sábado, novembro 18, 2006

Aos senhores jornalistas, com afeição...

Sobre os escribas de vida fácil que se alugam ao caracter nas redacções dos pasquins, os mesmos que sobremaneira estipulam, em tom bufo, que a ostentação duma cara sem vergonha vale mais que a ostentação de vergonha na cara, e enquanto não me ocorre nada de mais pitoresco para lhes atirar, adianto a decapagem que se segue, a qual subscrevo integralmente, com todas as letras, até à mais insignificante vírgula!...

«Diz-se que os jornalistas são formigas que se aninham na orelha da fama, ou então, segundo outros autores, que são anelídeos do tipo vermes ranhosos do nariz, os que tiram nabos da púcara sem se escaldarem, vermes esses que só se sustentam a mostarda e defecações, porém duma tal suceptibilidade, meninos, que não podem ouvir ninguém tratá-los de sacanas sem bater logo o pezinho e ranger a dentuça. Ora acontece que os tratei por sacanas. Tivesse eu melhores conhecimentos de zoologia e com toda a certeza os haveria tratado de canalhas. Mas aproveitei mal e porcamente as aulas da Sorbonne. Por conseguinte, desta feita, advertido pelo efeito das minhas anteriores injúrias e com vontade de dar livre curso à presente obra, que se recomenda, notem bem, tanto pela qualidade da escrita como pela serviçal intenção do autor, que consiste em facilitar aos leitores, e em primeira mão aos suplicantes do diploma de licenciados, o amargo estudo da língua materna, com solicitude pois me apresso a colocar, já não em nota de rodapé mas no lugar mais honroso, em pleno exórdio, um ramalhete bonito de desculpas destinado aos Cavalheiros das Redacções. Retiro tudo quanto disse. Em rigor, poder-se-á apertar a mão a um jornalista. Onde é que se viu, aliás, que um homem que haja apertado a mão a um jornalista, aterrado depois por semelhante desonra alguma vez tenha dado cabo dos miolos ou sequer planeado tal gesto? Tê-lo-á a mãe expulso, dizendo-lhe: Some-te da minha vista, que já não és meu filho? Terá a casta noiva desse traste ido para freira, e terá ele ouvido, ao apresentar-se ante as grades do convento, aonde quiçá uma outra demência a conduzira, as terríveis palavras da irmã rodeira: Para trás, xô, tu que apertaste a mão a um jornalista? Não senhor! Direi até mais: há quem tenha por coisa lisonjeira isso de conhecer um redactor do Diário ou mesmo do Notícias. Embora se possa ter tal coisa na conta de notória perversão, ou, pelo menos, duma espessa parvoíce, bem preciso seria mostrar-me eu pejado de má fé para esconder tão interessante particularidade, de resto omitida no Dicionário, cuja explicação da palavra jornalista sobretudo certifica o repugnante terror dos académicos ante os periódicos, como dizem no correio. Declaro portanto ser possível apertar a mão a um jornalista. Com certas reservas, obviamente. Lavar-se uma pessoa logo a seguir. E não só a mão contaminada, mas também as restantes zonas do corpo, em especial as partes sexuais, visto ainda se não saber muito bem como envenena o jornalista as vítimas e por isso pairar a incerteza quanto à possibilidade de ele expandir por todos os poros da pele ou da roupa uma espécie de peçonha volátil e singularmente pestilenta detentora de extraordinária aptidão para se alojar nas rugas flexoras, e até nas mais dissimuladas pelo hábito e a decência. Dirijo-me agora aos que têm um domicílio. Caso se vos apresente à porta um jornalista, até há pouco dava eu o conselho que prontamente o atirassem escada abaixo, sem ouvir coisíssima nenhuma. Mas dizia-o sem razão. Vou reparar a injúria feita à imprensa dando um conselho mais moderado, que há-de pôr toda a gente a concordar. Antes disso, contudo, suplico aos Cavalheiros dos Jornais, e em primeiro lugar aos Cavalheiros dos Jornais Críticos, que considerem o facto de as minhas precedentes obras haverem sido redigidas nas primícias juvenis, quando ainda me não encontrava em perfeita posse da experiência e da reflexão. Entre grandes belezas que nelas se discernem, certos conceitos apressados, mais do foro do inconsiderado do que do vinco das calças, não deverão ser entendidos como expressão acabada das minhas ideias. No presente escrito se verá de resto como entretanto ganhei juízo. E como hei-de ainda ganhar mais. Quem sabe, talvez um dia destes acabe por dizer que um jornalista é quase um ser humano. Mas ainda lá não cheguei, estava só a falar aos que têm domicílio. Não atirem por conseguinte o intruso para a rua. Poderia a brincadeira sair-vos cara, acordando logo maldispostos no dia seguinte ao darem com o vosso nome escrito com espumante baba nas colunas do Dia [ou do "DN", do "JN", da "Sábado", do "Expresso", etc, etc*]. Façam pois entrar o visitante, mas apenas para o vestíbulo. Caso não disponham dum vestíbulo, terão concerteza uma retrete. Seja como for, nunca para a cozinha, não é sadio metê-lo lá. Calcem um bom par de luvas, cubram a cabeça com o pano preto que o fotógrafo usa para de nós obter a imobilidade relativa, e perguntem, então, cortesmente mas com vigor, a quem devem um tal incómodo. Não ouçam a resposta, declarando logo: Mais tarde hei-de ver isso. E depois, deixando de ter em conta o que narra o perigoso escalopendra, ponham-no a andar com toda a violência. Façam isso de supetão e à primeira. Em seguida, onde topem vestígios dessa medusa, esfreguem com palha d'aço, desinfectem o ar queimando enxofre e vaporizem pelo aposento uma essenciazinha aromática capaz de arrumar no esquecimento o remédio e o mal.
Espero que agora os jornalistas já possam ver com outros olhos as produções do meu génio.»

( - Aragon, "Tratado do Estilo")


Aproveito para referir que, embora tendo dele um série de livros que nunca li (exceptuando "A Cona de Irene"), sempre olhei de soslaio para Aragon, como um surrealista traidor, convertido à bufaria e jagunceria comunistóide. Pois bem, lendo este "Tratado do Estilo", escrito em 1928, antes portanto da bizarra adesão à seita, devo reconhecer que estou agradavelmente surpreendido.

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