«Contei-lhe que no reino da Tribnia, Langden para os seus habitantes, onde vivera durante uns tempos largos, a grande maioria do povo era composta de descobridores, testemunhas, informadores, acusadores, perseguidores e blasfemadores, assistidos pelos seus vários agentes e colaboradores subalternos, todos sob as cores, direcção e a soldo de ministros e seus deputados. As conspirações neste reino eram geralmente obra daqueles que desejavam dar largas às suas tendências políticas, restaurar novo vigor numa administração decadente; abafar ou distrair descontentamentos gerais; encher os seus cofres de confiscos; e fazer subir ou descer o valor d crédito público, conforme melhor conviesse aos seus assuntos particulares. Primeiro, assentava-se entre eles quais as pessoas suspeitas a acusar de conspiração e, em seguida, apreendiam-se-lhes todas as cartas e outros papeis e eles eram enviados para as masmorras. Esses papéis eram submetidos ao exame minucioso de uma série de artistas bastante habilidosos em descobrir os significados misteriosos das palavras, sílabas e letras. E deste modo eles decifravam, por exemplo, um cubículo fechado como significando um conselho privado; um rebanho de carneiros, o senado; um cão coxo, o invasor; a peste, um exército; uma cigarra, um ministro; a gota, um padre; uma forca, um secretário de Estado; um penico, uma delegação de ilustres; uma linguareira, uma dama da corte; uma vassoura, uma revolução; uma ratoeira, um emprego; um poço sem fundo, o tesouro; um barrete de bobo, uma favorita; uma caneta partida, um tribunal de justiça; um tonel vazio, um general; uma chaga sangrenta, o estado dos negócios públicos.
Caso este método falhasse, tinham a possibilidade de recorrer a outros mais eficazes, que os entendidos designavam por acrósticos e anagramas. O primeiro consistia em decifrar significados políticos nas letras iniciais das palavras: assim, N significaria uma conspiração; B, um regimento de cavalaria; L, uma frota de mar; enquanto pelo segundo, por meio de uma transposição das letras do alfabeto numa carta suspeita conseguiam fazer transparecer os desígnios mais profundos e recônditos de um partido descontente. Assim, se eu escrevesse, por exemplo, numa carta a um amigo, "O nosso irmão Thomas está com um ataque de hemorroidal", um habilidoso descobriria neste conjunto de palavras banais algo como "Resistam,...prepara-se uma conspiração... a viagem". E este é o método anagramático.»
- Jonathan Swift, "As viagens de Guliver" (III, vi)
O texto em epígrafe foi escrito no século XVII, naquela que é, quanto a mim, uma das mais memoráveis obras da literatura de todos os tempos. Se repararmos bem, não perdeu qualquer actualidade - esta passagem, aliás, como tantas outras. Devia arrepiar-nos e esclarecer-nos, sobretudo acerca das fantasias bafientas em redor do santíssimo progresso e da demo-evolucinha. Como se, afinal, mais não lográssemos, com todo este circo material e tecnopentelhífico com que nos aturdimos, diária e ininterruptamente, que tripular uma distopia através de séculos e chacinas (físicas, jurídicas, culturais). O trecho acima constitui mesmo a descrição dum método, tanto quanto dum processo mental, ainda hoje muito em voga. E não apenas no Ministério Púdico.
4 comentários:
> uma das mais memoráveis obras da literatura de todos os tempos
Bis. Bem podiam pôr a miudagem a ler (as viagens todas) na escola, mas depois eram capazes de reparar que qualquer semelhança com situações actuais não era mera coincidência.
Livres para serem culpados
A Igreja anda a alinhar nesta cretinize que nem lemming.
A Igreja sempre teve destas "ausências". Só que agora já nem é entregar-se ao hara-krishna: é mesmo ao hara-kiri. :O)
Completamente.
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