terça-feira, setembro 13, 2022

O Dinheiro - II. Bem explicadinho, pelo Filósofo




 «Conforme esta breve exposição, é evidente que o governo, tanto o das famílias particulares como o dos Estados, contém como parte integrante todas as maneiras naturais de adquirir as coisas necessárias ou úteis à vida. Ele deve encontrar sob sua mão todas as coisas, ou, se não, saber onde tomá-las. As verdadeiras riquezas são essas; não é difícil determinar a quantidade necessária para o bem-estar. Sólon não se referia a elas quando dizia: O homem quer acumular sem fim e sem medida. (...)

Existe, portanto - mostramos agora a razão disso -, um gênero de riquezas naturais próprio à economia doméstica tanto quanto à economia política. Mas existe também um outro gênero de bens e de meios que comumente chamamos, e com razão, especulativo, e que parece não ter limites. Alguns os confundem com as riquezas de que acabamos de falar, por causa da sua afinidade. Embora elas não estejam muito distantes, não são a mesma coisa: as primeiras são naturais, enquanto as segundas são um produto da arte e da experiência. Comecemos pela seguinte observação: cada coisa que possuímos tem dois usos, dos quais nenhum repugna a sua natureza; porém, um é próprio e conforme a sua destinação, outro desviado para algum outro fim. Por exemplo, o uso próprio de um sapato é calçar; podemos também vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra coisa, isto sem que ele mude de natureza; mas este não é o seu uso próprio, já que ele não foi inventado para o comércio. O mesmo acontece com as outras coisas que possuímos. A natureza não as fez para serem trocadas, mas, tendo os homens uns mais, outros menos do que precisam, foram levadas por este acaso à troca. Tão pouco foi a natureza que produziu o comércio que consiste em comprar para revender mais caro. A troca era um expediente necessário para proporcionar a cada um a satisfação de suas necessidades. Ela não era necessária na sociedade primitiva das famílias, onde tudo era comum. Tornou-se necessária apenas nas grandes sociedades e após a separação das propriedades. É até mesmo corrente ainda hoje entre vários povos bárbaros. Quando uma tribo tem de sobra o que falta a outra, elas permutam o que têm de supérfluo através de trocas recíprocas; vinho por trigo ou outras coisas que lhes podem ser de uso, e nada mais. Trata-se de um gênero de comércio que não está nem fora das intenções da natureza, nem tão pouco é uma das maneiras naturais de aumentar seus pertences, mas sim um modo engenhoso de satisfazer as respectivas necessidades. Foi esse comércio que, dirigido pela razão, fez com que se imaginasse o expediente da moeda. Não era cómodo transportar para longe as mercadorias ou outras produções para trazer outras, sem estar certo de encontrar aquilo que se procurava, nem que aquilo que se levava conviria. Podia acontecer que não se precisasse do supérfluo dos outros, ou que não precisassem do vosso. Estabeleceu-se, portanto, dar e receber reciprocamente em troca algo que, além de seu valor intrínseco, apresentasse a comodidade de ser mais manejável e de transporte mais fácil, como o metal, tanto o ferro quanto a prata ou qualquer outro, que primeiramente se determinou pelo volume ou pelo peso e a seguir se marcou com um sinal distintivo de seu valor, a fim de não se precisar medi-lo ou pesá-lo a toda hora. Tendo a moeda sido inventada, portanto, para as necessidades de comércio, originou-se dela uma nova maneira de comerciar e adquirir. A princípio, era bastante simples; depois, com o tempo, passou a ser mais refinada, quando se soube de onde e de que maneira se podia tirar dela o maior lucro possível. É este lucro pecuniário que ela postula; ela só se ocupa em procurar de onde vem mais dinheiro: é a mãe das grandes fortunas. De facto, comumente se faz consistir a riqueza na grande quantidade de dinheiro. No entanto, o dinheiro é somente uma ficção e todo seu valor é o que a lei lhe dá. Mudando a opinião dos que fazem uso dele, não terá mais nenhuma utilidade e não proporcionará mais a menor das coisas necessárias à vida. Mesmo se se tiver uma enorme quantidade de dinheiro, não se encontrarão, por meio dele, os mais indispensáveis alimentos. Ora, é absurdo chamar "riquezas" um metal cuja abundância não impede de se morrer de fome; prova disso é o Midas da fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável avareza, concedera o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse. As pessoas sensatas, portanto, colocam em outra parte as riquezas e preferem (e nisto estão certas) outro gênero de aquisição. As verdadeiras riquezas são as da natureza; apenas elas são objeto da ciência econômica. A outra maneira de enriquecer pertence ao comércio, profissão voltada inteiramente para o dinheiro, que sonha com ele, que não tem outro elemento nem outro fim, que não tem limite onde possa deter-se a cupidez. Em geral, todas as artes querem indefinidamente seu fim. A medicina, por exemplo, que tem por objeto a saúde, abarca todos os casos que levam ao seu restabelecimento, que são inúmeros. Mas cada um dos meios de cada arte tem seus limites e está consumado quando chega ao seu fim, isto é, ao último termo que deve alcançar. O fim a que se propõe o comércio não tem limite determinado»

- Aristóteles, "Política"

Escrito há 24 séculos e com a autoridade do maior génio da Humanidade. Devia saber minimamente do que estava a falar, não?

Economia e comércio são duas artes completamente diferentes. E ele explica porquê, com uma clareza que perdura até hoje. Sem espinhas, como diria o Ildefonso.

11 comentários:

passante disse...

> Devia saber minimamente do que estava a falar, não?

Tinha dias, há aquela atoarda das mulheres terem 28 dentes ... (discussão: https://www.quora.com/Why-did-Aristotle-think-that-women-had-fewer-teeth-than-men)

> "As verdadeiras riquezas são as da natureza; apenas elas são objeto da ciência econômica. A outra maneira de enriquecer pertence ao comércio, profissão voltada inteiramente para o dinheiro, que sonha com ele, que não tem outro elemento nem outro fim, que não tem limite onde possa deter-se a cupidez."

Uma excelente análise. Mas. Passaram vinte cinco séculos, houve um "mas" entretanto.

A república agrícola romana derrotou a república comercial cartaginesa, e manteve sempre os comerciantes subjugados políticamente (negando-lhes acesso ao cursus honorum, etc.), o que continuou no império e no feudalismo. Idem noutros sítios.

Mas. Finalmente, no século XVI, o Gutenberg deu aos merceeiros meio de fazer panfletos, e a partir daí foi o descalabro. Em dois breves séculos estavam a adorar o Progresso e a Ciência, e a cortar cabeças e deserdar aristocratas agrícolas.

Agora temos instrumentos financeiros complexos, aspirinas e bombas atómicas. Bem diziam os camaradas Hegel e Marx que as mudanças quantitativas se tornam mudanças qualitativas.


dragão disse...

«há aquela atoarda das mulheres terem 28 dentes»

Se calhar, no tempo dele tinham. Ou então aquelas que ele tomou para amostra, que sabemos nós?...

Vivendi disse...

Bem interessante a intervenção do Aristóteles...

Comércio = a roda do hamster

Levantar, trabalhar, pagar contas, deitar...
E com os mestres do dinheiro ainda temos de brinde a dívida perpétua com os juros à mistura.

Só com tipos sábios como o Sr. Salazar para desbloquear esta jiga-joga e devolver uma sociedade perdida à comunidade, à tradição e ao bem comum.
Tudo na graça de Deus.

Anónimo disse...

Moeda- monere- premonição- memorial- justiça de guerra, desejo das ninfas, memória da mãe delas- a Mnenosine filha da Noite

Exemplos na Suméria- acadianos- 1- sacrificios, 2- purificação (das armas)- que são lavadas no rio Eufrates)- 3- o alegre banquete da abundância- a festa- partilha dos restos dos inimigos que também eram purificados) 4- imagem do soberano (da realeza) dedicada ao deus- lavar a boca à estátua e ordenar que falem ao deus para terem harmonia, clemência e abundância terrena,
Estela- que é memorial; estátua que é divina, moeda que é efígie a divulgar por todo o reino.

Salmanasar III- séc. VIII a.C. - efígie em moldura redonda. Epígrafes em faixas de bronze.
Imagem torna-se pública- cunhada torna-se popular e regula a ordem do reino em função da justiça e dádiva dos deuses

Cunhar moeda é dádiva dos deuses

Anónimo disse...

A troca é feita com diversos materiais no comércio enquanto ainda não havia moeda oficial.

Quando passa a haver, torna-se a derivação da:

efígie/estátua/estela/memorial/sacrifício/imagem/culto

marina disse...

"esse homem , sim ,tinha interesse pelo dinheiro.Era uma paixão , um entusiasmo,, um ideal.Podia levar uma vida fácil e confortável e ainda fazer economias para a velhice. Mas , pelo seu alto ideal abstracto do dinheiro , sofreu mais do que sofreu Miguel Angêlo pela arte. Costumava trabalhar 19 horas por dia e durante as outras 5 dormia debaixo de um banco , no meio da imundície , respirando o mau cheiro das peles. Está muito rico actualmente e nada faz com o dinheiro , nada quer fazer , nem sabe o que se faz com ele. não que o poder nem as diversões . O seu desejo de lucro é puramente desinteressado...."
o meu Huxley , a descrever um judeu russo. que ironia tão fina. _:)

marina disse...

A quantidade de dentes que temos na boca pode variar por causa de alguns fatores —doenças, idade, evolução humana e outros...


Além disso, existem até mesmo pessoas que não desenvolvem alguns desses dentes. A teoria mais aceita para isso é a evolução e as consequentes mudanças de hábitos do ser humano.... -
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/10/01/quantos-dentes-temos-na-boca.htm





muja disse...

Bom, direi que isso que marcou a negro não é filosofia. A autoridade aí fica abalada, a meu ver.

Mas também não me parece essencial para o que se pretende transmitir.

No resto, perfeitamente de acordo. Dinheiro é riqueza efémera, ou de todas a mais efémera. Todos os ricos têm pouco dinheiro excepto quando compram alguma coisa.

Agora, vejamos se percebo: a facilidade que tem o dinheiro em ser acumulado estimula a cupidez do mercador - lógico e cristalino.

Comerciar não tem fim determinado porquanto se pode lucrar indefinidamente. Idem.

Isso do dinheiro ser ficção é que já me parece menos cristalino... Se é ficção, qual é a realidade?

Posso desenvolver, ou espero pelo próximo?

muja disse...

Não alcanço bem o sentido de ficção, aqui...

Pergunta: um contrato é ficção?

muja disse...

É a riqueza que se associa ao dinheiro que é fictícia, é isso?

dragão disse...

Leia a resposta que eu lhe dei no outro postal anterior.

E depois não vou estar a responder a isso tudo, senão fico sem pólvora para os postais seguintes. Perde a piada.

O dinheiro é o uso que o homem lhe dá.

O dinheiro é uma ficção no sentido de que é um artifício, uma simulação: não é nenhuma coisa concreta. Como uma brincadeira de putos que estipulam coisas de fantasia. Isto de ser uma coisa para os gregos é fundamental, na relação da linguagem com o respectivo objecto. No outro o dia, quando referi o Heidegger, eu estava gozar com isso: o dinheiro era como o Ser, não sendo coisificável, podia confundir-se com o nada. Mas não ligue, isto sou só eu a confundi-lo a si. :O)
Enfim, está aqui este bocado de chapa: vamos supor todos que isto vale uma bicicleta. Estampa-se aqui uma bicicleta e agora vamos lá re'nar!...