se-á para vós, tanto quanto vós vos estareis cagando para ele. Incomoda-vos o vocabulário? Mas a substância não. Devia ser o contrário.
Em Portugal chegou-se a um estado de putrefacção tal, que o burburinho dos vermes já se confunde com a agitação das massas. Ora, as massas, poderão ser alarves, mas não são parvas. Já perceberam que tem mais conteúdo o futebol que a política. E tem. Tanto que é esta que imita aquele, e não o inverso.
De não ser governado, o país viciou-se no desgoverno. Vai à deriva. Entregue ao salve-se quem puder. A clamar por rebocadores, por balsas e bálsamos salva-vidas. A enviar SOS desesperados e apitos lancinantes ao nevoeiro. A invocar Nossa Senhora dos Aflitos e a Providência Divina. E, o que é pior que o resto, a tomar por faróis meros fogaréus de afundadores.
Cada qual agarra-se ao destroço que a vaga destribui e, uma vez montado nele, trata de demover a concorrência. Cada qual chafurda nas ondas o mais que pode, escoicinha, esbraceja, e convence-se que nada, que lá vai resistindo, o melhor que pode, opondo o proverbial instinto de cortiça ao chamamento abissal do fundo.
Governantes e governados execram-se mutuamente. Odeiam-se, sem trégua nem quartel. Não havendo resquício de empatia que os una, tiram desforço empaturrando-se numa antipatia recíproca e inoxidável. As eleições equivalem a ajustes de contas; as urnas a esquifes de facto. O povo sempre estimou, mais que arenas, cadafalsos. Assim, anda quatro anos a reunir provas, a recolher denúncias, a compilar testemunhos, para no fim ter o prazer de vê-los rastejar, aos bandalhos arguidos, uns em penitência, outros em sanha justiceira ou delíquio dengoso, mas todos de roda do patíbulo, vassalos da sua saliva, do seu voto, do seu escárnio e veredicto triunfante. Os eleitos, por seu turno, traumatizados por este martírio cíclico, garantido, nos intervalos dos sufrágios, nos interlúdios dos calvários, vingam-se e fazem pagar com juros a prerrogativa dos carrascos. E, com isso, lá vão juntando lenha para o seu próprio auto. Mais que um projecto comum, é, pois, um jogo, uma joint-desventure. Tudo está bem quando acaba mal. E para que o gáudio se maximize convém que o mal seja cada vez maior. Que exorbite e transvase sem parar. O prazer, a volúpia capital, não está em eleger, mas em deitar abaixo, em arrear, em arrastar pela lama e pelos cabelos, até à guilhotina apoteótica. Desta lógica retorcida, resulta um paradoxo mirabolante: um governo é tão mais divertido, entertainer, quanto pior for. Um governo péssimo, como o actual, na hora do acerto, é garante dum gozo superlativo. Não é por acaso que a multidão escolhe governos cada vez piores. Já Esopo referia o requinte.
Portanto, meus amigos, se não houver eleições, vai ser o Santana. E se houver, vai ser outro qualquer, no mínimo, tão recreativo quanto ele. Isto, pelo menos, eu sei.
Fartai-vos nele e fartai-vos dele. É o costume. Bom apetite! E bom proveito!...


Peço desculpa por esta interrupção, Aristóteles segue dentro de momentos.

Prever o futuro é difícil. Ao contrário da ausência dele, como acabei de demonstrar.
Quem esquece o passado, mata o futuro.

segunda-feira, novembro 16, 2009

Século IV aC

«Realmente, o homem mau apenas obra pensando em si mesmo, e quanto pior se torna, mais aumenta em si este vício; e assim se lhe aponta o nunca fazer nada fora do seu exclusivo interesse. O homem de bem, pelo contrário, apenas obra para fazer o bem, e quanto mais honrado se torna, tanto mais se consagra exclusivamente a fazer o bem, chegando ao ponto de esquecer o seu próprio interesse em se tratando dum amigo.»

- Aristóteles, "Ética a Nicómaco" (Liv IX, Cap.VII)

"Ama o teu semelhante como a ti mesmo", dirá quem?

sexta-feira, novembro 13, 2009

Palavras com raiz - 7. Lei



A palavra Lei radica no latino Lex. Os significados de Lex são vários: Moção proposta por magistrado perante o povo; projecto de lei; contrato; pacto; convenção; ordem; obrigação; cláusula; condição. Aparentado a lex, temos também lexis -palavra, expressão -, donde o nosso "léxico".

Por outro lado, lex também se relaciona, servindo-lhe de raiz (ou o inverso, não é pacífico) a lego - delegar ou transmitir a alguém o encargo de fazer alguma coisa; ou delegar. Ainda hoje, no português, nesse preciso sentido, temos o "legado", o "delegado" ou a "delegação". Também, ainda relativos a Lex, através do "lego", no latim havia o "legitimus" (fixado pela lei; legal), donde o nosso "legítimo"; o lector (leitor; aquele que lê), donde o nosso "leitor"; o lectio (escolher; eleição; texto; leitura), donde o nosso "leitura", mas também a nossa "eleição". Finalmente, citemos ainda "legio" - faculdade de escolher; legião - e, de legio, "legionarius" - legionário.

Não é difícil vislumbrar por detrás destas palavras a sociedade de Roma Antiga. Ora, nesta palavra, como em muitas coisas, os romanos aprenderam -e o aprender romano resultou em três fenómenos básicos: copiar, adulterar ou perverter -, com os gregos. Neste caso, no lego, foi quase cópia. Pois na língua de Homero, salvo seja, Legw também significa escolher, juntar, ler, orar, declarar, ordenar. O futuro de Legw é Lexw. E é de Legw que descende o célebre logos - logos, esse, que será de Heraclito, de Platão, que impregnará todo o pensamento grego e se fixará no Novo Testamento, um texto grego, no significado único de "Verbo de Deus". Segundo João: en arkhe hen logos kai ó logos; hen pros ton Theon - No principio estava o Logos; o Logos estava em Deus. Logos, no entanto, tanto pode significar palavra, como máxima, sentença, decisão, promessa, argumento, ordem, notícia, inteligência, razão de uma coisa, juízo, explicação, valor que se dá a uma coisa, entre outros. O cristianismo fixar-se-á no Verbo, calculo, porque pretendeu assim remontar ao "Dizer de Deus" no Génesis. Isto, no entanto, terá consequências. E nem sempre as desejadas. Às vezes, até as opostas ao espírito inicial.

Ora bem, como vimos num postal anterior, a regra pressupõe uma regência, um reino, uma ordem hierarquizada. Como vamos descobrindo aos poucos neste, a lei instaura um léxico. Ou seja, a regra pertence à ordem das coisas, dos costumes, do cosmos; a lei pertence à estrita ordem da palavra. É claro que num certo sentido também poderemos dizer que a lei é uma espécie de regra escrita. Sim, mas nesse caso, na melhor das hipóteses, será sempre uma interpretação estritamente humana das regras, uma leitura mais ou menos fiel do mapa régio.

Neste contexto, uma das diferenças fundamentais entre o universo grego e o universo cristão-romano, sendo ambos duas mundovisões regradas, é que os gregos colocam as próprias regras antes e acima da hierarquia divina, enquanto os cristãos, enquanto reféns do pensamento hebraico, pessoalizam a regra na lei declarada pelo próprio Deus Ditador único. Quer isto dizer que, para o pensamento grego as regras são absolutamente misteriosas, eternas e metacósmicas -mesmo o Deus-Rex (Zeus) tem que cumpri-las; ao passo que para o pensamento cristão Deus Absoluto dita as regras - as regras são as regras estabelecidas por Deus. Deus lega também, decretando (o livro sagrado é na essência um código jurídico), a forma de cumpri-las; a Igreja faz a mediação e advoga. Convém ainda acrescentar que os gregos viam o divino como uma monarquia e ser-lhes-ia, para não dizer repugnante, culturalmente inaceitável concebê-lo como uma tirania solipsa, lexomaníaca e pseudo-abstracta. Para um grego, Ihavé seria monstruoso - uma caótica quimera que amalgamaria numa única figura toda a casta de princípios contraditórios e antagónicos: a força, o poder, a justiça, a verdade, o amor, a morte, a técnica, a natureza criadora, a inteligência, o ódio, etc. Ora, se havia coisa de que os gregos desconfiavam era destes hibridismos, da mistura entre entidades que por princípio não coexistem pacificamente. Para Iahvé teriam, pois, um nome bem mais apropriado, tanto quanto detestado e temido: Caos. Nisso, Hesíodo chega a ser profético e concordante com o Genesis.

O desenlace lógico desta cultura da "lei" séculos adiante? Maquiavel. Se não há regra, a lei do mais forte refina-se no mais forte colocar-se acima e dispensado de quaisquer leis.
Ou dito de outro modo: sem regra, a lei reflecte apenas as fantasias e aleivosias do momento a ferver e de quem nele a dita. Desliga-se da própria justiça e nenhuma virtude consagra. Vale a pena, a este propósito, escutar Aristóteles, na sua Ética:
«Razão houve, pois, para dizer que se faz justo o homem quando executa acções justas, temperado quando executa acções de temperança, e que caso não se pratiquem actos deste género é impossível que alguém chegue alguma vez a ser virtuoso. Porém, o comum das gentes não pratica estas acções e, locupletando-se de vãs palavras, criam mais uma doutrina e imaginam, através deste método, que adquirem uma virtude. Isto é, por assim dizer, o mesmo que fazem os enfermos que escutam muito atentos os médicos, mas que não fazem nada do que estes lhes receitam; e, assim, como uns não podem ter o corpo são cuidando-se dessa maneira, também os outros não terão jamais sã a sua alma, filosofando desse modo.»
A virtude pressupõe um hábito, um costume, um ethos. Isto é, a virtude pressupõe uma regra. Bom é, por regra, agir bem e não apenas agir obrigado por uma lei. Porque em não sendo voluntário, não é livre; e não sendo livre, não é deliberado, não é intencional, logo não pode ser virtuoso. Se atentarmos na nossa sociedade actual, constatamos uma permanente enxurrada de leis, decretos, multas e burocracias de toda a espécie para coagir os cidadãos a determinados comportamentos, inibições ou desregramentos. É, nua e crua, uma sociedade de escravos - de escravos que acreditam estupidamente que a emancipação de toda a regra significa liberdade, quando apenas consolida a submissão inerme à tirania cada vez mais despótica, opressora e totalitária da lei (e de quem a pilota ou teledirige). Uma lei, sublinhe-se e recorde-se, evadida da regra.
Chamam progresso a um regresso: ao Caos.


PS: Sim, eu sei que a Igreja, através de Tomás de Aquino, tentou bravamente arrepiar caminho . Mas suspeito bem, e a história indicia-o, que tarde demais. Os platónicos do costume já avançavam de dentuça arreganhada, patas na matéria livre, cornos nas nuvens matemáticas e a ciência moderna em riste. Ora, para as cacofonias mundanas, o Maestro Cósmico está-se bem nas tintas.

quarta-feira, novembro 11, 2009

A Disfunção pública (rep)

Fala-se muito em desembaraçar o Estado do seu número excessivo de funcionários. Ainda há dias, na entrevista à RTP, o ministro das Finanças apregoava não sei quantas centenas de funcionários em rampa de lançamento para um qualquer limbo ou aterro sanitário.
É evidente que o Estado, na medida em que se tornou refém de seitas e receitas partidárias (e não só), descambou numa espécie de cancro maior da Nação. Brada aos céus de escândalo a quantidade de mamíferos que por lá se recreia e locupleta. Mas, a bem do rigor, convém que sejamos sérios na análise destes problemas. Por isso mesmo, compete que se diga, com toda a clareza, que se há algo excessivo no Estado Português, e há, esse excesso, essa demasia não reside certamente no número de funcionários. Pelo contrário, os funcionários, tal qual o país, são poucos para tamanho Estado. Relembro até que no tempo em que ainda existia um Império para administrar, o Estado era menos de um quinto do que é actualmente. O País diminuiu, mas o Estado aumentou. Significa que o Estado vive a parasitar a Nação. Essa, de resto, é uma lei antiga e fatal em toda a parte do mundo, só que entre nós ganhou foros de regabofe épico. Porém, repito, e por estranho que pareça, não são os funcionários do Estado os responsáveis por tão descomedida voragem. Acreditem, espantem-se, arrepiem-se, façam como entenderem, mas não são. Querem a demonstração? Aí vai.

Os funcionários do Estado, efectivamente, são poucos: os disfuncionários é que são muitos. Este detalhe é sistematicamente escamoteado. E não devia. Pelo contrário, devia constituir ponto de partida para toda e qualquer diagnóstico sério da epidemia. Como é bom de ver, existe a Função Pública e existe a Disfunção Pública. O país está todo ele disfuncional porque o peso da Disfunção Pública é esmagador em relação à sua congénere. Querem exemplos?
Na educação (que é igual à Saúde, à Justiça, etc): lá estão os funcionários - os professores e os contínuos; e lá estão os disfuncionários - os administradores, os burrocratas do ministérios, a pandilha das DREs, os sindicalistas, os inspectores da pevide, etc. Os professores - isto é, os funcionários - padecem concursos, suportam nomadizações, aturam os educandos das televisões e dos futebóis (e na hora de tocar píveas aos orçamento, vão de charola para o desemprego, ou nem de lá escapam); os disfuncionários ninguém sabe como ali vão parar, mas, uma vez lá catrafilados, uma coisa é sabida: nunca mais de lá saem. A missão dos disfuncionários é impedir que os funcionários funcionem. Quanto pior os funcionários funcionem, ou seja, quanto melhor disfuncionem, mais disfuncionários são precisos para analisar, perceber e engenhar soluções para a disfunção dos funcionários. Invariavelmente, os disfuncionários, após grandes marchas e serões forçados, autênticas maratonas de fazer corar um kafka, descobrem que há funcionários a mais. A coisa não está a disfuncionar como deveria e inicialmente era previsto (por eles, naturalmente). É preciso espiolhar, avaliar e descobrir quem teima em funcionar. E pô-lo no olho da rua. A disfunção Pública só tem e cumpre um dogma inexorável: o único problema, fonte de todos os problemas, é a escassez de disfuncionários e o excesso de funcionários. Essa lei única, soberana e absoluta deriva do facto de todo o disfuncionário ter sempre um familiar, amigo ou confrade cujo contributo é imprescindível para a Disfunção Pública. Toda a Disfunção Pública será sempre pouca. Tudo isto pode parecer absurdo, mas não é: é apenas perverso.
E a perversão imbrica na mentalidade assaz cavilosa mas típica do disfuncionário: está convencido que ele é que é o funcionário e que a Função Pública é uma disfunção. Traduzindo para o concreto: o Estado não existe para servir os contribuintes; os contribuintes é que existem para servir o Estado. A escola não serve para instruir, nem educar; os tribunais não existem para ministrar a justiça; os hospitais não estão lá para zelar pela saúde dos cidadãos. Não, tudo isto existe para os disfuncionários brincarem às reformas, às experiências, às cobaias com o dinheiro e o coiro alheios -isto é: para os disfuncionários perseguirem, torturarem e sanearem os funcionários. A seguir ao 25 de Abril, faziam-no em nome da higiene política, agora fazem-no em nome da higiene económica. Não tarda muito e será em nome da higiene sexual.
Por outro lado, logo que se apanha na Disfunção Pública, o disfuncionário adquire a firme convicção que não é condignamente tratado: o dever do Estado é promovê-lo e subsidiá-lo em todos os seus caprichos e mariscadas. E ele não está ali para outra coisa. Desata pois a disfuncionar com todas as suas forças. Sabe que quanto melhor disfuncionar, tanto maiores serão as suas chances. Quando não andam a perseguir, torturar e sanear funcionários, os disfuncionários conspiram, insidiam, manobram e intentam ultrapassar-se uns aos outros. O pior, invariavelmente, vence e adquire poderes, privilégios e prorrogativas acrescidos.
De tudo isto, com é facil de calcular, resulta um panorama deveras pitoresco:
Há todo um Estadão a cavalo na Nacinha. Compõem-no um número cada vez mais reduzido de funcionários e um número sempre crescente de disfuncionários. Os disfuncionários apregoam o "estado mínimo", ou seja, um número mínimo de funcionários que sustentem laboralmente um número máximo de disfuncionários. Bem como um número máximo de contribuintes que paguem ambos, claro está. A tarefa dos funcionários é canalisar as receitas dos contribuintes para os disfuncionários e carrear as directivas e receitas destes para o país. Não há qualquer exagero em dizer que os disfuncionários são parasitas compenetrados de todo o restante dispositivo: parasitam laboralmente os funcionários e parasitam monetariamente os contribuintes. Alcançamos assim a demonstração inicialmente requerida: na verdade, o Estado não tem funcionários a mais, até tem a menos: o que tem a mais, disparatadamente, é parasitas. Consequentemente, o que qualquer governo sério precisa de reduzir, com a máxima urgência, caso pretenda impedir o fatal colapso de tamanho rilhafoles e rilha-orçamentos, é, sem sombra de dúvida, o número de parasitas, não o de funcionários.
Cito um caso emblemático e verídico: fulano X trabalha no Instituto Y. Não tem mesmo feito outra coisa na vida nos últimos 25 anos. Desunha-se todos os dias executando as tarefas de três mais a chefe e a chefe da chefe. Atura, além do som ambiente do galinheiro, os ralhetes e os humores pré-menstruais (ou pós-menopáusicos) da hierarquia. Ciclicamente, ainda contempla, a cada fim-de-mês, a passagem do cometa Z, um assessor/avençado/ou lá o que é misterioso, que só ali passa para receber a renda choruda inerente à sua condição fantástica (uma entre várias, manantes de diversos institutos, direcções e empresas). Pois bem, o Instituto Y já se desembaraçou de diversos funcionários, mas os cometas, esses, prosseguem inexpugnáveis. Cometas, plural, digo bem, porque, entretanto, de um passaram a dois. Lá vão surgindo, todo o fim-de-mês. São aos milhares, às constelações por todo esse país desgraçado. Provenientes e ioiozantes das galáxias partidárias. Dos buracos negros clientelares. Vão acabar connosco se não acabarmos com eles.
Este postal é caótico e a raiar o alucinante, mas não me culpem nem refilem comigo. Limitei-me a transcrever o mais cruamente possível a realidade duma terra lançada aos bichos.

terça-feira, novembro 10, 2009

Civilização helénica

Os senhores tradutores dos evangelhos -que, recordo, foram originalmente escritos em grego e é assim que cultivo o hábito de os ler -, grafaram, regra geral, na terceira bem-aventurança qualquer coisa como:
«Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra».
Depois do Céu ficar prometido aos "pobres de espírito (ou em espírito)", estaria assim a Terra destinada aos "mansos".
Esta palavra "mansidão" atribuída a pessoas soa mal. Mansos são, quando o são, os bichos ou as alimárias, de colo, casa ou carga. Está bem que o homem agora já regrediu a macaco, mas, mesmo assim, "manso" sempre me soou, e soa, com injusteza. Além de áspero, é deselegante.
Dizer, então, "benévolo", "calmo", "sereno", "tranquilo" ou "brando" parece-me descrição muito mais apropriada a uma qualidade do carácter humano.
Até porque o texto no original diz isso mesmo: "makarioi oi praeis". É certo que "praos" também pode significar manso, mas porquê traduzir "manso" e não "sereno", "suave" ou "benévolo" em se referindo a humanos?
E depois "possuirão"... Ainda soa mais áspero que "mansos". Também não é isso que lá está. "Kleronoymhesoysin" - de kleronomia - não significa "possuir", mas "herdar", no sentido de "participar e partilhar herança". Este "possuirão" faz imenso sentido numa bíblia protestante, sobretudo calvinista, mas o escândalo é que acabo de consultar duas Bíblias católicas (e dos Franciscanos/Capuchos, imagine-se).

As palavras de Jesus Cristo, segundo Mateus, no meu modestíssimo entender, andarão mais próximas disto:
«Bem-aventurados (eternamente felizes) os benévolos porque herdarão a Terra».

O que é que isto tem a ver com judaísmo? Rigorosamente nada.

No entanto, há um autor que também recorre a este termo -"praos-, enquanto virtude do carácter humano, definindo-o nos seguintes moldes:
«O homem verdadeiramente sereno sabe não deixar turvar-se nem arrastar pelas paixões, mas indigna-se quando a razão assim o determina e pelo tempo que ela lhe ordene".
Viveu antes de Cristo, alguns séculos, e chamava-se Aristóteles. (Ética a Nicómaco, Livro IV, cap. V)
O Homem sereno também se indigna, ou irrita, mas por justas razões e com justa medida. Tal qual Jesus se indignou diante dos vendilhões do Templo.
Não deve é confundir-se nunca com os coléricos e os rancorosos. Dos quais Aristóteles, como foi sempre seu timbre, nos deixou uma descrição lapidar:
«Os de carácter colérico irritam-se prontamente contra pessoas - e em ocasiões - que o não merecem. É certo que também se apaziguam depressa e é o melhor que fazem. (...) Assim, os coléricos são dotados duma vivacidade excessiva: irritam-se por tudo e contra todos, donde lhes provém o nome que se lhes dá. Os homens rancorosos, todavia, são mais difíceis de governar: a sua irritação dura largo tempo porque sabem dominar os ímpetos do seu coração e não se apaziguam enquanto não tiverem devolvido o mal que lhes tenham feito. Só a vingança aplaca a sua cólera, porque apenas mediante ela o prazer substitui a pena que os devora. Mas enquanto o seu ressentimento não estiver satisfeito, carregam um peso que os oprime, e como não o manifestam às claras, ninguém pode curá-los através da persuasão. É necessário tempo para que a cólera se corroa a si mesma; tais espécimes são os mais insuportáveis dos homens para si próprios e para os seus amigos mais próximos.»

Judaico-cristão é um oximoro. Dos mais gritantes e dignos de indignação.

E agora que, decerto, já despertei a cólera duns e reavivei os rancores de outros, retiro-me. Tranquilamente.

domingo, novembro 08, 2009

À beira da sepultura



O método analógico ainda é o melhor. Imaginando a civilização como um automóvel, a ciência corresponderia ao acelerador, a religião ao travão e a filosofia ao volante. Numa civilização saudável, como num conjunto motorizado em perfeitas condições de funcionamento e operação, prevaleceria uma harmonia entre os diversos órgãos de condução. Sem acelerador, a máquina não avança; sem travão, despista-se seguramente; sem o volante, não viaja nem logra um destino. Da mesma forma, o excesso de acelerador, como o excesso de travão, ou o excesso de guinadas no volante não constituem forma fiável de condução. No momento em que a nossa civilização, segundo dizem, despontou, na Grécia Antiga, posso garantir, um conceito congregava as obsessões daquela boa gente: equilíbrio. Vinte e muitos séculos depois estamos nos antípodas do nosso próprio berço: a actual cultura equivale a um veículo sem volante, quase sem travões e com o acelerador a fundo. Mais que à beira do desastre, eu diria que nos encontramos à beira da sepultura.

sábado, novembro 07, 2009

Resfolegar




Mandei lavar o convés, remover as teias do tombadilho e desenferrujar os canhões. Com um bocado de sorte, ventania a preceito e vaga de feição, isto ainda navega!...

Entretanto, alguns leitores, por email, reincidiram numa questão que ciclicamente sobrevem: onde podem comprar o "Tratado da Besta"?
Bem, leitores, a resposta é simples: não podem. Não está à venda. Lê-se aqui de vez em quando, quando a telha mo consente ou as teias do acaso o permitem. Há privilégios (desprazeres, ou calafrios), risquem onde não interessar, absolutamente exclusivos aos leitores desta anacrónica página.

Quanto ao autor do referido tratado, anda a escrevê-lo há coisa de dez anos, mais dia menos dia, a pensá-lo há trinta e a vivê-lo há bastantes mais . Não sou exactamente eu, mas é quase como se fosse. Participa da minha inteligência mas vive arredado, a léguas, da minha liberdade. Eu chamo-lhe o "rapaz do andar de baixo". Entre nós existe um contrato vitalício: ele fornece-me o tempo, eu forneço-lhe a luz. Sem tempo não há luz; sem luz, a eternidade inteira não chegaria.

Sete fôlegos, dizem, tem o gato. E não voa.

PS: Fala-se muito em direitos de autor. É como tudo: devia falar-se, sobretudo, em deveres de autor. O de não se vender feito puta seria o principal de todos eles. Ocorreu-me esta bela ideia, anteontem, ao entrar no "Continente" e deparar logo de entrada com uma esquina onde competiam, em maquilhagens de lupanar, a última do Saramago e a última do Dan Brown. Se a alfabetização foi para isto, então, em verdade vos digo: abençoados os analfabetos!

Deixo-vos com esta verdadezinha final, para meditarem nas horas livres: quanto mais baixo desce o homem, mais inclinado e autorizado se sente a julgar e corrigir Deus.