segunda-feira, junho 19, 2006

A América em 1873, pelos olhos de Eça de Queirós



«V.poderia querer que eu lhe falasse de Nova iorque e dos Americanos. Mas esta carta vai longa e quem sabe o que o correio francês -esse pirata - lhe fará pagar por ela!
De Nova Iorque, dir-lhe-ei que é realmente a Nova Iorque da tradição europeia: - a grande, a extraordinária, a estrondosa Nova Iorque. Na América não se tem contudo esse amor de Nova Iorque, porque há na União cidades rivais. Filadélfia é Nova Iorque sem o deboche. Filadélfia é uma cidade muito moral - dizem aqui os Quakers. Os outros dizem que é simplesmente um alcouce. St. Louis, é outra cidade que não difere de Nova Iorque senão em ser mais bela na paisagem. Chicago, é a todos os respeitos melhor que Nova Iorque - e é sem dúvida a mais extraordinária cidade do Mundo: na carta que lhe escrevi - e que V. não recebeu - eu dava-lhe pormenores curiosos sobre Chicago, que é a cidade-resumo do génio evolutivo das populações do Oeste. Nova Iorque tem, mais do que as outras, o elemento europeu, manifestado por estes factos - lorettes, restaurantes, crevês, escândalos, agiotagem -: é o que a faz superior. De resto é uma cidade que em parte amo e em parte detesto. Amo-a, porque... porque sim - e detesto-a, porque deve ser detestada. O que isto é, V. não imagina: a violenta confusão desta cidade, o extraordinário deboche, o horror dos crimes, a desordem moral, a confusão das religiões, o luxo desordenado, a agiotagem febril, a demência dos negócios, os refinamentos do conforto material, os roubos, as ruínas, as paixões, os egoísmos - tudo isto está aqui chauffé ao rouge. Isto não pode durar, todo o mundo o diz.
É uma cidade que tem cem anos e que está podre: está detraquée. Viveu muito, muito depressa - e chegou sem educação. Porque a verdade é esta: Nova Iorque não tem civilização. A civilização não é ter uma máquina para tudo - e um milhão para cada coisa: a civilização é um sentimento, não é uma construção. Há mais civilização num beco de Paris, do que em toda a vasta Nova Iorque. Aqui não há gosto, nem espírito, nem distinção, nem crítica, nem classificação - nada; uma sociedade podre de rica, afogada em luxo, exagerando as modas, inventando muitas - e querendo enriquecer mais e ter mais luxo ainda. Você deve ter lido o que se tem passado aqui com o Crédit Mobilier e com outras poderosas associações bancárias ligadas ao sistema de administração: tem-se apenas descoberto - que os homens públicos, de alto a baixo, são um rolo de ladrões. Ladrões por toda a parte, eis a crítica da administração. Ladrões por toda a parte, eis a crítica do comércio. Ladrões por toda a parte, eis a crítica das ruas. Ladrões! Nova Iorque transborda de ladrões: veste-os, exporta-os, vende-os - e quantos mais enforca, mais lhe nascem. Se Você sai do seu hotel e encara alguma das grandes ruas de Nova Iorque, fica aterrado: aquela agitação, estrondo, ruído, febre, rostos consumidos e secos, toilettes únicas, carruagens nos passeios, ónibus aos lados, caminhos de ferro por cavalos no centro da rua, caminhos de ferro à máquina por cima das ruas, junto aos tectos das casas, o aparato imenso da polícia, a excentricidade dos anúncios, o rumor apressado de todo omundo... Compreende logo que está entre um povo bárbaro, que aprendeu a civilização de cor. Mas bárbaro como é - que força, que originalidade inventiva, que perseverança, que firmeza! - É estranho! E ao mesmo tempo que grossaria de maneiras: revólver, praga e empurrão, algumas palavras de inglês e muita saliva - eis o que é a língua americana. Como eu detesto esta canalha! Como a mais pequena aldeia de França é superior, imensamente superior pela sua civilização a esta orgulhosa Nova Iorque, que se chama a si mesma, como Roma - A Cidade. Estúpida Nova Iorque - que fez ela jamais para se chamar A Cidade? Paris fez a Revolução, Londres deu Shakespeare, Viena deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa... deu-nos a nós - que diabo! Mas esta estúpida Nova Iorque, o que tem dado? Nem mesmo as grandes invenções da América são dela. Aqui quem inventa, quem inventa por todos, quem inventa sempre, é Chicago. Chicago, sim, tem dotado o Mundo com as três quartas partes das máquinas que ele possui. Mas Nova Iorque? Nunca siu nada de Nova Iorque - nem um homem, nem uma ideia, nem um livro, nem uma máquina, nem uma vitória, nem um quadro, nem um dito. Nova Iorque é um tour-de-force da brutalidade - nada mais. E no entanto, meu amigo, que diabo! - é necessário amá-la. Com as suas grandes avenidas, tão cobertas de árvores e de sombras como um bosque, com a beleza extrema das suas mulheres, com as suas grandes praças onde a relva é por si só um espectáculo, com as suas igrejas góticas, todas cobertas de trepadeiras e mal aparecendo por detrás da folhagem das árvores (jóias de arquitectura contemporânea), Nova Iorque, com o seu sumptuoso ruído, com o romantismo dos seus crimes por amor, com os seus parques extraordinários que encerram arbustos e tanques - com a sua originalidade, com a sua caridade aparatosa com as suas ecolas simplesmente inimitáveis, os seus costumes, os seus teatros (aos quatro em cada rua), é uma tão vasta nota no ruído que a humanidade faz sobre o globo - que fica para sempre no ouvido! Eu estou aqui a escrever-lhe - e está-me a lembrar com saudade o rolar dos tramways nas ruas. - Querida Nova Iorque! - Não, odiada Nova Iorque!»

Monreal, 20 de Julho de 1873

- Eça de Queirós - Carta a Ramalho Ortigão - in "Correspondência, 1ºVolume"

Reconheçam: Há coisas que só mesmo no Dragoscópio.

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