sexta-feira, junho 02, 2006

Acefalus Universitarius



Quando chega a canícula, aqui no meu eremitério, tenho por hábito assar sardinhas. Chegam-me geralmente, esses saborosos peixes, trazidos por mão benemérita - desse povo simples que ainda venera os anacoretas - e embrulhados em folhas de jornais diários (que finalidade mais louvável e apropriada não se lhes reconhece).
Enquanto decorre o assado, para entreter a espera, calha, por vezes, deitar uma vista de olhos às letras impressas no papel que escapou ao atear do braseiro e aguarda expedição garantida para o caixote do lixo.
Ora, a embrulhar o pitéu de hoje, dei com o seguinte naco de prosa de ontem:
«Não vale a pena repudiar o futebol em nome de valores mais importantes, nem compará-lo com o que não é comparável. O futebol é um entretenimento e um dos poucos redutos onde ainda podemos cultivar instintos básicos sem consequências: apoiar "os nossos", detestar "os outros", apoiar "os fraquinhos" (normalmente, equipas africanas), insultar "os fortes" (normalmente, a Alemanha ou a Inglaterra), dizer umas asneirolas de cerveja numa mão e a piza encomendada na outra. É um programa um bocadinho primitivo? Pois é, mas já agora deixem-me também socorrer-me da minha cauçãozinha intelectual. Serve-me Chesterton, que dizia que a visão intelectualóide do mundo "nos fez pensar que o nosso grande inimigo (…) seria a nossa 'natureza inferior', ou seja, os nossos prazeres e apetites, que na verdade são coisas inteiramente inocentes em si mesmas. (…) Lembra Tennyson, (…) que falava do melhoramento moral como o processo (…) de 'ultrapassar o primitivo' em nós. (…) Mas porque haveríamos de querer ultrapassar o primitivo em nós?"
Que naco bestial!, congratulei-me para com as minhas escamas.
Falta dizer que sempre que deparo com tão estimulantes perorações, não me contenho dum passatempo privado, assaz desopilante, que consiste em ir anotando as passagens mais maravilhosas.
Coisa que, com paciência e bonomia de santo, fiz, mais uma vez e da seguinte feição:
«Não vale a pena repudiar o futebol em nome de valores mais importantes, nem compará-lo com o que não é comparável.»
- Sim, sem dúvida... O futebol e o haxixe, a televisão, a masturbação, a bebedeira, os best-sellers e até as drogas pesadas... Abençoado argumentário!
«O futebol é um entretenimento e um dos poucos redutos onde ainda podemos cultivar instintos básicos sem consequências: apoiar os “nossos”, detestar os “outros”...»
- Outro desses redutos nenucos, verdadeira creche para adultos, depreende-se, é escrever colunas de opinião no DN. Finalmente, torna-se compreensível o que vácuos exibicionistas do gabarito deste fulano, mais a Côncio, a Lopes, o Beato das Neves, o Bacoco Resendes, o Casse-tête Ruben, o João Miguel, o Pedregulho Lomba, o Comissário Político Graça Moura, o Vicente à Rasca, o Estrabo-Medeiros, o Micro-Vitorino, a filha do Amaral Dias e o necas-plus-ultra Luís Delgado por lá fazem: entretêm-se. Ululam. Brandem as mocas. Atiram pedradas às nuvens. Ou seja, “cultivam instintos básicos sem consequências", com realce para aquela modalidade que consiste em, com invariável chinfrim, apoiar os “deles” e detestar os “dos outros”. Espero que o jornal lhes cobre generosamente o recreio, o desporto radical, porque se a administração do diário - que de referência já não tem nada, mas de indigência tem quase tudo-, então a administração ainda é mais patega que os colunistas e mais lorpa que ela só mesmo os infelizes que desembolsam dinheiro por um tal desperdício de papel. Está bem que a maior parte das pessoas apenas o compra por causa dos anúncios, mas mesmo assim...
«Dizer umas asneirolas de cerveja numa mão e a piza encomendada na outra...»
-Já todos tínhamos percebido que este bestunto, à falta duma merecida sachola, mantinha invariavelmente as mãos ocupadas com outras coisas e escrevia os seus artigos com os pés. Os detalhes sórdidos do malabarismo, não obstante, eram, de todo, desnecessários. São certamente habilidades dignas de um circo Chen qualquer, mas nada abonatórias de um pretenso escriba-a-dias. Além de que fomenta a nossa percepção, tanto ou mais do que a nossa suspeita, de estarmos diante dum quadrúpede eventualmente amestrado, ou, o que ainda é mais inquietante, dum molusco octópode cuja proveniência extraterrena é de ponderar. Eles escrevem... Este, pelo menos, tenta.
«É um programa um bocadinho primitivo?»
- De modo nenhum. Os primitivos, nossos venerandos ancestrais –nossos, note bem, não seus -, dispensam olimpicamente os seus menoscabos. Não fossem eles e não estaríamos nós aqui hoje. Além de que não consta, está mesmo fora de hipótese, que os primitivos jogassem à bola e, ainda menos, que se babassem, em delírio pacóvio, defronte de tão repetitivo espectáculo. O futebol, rezam as crónicas, foi inventado em Inglaterra, não haverá mais de dois séculos. Por conseguinte, a futebolosa mania - a grunha compulsão para espreitar marmanjões em calções aos chutos num pedaço de ar forrado a cauchu e couro -, não tem nada de primitiva. Pelo contrário, é fenómeno típico dos tempos modernos, das eras industriais. O que até a lógica atestaria, caso um Zé Chimpo destes (e as manadas congéneres que infestam o território) toscasse minimamente o que é a lógica: Um desporto de massas só é possível a partir do momento em que existam as massas. Os primitivos, mesmo os trogloditas lendários, tinham coisas mais sérias e essenciais com que gastar o seu tempo. Manterem-se vivos era uma delas. Conseguir fêmea em tempo útil, de modo a reproduzirem-se, era outra. Aliás, como meta principal das suas ocupações figurava o tentarem esforçadamente distinguir-se dos chimpanzés e não, como o hooliganesco articulista recomenda, o regredirem neles com gana permanente, denodo sempre-viçoso e uma veemência a raiar o frenesim.
« Pois é, mas já agora deixem-me também socorrer-me da minha cauçãozinha intelectual...»
- Isso, caro símio vagamente alfabetizado, temo bem, já exorbita as competências de qualquer instância. Tamanho e tão crónico desvio, já não vai lá com cauçãozinha ou, sequer, com cauçãozona. No melhor e mais piedoso dos casos, justificaria uma daquelas pulseiras de localização e a apresentação regular às autoridades. Ou neurolépticos dos fortes, em doses maciças, pela goela abaixo, com internamento compulsivo durante as crises mais agudas. Sem nunca esquecer, é claro, um açaime e trela reforçada sempre que trotasse na via pública. Decerto não me enganarei muito se presumir que, nos intervalos de emborcar cervejolas e assolar pizzas de anchova, o caro aspirante a cro-magnon desça aos povoados, soltando urros e arrotos, disposto a sabe Deus que vandalismos e implicâncias.
« Mas porque haveríamos de querer ultrapassar o primitivo em nós?»
- Realmente, caro Pan-Zé. Tomara a vosselência alcançá-lo, ao primitivo - quanto mais não fosse na postura erecta! Ora, se não o alcança como poderia ultrapassá-lo? É, portanto, um risco que jamais corre e uma experiência que, creio bem, lhe permaneça interdita pela vida fora. Há todo um processo evolutivo que, dado o estágio recém-reptiliano onde ainda se encontra, se adivinha lento, penoso e complicado. Passar-se-ão ainda alguns séculos, por certo; os seus descendentes terão ainda que desenvolver, com base nessa sua gelatina mental embrionária, um cérebro. Autêntico trabalho de Hércules, o que os espera, coitados, mas tenhamos fé.
« Vem aí a bola? Sejamos primitivos.»
- Isso, para si, naturalmente, deve ser muito excitante. Compreende-se. Mas para nós (impossível fazer-lhe entender), não. É que (caso o equipasse a faculdade de entendimento decerto avaliaria sem dificuldade de monta) o que para si constituiria uma promoção, para nós, lastimavelmente, mais não estadearia que um vergonhoso retrocesso.


Porém, agora reparo, o mais fascinante é o título com que este primata antropóide condecora, em rodapé pomposo, a fronha nitidamente patibular que serve de espanta-pardais ao asneário: “professor universitário”...
Dá para fazer uma pequena ideia do que penarão os desgraçados alunos dum tal gorila maguila.
Eu, com franqueza, já estou por tudo. Aos professores universitários, e outros, já nem peço competência, sequer sabedoria; contentar-me-ia -corrijo: prostrar-me-ia deslumbrado, louvando a Deus - com um resquício de pudor.

PS: Questões gramaticais do primor de um "mas já agora deixem-me também socorrer-me" escapam à minha órbita. Estão mais ao nível do mestre-escola. É algo que, espero bem, o sempre atento Hommo-prontuarius não deixe passar impune.


(E agora vamos ao pitéu, que já cheira. É deveras pacata, mas salutar, a vida de um eremita.)

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